Porto Alegre



Cheia histórica

Ilhas submersas em desolação

População ribeirinha sofre com a inundação do Rio Jacuí, na saída de Porto Alegre, que tomou conta de casas e cobriu ruas com a água gelada e marrom na qual flutuam montes de lixo misturados aos poucos bens de quem perdeu quase tudo

13/10/2015 - 03h04min

Atualizada em: 13/10/2015 - 03h04min


Paulo Germano
Paulo Germano
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Tadeu Vilani / Agencia RBS
No desenho, a passagem bíblica na qual Jesus anda sobre as águas e resgata os apóstolos: seu Índio mantém a fé

Ela sorri o tempo todo. De capuz e blusão de oncinha, enrolada em um cobertor cor-de- rosa, Thailla parece bem no colo da mãe. Menos mal: não há onde largar o bebê de seis meses. Na única cama seca, dormem um menino de cinco anos, outro de sete e uma garota de 10. Entra lixo sem parar naquela casa - vem tudo boiando porta adentro, de garrafas a caixas de leite, de chinelos a boneca sem cabeça -, mas a situação nem é das piores se comparada à de outros chalezinhos da Ilha do Pavão, uma das que compõem o bairro-arquipélago, na saída da Capital. A água, ali, não passa de um palmo de altura. Está mais do que bom.

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Tanto é que Deise Correia Cordeiro, 22 anos, a mãe de Thailla, abandonou o próprio lar e foi para lá com o marido e os filhos. É a casa da sogra, dona Glaci - que ao todo recebe nove desabrigados. Desde que chegou, no sábado à noite, Deise teve apenas um contratempo: precisou bater com uma revista em um camundongo que nadava em torno do sofá em que ela e Thailla dormiam.


Com a filha Thailla, de seis meses, no colo, Deise buscou refúgio possível na casa da sogra, Glaci (Foto: Tadeu Vilani)

- Chorei tanto, moço - recorda Deise, mas o assunto é outro, não é o roedor. - Vi a roupa dos meus filhos boiando, a geladeirinha que comprei no brique, meu Deus, toda estragada. E a cama da Thailla estava cheia d’água.

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A bebê se diverte no colo, estica a mãozinha e leva um dedo ao nariz da mãe. Deise sorri de volta. A equipe de Zero Hora se despede e retorna ao pátio em frente à casa. Trata-se, na verdade, de um lago amarronzado, com sofás e fogões flutuando em uma água gelada de cheiro forte. A 10 metros dali, um homem carrega pelo cangote um cachorro encharcado que treme de frio.

- Vim buscar o Bilu para levar para o abrigo, mas, quando cheguei, ele estava morrendo afogado - conta Walmir da Silva, 50 anos, que perdeu a casa na inundação e agora se refugia em uma das três igrejas da Ilha do Pavão.


Walmir resgatou o cachorro Bilu que estava morrendo afogado na enchente na Ilha do Pavão (Foto: Tadeu Vilani)

Aliás, com esses abrigos por ali, por que tanta gente insiste em seguir no meio do lixo? Por que não deixam suas casas por uma semana ou duas, pelo menos até a água descer? O problema são os piratas da cheia: viciados em crack que arranjam caiaques, estacionam o barco em frente às casas e batem palmas. Uma, duas, três vezes. Se ninguém atende, eles entram a nado e levam o que restou nas residências. São exploradores do caos.

Por isso, há 40 pessoas acampadas embaixo da ponte sobre o Rio Jacuí. O cenário é de guerra - barracas de lona preta protegem colchonetes e crianças de colo -, mas o cheiro, enfim, é bom. As mulheres cozinham feijão com arroz na hora do almoço, comida doada por voluntários, em um fogão que conseguiram salvar da enchente. À noite, os homens se revezam acordados, de olho nos chalés de madeira inabitáveis - mas que ainda guardam uma coisinha que outra.


Embaixo de ponte na Ilha do Pavão, cerca de 40 pessoas vigiam suas residências para evitar saques (Foto: Tadeu Vilani)

- Minha TV está ali em casa, o som também. Coloquei tudo em cima do armário, porque a água, lá, bate no peito - diz  Fernanda Trindade, pescadora de
35 anos. - Se a gente vai para o abrigo, roubam tudo.

Só de barco para chegar à casa dela. A reportagem entrou no caiaque de Fernanda: viu o Jacuí engolindo as paredes e centopéias zanzando pela tevezinha de tubo.


A pescadora Fernanda perdeu toda a comida que tinha, estragada pela água que invadiu sua casa (Foto: Tadeu Vilani)

Na Ilha dos Marinheiros, um pouco mais adiante da Ilha do Pavão, os donativos chegam com maior frequência. A Associação Movimento do Bem (Amobem), uma ONG de voluntários, estaciona um Peugeot 206 na Rua Santa Rita de Cássia. Dezenas de flagelados se acotevelam atrás do porta-malas, mulheres arregaçam sacolas com doações de roupas. Uma por cima da outra, lutam por blusões para os filhos, escolhem o tamanho ideal, jogam para o lado o que não querem, enquanto a líder da ONG pede:

- Fila, por favor, gente, façam fila!

Em vão. Em menos de três minutos, roupas e alimentos desaparecem. Nem todo mundo consegue pegar alguma coisa, mas horas depois a Amobem aparece com mais mantimentos. A zona crítica dos atingidos abrange toda a Rua Nossa Senhora de Aparecida, que se transformou em um córrego castanho. É onde vive o aposentado Varlan Soares, o seu Índio, 67 anos.

- Entra, meu filho, entra - ele pede, gentil, a água lhe invadindo a cintura na porta de casa.

Desenhista mostra imagem com cena de cristo sobre as águas

Seu Índio é desenhista: trabalha no centro de Porto Alegre desenhando em tamanho grande fotos três por quatro que as pessoas lhe entregam. Ao abrir sua casa alagada - onde há cadeiras e camas submersas, além de cobras por baixo d’água angustiando os repórteres -, ele pega um de seus desenhos em uma prateleira alta.

- Essa nossa chuvarada é fichinha perto do que eles passaram - e aponta para a obra feita a lápis, na qual Jesus caminha sobre as águas enquanto os apóstolos, em um barco, atravessam uma tormenta.

É uma passagem bíblica, do livro Mateus, em que Pedro chama Cristo de fantasma, duvidando de que viera salvá-los da tempestade sobre o mar. A ilustração de seu Índio mostra Pedro, quase afogado, sendo salvo por Jesus.

- Homem de pouca fé, por que duvidaste? - questiona seu Índio, citando a frase do filho de Deus. - O Espírito Santo me consola. Vou me desesperar por quê? Perdi três geladeiras, minha cama, perdi quase tudo, mas tenho saúde.

Seu Índio dorme em um vizinho na casa da frente, onde o terreno é mais alto. Fabiane Ramos, uma carroceira de 30 anos, dorme com o marido na Kombi de um amigo. Mariano Dias, catador de 41, se abriga no bar do sogro. Eles se ajudam como podem, os moradores das ilhas.

- O que me faz continuar é essa coisinha aqui - lembra Deise Cordeiro, a mãe de Thailla, que, apesar de tudo, não para de sorrir no colo.


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