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Prontos para a festa

Perto do título inédito na Inglaterra, o modo Leicester de ser feliz

De maneira discreta, cidade se prepara para a incrível história da conquista da Premier League

30/04/2016 - 10h03min

Atualizada em: 19/05/2016 - 12h41min


Fernanda Zaffari – enviada especial a Leicester
Fernanda Zaffari – enviada especial a Leicester
O King Power Stadium vive lotado mesmo em dias sem jogos do Leicester City

Leicester é uma cidade feliz.

Mas esqueça o conceito de demonstração de felicidade que você conhece vivendo no Brasil. Os dias de felicidade vividos em Leicester, a 160 quilômetros de Londres, são no melhor estilo inglês: contidos.

Imagine que, neste domingo, o Leicester City, se vencer o Manchester United, ganhará pela primeira vez a milionária Premier League. Está sendo considerado o maior feito da história do Campeonato Inglês, a conquista de um time de segunda linha, que em outras temporadas lutava contra o rebaixamento e, neste fim de semana, pode, antecipadamente, numa campanha impressionante (3 derrotas em 35 jogos), garantir o prêmio de quase 25 milhões de libras.

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– É a vez dos pequenos vencerem os grandes – vibra Alma, a voluntária que recebe turistas na Catedral da cidade.

É algo que, se fosse transposto para a realidade do futebol brasileiro e levada em conta a passionalidade do nosso torcedor, provavelmente a cidade já estaria toda enfeitada esperando pelas rodadas finais. Os torcedores andariam fardados e seria impossível não se deixar contagiar pela expectativa do título.

Não em Leicester.

Embarquei em um trem de Londres rumo ao lugar que fica no centro da Inglaterra. Para abrir os trabalhos da visita, vamos esclarecer de uma vez por todas como se diz o nome do meu destino. Se pronuncia "Lester" e ponto final. Não há discussão. Nenhuma outra pronúncia é aceita por aqui. O que há é muito papo sobre o motivo pelo qual todas aquelas letras no meio são esquecidas. A origem romana parece ser a mais aceita, mas nada é comprovado.

Leicester e seus moradores viviam até pouco tempo em perfeita harmonia, digamos assim, com seu time. Ou seja, não eram acostumados a conviver com a fama. Com 330 mil habitantes, a cidade sobreviveu da indústria de calçados, lingerie e maquinário e hoje, como muitas outras localidades do país, busca uma nova vocação econômica. Nos últimos dois anos, decidiu redirecionar seus esforços para o turismo. Por isso, a campanha do Leicester City não poderia ter vindo em melhor momento. As vitórias em sequência lotaram o estádio e atraíram a imprensa internacional, principalmente a oriental. O dono do time é um bilionário tailandês, Vichai Srivaddhanaprabha, dono de uma rede de free shops que dá nome ao estádio.

No dia da minha visita, depois de circular bastante no centro e nos bairros mais afastados, não vi torcedores pelas ruas vestindo camisetas do clube, não encontrei calçadas com meio fio pintados ou casas com bandeiras do time na janela. Para não dizer que não encontrei nada que me lembrasse uma cidade do interior do Rio Grande do Sul com um time fazendo grande campanha no Campeonato Brasileiro, por exemplo, consegui achar uma lotérica, que estava fechada, e tinha cartazes do clube na vitrine. Ah, e uma borracharia com cartazes de uma música que o clube lançará com exclusividade na Apple Store neste fim de semana.

– Oi, você é fã do Leicester? – perguntei ao mecânico que se aproximou quando me viu tentando fotografar.

– Não, do Manchester United – respondeu sorrindo. Ele complementou rapidamente. – Mas quero que eles ganhem.

Esta é uma resposta muito comum. Torcedores com dois times, um do primeiro escalão e outro menos estrelado, têm uma explicação simples: nos anos 1980 e 1990 as campanhas destes time menos conhecidos eram pífias, e nenhum garoto de colégio resistia à concorrência de times vencedores.

Num dos parques da cidade encontrei Git Mestry empurrando a filha Angali no carrinho. Ele vestia o moletom do Liverpool.

– Mas é claro que torço também para o Leicester. Vai nos dar o status de nos colocar no mapa – resumiu.

Voltando ao relato da tímida decoração da cidade, isso não é um sinal de pouca empolgação em Leicester. Insisto. É preciso mergulhar na realidade do torcedor local, entender a personalidade do inglês. Enfim, respeitar as diferenças culturais.

Fiz uma parada, claro, no King Power Stadium. Capacidade para 32 mil pessoas, e que, naquela manhã, estava com a recepção lotada.

– Nossos quatro tours estão com ingressos esgotados e agora é preciso reservar com dois meses de antecedência – explicou Nayan Ramanadi, funcionário do clube.

O estádio, conta ele, depois da Premier League, ficará fechado para uma reforma. Sofrerá adaptações para atender as exigências da Champions League – competição que o Leicester já garantiu lugar. Numa salinha separada, outro funcionário, Filbert, não quer dar entrevista. Ele é o responsável do clube que se veste de raposa, o mascote, e anima a torcida nos intervalos dos jogos. Filbert é uma raposa nervosa. Ele sim, fanático por futebol ao estilo brasileiro, inclusive acompanha nossas equipes, está na expectativa com as rodadas seguintes e sonha com o título.

Engana-se quem pensa que o Leicester é time pequeno. Pode ter orçamento pequeno se comparado ao dos "Big Five" (grandes cinco) – Chelsea, Arsenal, Manchester United, Manchester City e Liverpool. Mas ao visitar o estádio, a estrutura é de time grande. A loja do Leicester não tem comparação com nenhuma loja de clube brasileiro em termos de estrutura, seleção de produtos e qualidade. Há uma linha retrô, outra passeio, uma luxo, outra baby e uma casa. Você pode comprar tapetes com o símbolo da raposa, perfumes, e kits completos para jogar golfe. Camisetas de temporadas passadas também. Impossível é conseguir uniforme desta temporada, esgotado há pelo menos dois meses, mas com a promessa de chegar um novo lote até a última rodada.

Ellabelle comprou uma jaqueta do seu time de coração

Ellabelle, nove anos, juntou as economias e conseguiu 15 libras. A mãe complementou com outras 10 e levou para casa a tão sonhada jaqueta. Ela foi às compras com a família completa, mãe, pai e o irmão, Frankie, sete anos.

– Quero muito ver o Leicester vencer – vibrou ela, toda fardada. A garota é fã com padrões de uma nova geração, também joga futebol na escola.

Mas de uma maneira doce, porém enfática, o pai foi logo corrigindo.

– Tem que curtir agora, este momento. Isto que estamos vivendo não acontece muitas vezes na vida e nunca se sabe quando acontecerá novamente – ensinou Rob Weston.

Este ensinamento de Rob é repetido por muito torcedores mais experientes com os quais conversei. Onde o Leicester chegou é mais do que se imaginou. Claro que será bom ser campeão. Mas a felicidade de estar no topo agora é para ser curtida, e as novas gerações precisam entender: esporte não é alegria apenas para os campeões.

Além do Leicester City, fundado em 1884, o morador mais famoso da cidade não está mais vivo. O rei Ricardo III morreu em 1485, dois anos depois da sua coroação, na batalha que marcou o fim da Guerra das Rosas. Seus restos mortais foram encontrados em escavações em um estacionamento e identificados por exames de DNA. Ano passado, houve uma cerimônia para enterrá-lo na Catedral.

A morte de Ricardo III botou fim em uma guerra que durou quase um século, uma das mais violentas da história da Inglaterra. Uma curiosidade e uma atração a mais, pois serviu de inspiração, como o próprio autor já admitiu, para o seriado Game of Thrones. Inclusive Ricardo III inspira o personagem Stanis Baratheon.

– O time e Ricardo III impulsionam o turismo. Temos que viver disso. Hoje, meus filhos não têm trabalho – conta Alma, a senhora de 70 anos que ao lado do túmulo do Rei responde com uma fluência encantadora a todas as perguntas que você sonha saber sobre a história da cidade e, até mesmo, sobre a Inglaterra. Alma também estava por dentro da realidade política do Brasil. Saí da Catedral, eu desejando sorte para o time, e ela para o Brasil, não para o time, mas para o governo.

O túmulo do Rei Ricardo III é uma das principais atrações de Leicester

Mas talvez mais do que o futebol, o que seja mais surpreendente na visita seja o aspecto demográfico de Leicester, especialmente no atual momento que vive a Europa. Depois de Londres, é a cidade racialmente mais diversificada da Inglaterra. No último censo, realizado em 2011, apenas metade dos entrevistados se descreveu como britânicos e brancos. Há todas as cores, sabores e cheiros em Leicester. Visitei a Narborough Road, eleita pela London School of Economics como a rua mais multicultural da Grã-Bretanha. São 22 nacionalidades representadas em todos os tipos de lojas que você sonhou. Depois da guerra, vieram os imigrantes poloneses, ucranianos, paquistaneses e indianos. Quando o ditador de Uganda Idi Amin expulsou os asiáticos do país, em 1972, 20 mil se instalaram em Leicester.

A característica multicultural da cidade se reflete também no futebol: o goleiro é dinamarquês, o lateral esquerdo é austríaco, um dos zagueiro é alemão, o volante é francês, o meia é argelino e um atacante é japonês. O discurso mais comum nesta "festa das nações" é a harmonia da convivência em Leicester. Harmonia, sim. Mas de um modo geral, como em outros pontos da Inglaterra, as diferenças culturais vivem todas lá na cidade, mas cada uma em seu bairro, em uma colcha de retalhos. Representando também tantas culturas, Leicester tem bons times de rúgbi, de críquete e de basquete.

Mas nosso foco mesmo é o futebol, e o feito que o Leicester City está prestes a alcançar faltando três rodadas. Ou melhor, depois de um dia inteiro convivendo por lá, deixei a cidade querendo pensar mais como o pai daquela garotinha que comprou a jaqueta na loja:

– Mesmo que o Leicester fique em segundo lugar, este é o melhor resultado que já alcançamos – disse ele.

É, seja qual for o resultado das próximas rodadas, quem vive em Leicester estará feliz.

*ZHESPORTES


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