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Contas públicas

Como o governo do RS se socorre com saques dos depósitos judiciais

Desde 2004, o que era para ser mecanismo de emergência virou prática comum até o fim de 2017. A conta chegou a R$ 8,3 bilhões em maio de 2015 e não tem data para ser quitada

18/04/2015 - 13h04min

Atualizada em: 13/05/2018 - 21h17min


Juliana Bublitz
Juliana Bublitz
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Zero Hora / null

Eles ganharam fama desde que a crise nas finanças estaduais se agravou. Primeiro, em situações de emergência. Depois, sistematicamente. Ano após ano, os depósitos judiciais passaram a ser usados para financiar o rombo nas contas públicas do Rio Grande do Sul.

No início do governo de José Ivo Sartori, assumiram a forma de um "mal necessário": um remédio tomado em doses excessivas, com efeitos colaterais sérios, do qual o Estado se tornou dependente. Sem alternativas diante de uma contabilidade combalida, Sartori acabou ampliando o uso do artifício até o fim de 2017, mesmo se endividando ainda mais. Se fosse um paciente enfermo, estaria próximo da intoxicação.

A polêmica em torno dos depósitos não para por aí. Os recursos em questão não pertencem ao Tesouro estadual. São valores de terceiros, sob a guarda do Poder Judiciário. Em sua maioria, originam-se de pessoas e empresas que entram com ações na Justiça e esperam as sentenças. Sempre que se apropria dessas verbas, o governo toma emprestado dinheiro dos outros para tapar buracos no cofre.

"O Estado está intoxicado pelos depósitos judiciais", diz secretário da Fazenda, Giovani Feltes 

O mecanismo começou a funcionar em 2004. Por 29 votos a 12, com aval do Tribunal de Justiça (TJ) e oposição da bancada do PT, foi aprovado na Assembleia Legislativa. Funcionou como uma boia salva-vidas, flutuando em mar revolto.

- Vivíamos uma situação dificílima. Não havia outra opção, tanto que não tivemos grande dificuldade para aprovar o projeto - recorda o ex-governador Germano Rigotto (PMDB).

Inicialmente, o Piratini foi autorizado a sacar até 70% do valor disponível. Em 2006, o teto foi ampliado para 85% - e, mais recentemente, após a publicação desta reportagem, para 95%. Os saques só tiveram trégua nos últimos anos do governo Yeda Crusius (PSDB), nos dois primeiros de Tarso Genro (PT) e agora, na gestão Sartori, desde janeiro de 2018. A partir de 2013, a administração petista abandonou as resistências partidárias do passado e deu início a uma série de retiradas, que somaram 2,7 vezes mais do que os dois mandatos anteriores juntos.

O volume levou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a questionar a validade da legislação no Supremo Tribunal Federal (STF). A entidade reclama de não ter sido ouvida em 2013 e entende que a apropriação viola o direito de propriedade e põe em risco o cumprimento das sentenças - outro motivo de controvérsia.

- Estamos convictos de que teremos êxito. A ação recebeu parecer favorável da Advocacia-Geral da União e do Ministério Público Federal e deve ser julgada a qualquer momento - disse o então presidente da OAB no Estado, Marcelo Bertoluci.

Enquanto isso, os saques continuaram. Dos R$ 9,8 bilhões depositados em juízo até maio de 2015, data de publicação desta reportagem, R$ 8,3 bilhões foram sugados pelo Estado nos últimos 11 anos e não devolvidos, incluindo R$ 640 milhões na era José Ivo Sartori (PMDB).

Sobre os empréstimos, o Tesouro desembolsou R$ 2,9 bilhões em juros no período, e o custo aumentou em pelo menos mais R$ 1 bilhão até o fim de 2015.

O então secretário da Fazenda, Giovani Feltes, reconheceu, na ocasião, que seguir dilapidando os depósitos judiciais só iria aumentar as dívidas do Estado, mas argumentou não ter alternativa. Por conta disso, entrou em discussão a possibilidade de ampliar o limite de uso pelo Estado. A medida teria de passar novamente pela Assembleia - o que de fato aconteceu posteriormente, em setembro de 2015, quando passou a ser possível utilizar 95% do saldo.

O desembargador Túlio Martins, presidente do conselho de comunicação social do TJ, sustentou que, do ponto de vista de quem aguarda decisões nos tribunais, não haveria com o que se preocupar. Das 291,1 mil ações com depósitos judiciais, 71,29% envolviam valores de até R$ 500 mil. Como havia saldo de R$ 1,5 bilhão na conta até maio de 2015, seria possível honrar os compromissos.

- Para ampliar o limite dos saques seria importante fazer um novo estudo com os dados dos últimos 12 meses apenas para nos certificarmos de que não ficaria muito estreita a margem de garantia. Hoje, não vejo problemas - ponderou Martins, meses antes da aprovação do novo limite.

O então presidente da OAB, Marcelo Bertoluci, não só discordou como levantou uma outra questão: o potencial de danos às finanças estaduais.

- É uma medida de aparente solução, mas é ilusória - resume ele.

Especialistas em finanças públicas como Darcy Carvalho dos Santos concordaram com a visão da Ordem.

- O dinheiro fácil vem saindo caro. Se fosse usado em investimentos, ainda poderia ser positivo, só que acaba custeando a máquina. Vai tudo pelo ralo e só aprofunda a crise - avalia.

Professor de Administração Pública da Universidade de Brasília (UnB), o economista José Matias-Pereira classificou o expediente como "mero paliativo".

- Usar esse dinheiro é o pior que pode acontecer, e a partir do momento em que o uso se torna excessivo, vira uma roleta russa. Quanto maior o teto, mais balas - diz o professor.


UM POUCO DA HISTÓRIA

- Até 2001, o dinheiro dos depósitos judiciais ficava retido em contas esparsas, em diferentes bancos.

- A correção do saldo era feita pela poupança, mas os valores retidos eram aplicados pelos bancos, que lucravam com a operação.

- A partir de 2001, com a aprovação da Lei estadual nº 11.667, no governo Olívio Dutra (PT), foi instituído o Sistema de Gerenciamento Financeiro dos Depósitos Judiciais do RS.

- O Judiciário tornou-se responsável pelo sistema, que passou a ser gerido pelo Banrisul.

- Com isso, a diferença dos rendimentos (poupança e Selic), que antes ficava com os bancos, passou a alimentar o Fundo de Reaparelhamento do Poder Judiciário.

COMO FUNCIONA O SISTEMA

Desde 2004, o governo do RS foi autorizado por lei a pegar emprestados os depósitos judiciais. Ou seja: passou a usar o dinheiro de terceiros para financiar seus déficits. Confira os dados de maio de 2015:

1) O sistema funciona como uma caixa d'água, alimentada por uma tubulação e ligada a duas torneiras.

2) Pela tubulação, entram os depósitos que, todos os dias, se acumulam no reservatório.

3) Sempre que precisa, o governo pode abrir um dos registros e usar até 85% do estoque, desde que pague juros sobre os saques (12,75% ao ano, equivalente a R$ 80 milhões mensais). Atualização: após a publicação desta reportagem, o limite passou a ser de 95% na gestão Sartori.

4) Os 15% restantes não podem ser retirados, para garantir que os valores das ações sigam escoando pela outra torneira (para pagar as sentenças).

Quanto o Judiciário ganhava com o sistema, até maio de 2015

- Todo o mês, o Fundo de Reaparelhamento do Judiciário recebe a diferença entre os juros pagos pelo Estado e a correção dos depósitos pela poupança.

- Isso equivalia, em maio de 2015, a mais de R$ 40 milhões mensais. Desde 2004, o valor chegou a R$ 1,5 bilhão.

- O dinheiro vinha sendo usado para melhorar a estrutura do Judiciário, com novos prédios e equipamentos e para pagar advogados dativos (desginados para defender réus onde não há defensores públicos).

- O mecanismo é questionado pelo Supremo Tribunal Federal.

- Atualização: em agosto de 2015, o Tribunal de Justiça do Estado decidiu, por unanimidade, que o Poder Judiciário vai abrir mão de parte da cobrança de juros pelo uso dos depósitos judiciais.

Secretário de Tarso defendeu mecanismo
 

O governo Tarso Genro (PT) foi o campeão em saques nas contas dos depósitos judiciais. Entre 2013 e 2014, resgatou R$ 5,6 bilhões, cifra que até hoje não foi devolvida. Secretário da Fazenda na gestão petista, o economista Odir Tonollier não só defendeu o uso do recurso como rebateu as críticas de adversários políticos e de entidades como a OAB.

Segundo Tonollier, o Estado não teria conseguido destinar mais de 12% da receita à saúde sem os depósitos. Ele ressalta que, até então, o percentual mínimo exigido pela Constituição para a área nunca havia sido atingido no Rio Grande do Sul:

- Os depósitos judiciais cumprem um papel importante desde o governo Rigotto. No nosso caso, por que deixaríamos o dinheiro parado se o Estado sequer cumpria as exigências em relação à saúde? Não faz sentido.

Tonollier diz que os depósitos também ajudaram a aumentar os pagamentos de precatórios e requisições de pequeno valor (RPVs) em R$ 3,2 bilhões. Ele discorda de que a decisão de usá-los até o limite permitido por lei tenha contribuído para deteriorar as finanças estaduais, deixando os sucessores sem alternativas.

- A afirmação de que todas as fontes (de receita) se esgotaram não pode ser aceita. Se tivéssemos sido eleitos, encontraríamos saídas - afirma.

Quanto ao peso do juro, o economista sustenta que a maior parte é revertida ao Poder Judiciário para investimentos que, em última instância, beneficiam ao cidadão. Além disso, Tonollier argumenta que, se não houvesse esse repasse, o Tesouro acabaria arcando com os custos da Justiça do mesmo jeito.

- Os depósitos foram um achado. É dinheiro barato para o Estado - conclui.

Rigotto pagou os servidores

Assim que a medida foi aprovada, o governador Germano Rigotto (PMDB) fez saques para honrar a folha de pagamento dos servidores. O drama persistiu durante todo o mandato.

- Chegamos à conclusão de que recorrer aos depósitos seria uma alternativa segura e econômica para o Estado. Usamos esse recurso com responsabilidade - afirma Alberto Oliveira, chefe da Casa Civil à época.

Rigotto não gosta de lembrar do período e se sente injustiçado. Diz que fez o possível para cortar despesas, que enfrentou as duas piores secas da história e que foi um dos primeiros a buscar a renegociação da dívida com a União.

- Não posso ser responsabilizado pelo endividamento do Estado - afirma o ex-governador.

Yeda evitou retiradas

A ex-governadora Yeda Crusius (PSDB) foi a que menos utilizou os depósitos. Os saques ocorreram no início do governo.

- Nosso objetivo sempre foi chegar ao déficit zero, gastar apenas o que arrecadávamos. Em dois anos, atingimos a meta, mas, até lá, tivemos de usar o que havia disponível - diz ela.

Yeda deixou R$ 615 milhões em saques não devolvidos. Secretário do Planejamento à época, Mateus Bandeira lembra que havia a convicção de que o paliativo deveria deixar de ser utilizado por "mascarar o déficit". A partir daí, os depósitos se acumularam.

- Foi por isso que esses recursos cresceram tanto, até serem sacados pelo governo seguinte - diz Aod Cunha, ex-secretário estadual da Fazenda.


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