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Decisão do governo do Estado de pesquisar fosfoetanolamina é contestada por médicos

Especialistas dizem não entender como iniciativa foi tomada sem consultar instituições de referência

24/11/2015 - 10h35min

Atualizada em: 24/11/2015 - 10h35min


Itamar Melo - de Capão da Canoa
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Marcos Santos / USP,Divugação

A comunidade médica gaúcha recebeu com desconforto a decisão do governo do Estado de dedicar esforços e recursos ao estudo da fosfoetanolamina, substância que, para horror dos especialistas, passou a ser propagandeada como esperança de cura contra todos os tipos de câncer. Na semana passada, o Piratini firmou um termo de cooperação com a equipe que desenvolveu a molécula, por meio do qual fica estabelecido que o Laboratório Farmacêutico do Estado (Lafergs) pesquisará a droga, com vistas ao desenvolvimento de uma medicação.

A intervenção de políticos em um assunto científico invadiu as conversas de médicos e pesquisadores nos últimos dias. Muitos deles não entendem como o governo pode ter tomado uma iniciativa do gênero sem consultar instituições de referência. A fosfoetanolamina foi tema também da última reunião da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina, que prepara um documento de repúdio à forma como o assunto foi conduzido.

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- É um absurdo o governo do Estado patrocinar essa bobagem. Isso caiu muito mal no meio médico, porque constrange a ciência feita no Rio Grande do Sul. É uma decisão originada da ignorância e do despreparo. Acho que o governo respondeu a um apelo político, populista, demagógico - critica Gilberto Schwartsmann, chefe do serviço de oncologia do Hospital de Clínicas e ex-diretor da Central de Desenvolvimento de Novas Drogas Anticâncer da Associação Europeia para Pesquisa e Tratamento do Câncer.

Mérito Farroupilha revoltou especialistas

A fosfoetanolamina sintética foi desenvolvida no começo dos anos 1990 pelo químico Gilberto Chierice, então professor da Universidade de São Paulo (USP). Apesar de não ter comprovado a utilidade da substância, ele passou a anunciá- la como panaceia contra os tumores e a distribuí-la em cápsulas. Alarmada, a USP procurou dissociar-se da iniciativa e vetou a produção em seus laboratórios. Nos últimos meses, uma enxurrada de ações ajuizadas por doentes chegaram à Justiça, pedindo que a universidade fornecesse as pílulas.

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O Rio Grande do Sul entrou nessa história por meio do deputado estadual Marlon Santos (PDT), uma figura polêmica, que ficou conhecido por atuar como médium e realizar cirurgias espirituais. No mês passado, o parlamentar conseguiu que a Assembleia entregasse a Chierice a Medalha do Mérito Farroupilha, maior láurea do legislativo gaúcho. Depois, enquanto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e as autoridades médicas brasileiras condenavam a histeria em torno da fosfoetanolamina, Marlon convenceu o governador José Ivo Sartori, seu aliado, a promover a pesquisa da substância.

- Quando conversei com o Sartori, ele disse: "Toca ficha. Encabeça isso, para não deixar morrer a coisa. E manda um abraço para ele (Chierice)" - relatou.

O desenvolvimento de um medicamento exige anos de pesquisas e recursos polpudos - às vezes bilhões de reais. Profissionais da área questionam como um Estado quebrado como o Rio Grande do Sul pode aventurar-se no espinhoso campo da pesquisa farmacêutica.

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- O Estado não tem capacidade financeira para fornecer a pacientes do SUS drogas que já estão liberadas. Agora vai tentar estudar outra, que ninguém sabe qual vai ser o resultado. É injustificável - critica Antonio Kalil, chefe do serviço de cirurgia oncológica da Santa Casa.

Capacidade do Lafergs também é questionada

Outra dúvida é se o Lafergs dispõe de condições para encarar a empreitada. O laboratório nunca atuou no desenvolvimento de remédios antes.

- Não conheço a capacidade do Lafergs, mas nunca vi o laboratório fazer um trabalho desse tipo. O melhor é que isso seja feito em uma unidade de pesquisa clínica bem desenvolvida - diz Kalil.

Nesse particular, Schwartsmann vê um lado positivo. Ele entende que o diretor do Lafergs, Paulo Mayorga, é bem preparado tecnicamente:

- Tenho certeza de que ele jamais escolheria essa substância para gastar dinheiro nela. Uma vez tomada a decisão do governo, ele tem de obedecer o Executivo. Mas é bom que tenham pedido isso para ele, que tem formação sólida.

O diretor do Instituto do Câncer do Hospital Mãe de Deus, Carlos Barrios, também vê um aspecto positivo na atitude do governo. Ele critica a forma como o assunto foi conduzido, chamando de "circo" a condecoração oferecida a Chierice pelos deputados gaúchos, mas considera interessante que as autoridades se preocupem com a investigação científica:

- Essa medicação foi lançada de forma inapropriada, comprometendo a imagem da ciência brasileira. Antes de se saber se ela funcionava, os ditos investigadores estavam sendo condecorados na Assembleia. Isso é lamentável. É fundamental a gente recuperar o bom senso. Qualquer esforço que for feito para estudar essa situação de forma científica e responsável será bem-vindo. Poderá abrir a perspectiva de que o Estado comece a enxergar o câncer como um problema digno de investimentos - observa.

Durante a segunda-feira, ZH pediu para ouvir o secretário estadual da Saúde, João Gabbardo dos Reis, sobre a iniciativa em relação à fosfoetanolamina, mas não obteve retorno.

Especialistas contestam a decisão de estudar a fosfoetanolamina
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