Polícia



Corredor para uma vida nova

Meninas do tráfico: a vida da adolescência enclausurada

Uma equipe do Diário Gaúcho passou cinco dias com todas as adolescentes da Casef, entre 17 e 22 de maio, para contar um pouca mais sobre a história e rotina das jovens

30/05/2012 - 06h46min

Atualizada em: 30/05/2012 - 06h46min


Centro de Atendimento Sócio Educativo Feminino abriga meninas menores infratoras

Dos 926 adolescentes infratores internados na Fundação de Atendimento Socioeducativo do Estado (Fase), apenas 3% são meninas. São 30 garotas que perderam a liberdade por delitos graves. O que as levou a uma unidade de internação? O que encontram lá? Como saem? Que caminho escolhem ao sair?

Uma equipe do Diário Gaúcho passou cinco dias com todas as adolescentes, entre 17 e 22 de maio. De hoje a sexta-feira, revela o que encontrou no convívio com traficantes, homicidas, assaltantes e acusadas de latrocínio. Das 30, nove são traficantes. Outras 15, usuárias de droga. Ou seja: em 80% dos casos, o entorpecente tem papel principal ou coadjuvante.

A herdeira da boca

No Casef, as regras são claras: as meninas não se tocam, não ficam a sós, não falam do passado, apenas imaginam o delito uma da outra. Nem todas estão dispostas a falar. J. estava.

Aos 17 anos, ela é uma menina-mulher. Mãe de duas meninas, até os 14 anos teve vida tranquila com os pais e irmãos, em uma das maiores vilas da Capital. Seu mundo desmoronou com a separação dos pais e o novo namorado da mãe: um traficante.

Sentada em uma cadeira do Casef, encolhida e com mãos trêmulas, ela contou: não foi fácil. Segurou as pontas até que... a mãe e o namorado foram presos. Sobrou para J. cuidar dos três irmãos e sustentar a família. E ela decidiu arriscar, administrando a boca. Sua magreza dá ideia de que usava drogas. Engano. Os quilos, diz ela, sumiam à medida em que o estresse aumentava.

- A responsabilidade ficou toda comigo e tive de me virar. Vi que ali ganhava dinheiro rápido - conta.

Todos as manhãs recebia a droga que lhe rendia cerca de R$ 500 por dia. A venda era boa, mas usar a droga, nem pensar:

- Pra vender, não pode usar, senão tu te perdes, te atrapalhas. E os traficantes não estão nem aí, querem o dinheiro deles.

O esquema durou um mês e a casa caiu. J. se viu enclausurada, longe das filhas. Se agarra à Bíblia, a um diário e à esperança de o bom comportamento reduzir seus dias de confinamento.

A menina-mãe fica feliz ao contar sua história. Sabe que menor não pode dizer o nome ou mostrar o rosto, mas solta o cabelo e escolhe sua melhor roupa para ser fotografada.

A ajudante do namorado

Ao abrir a porta de sua cela, M., 18 anos, fica maior ainda. Lá dentro é tudo tão pequeno e ela... tão grande. As roupas são folgadas, o cabelo sempre preso, o sorriso sempre no rosto. A garota não tem o menor problema em falar do que a levou ao Casef. Nesta ordem: um namorado, o lugar onde ele morava e uma ajudinha para alcançar drogas para os usuários da redondeza.

Quando começa a contar o que a fez deixar a família a quase 500km da Capital, algemada, no camburão da polícia, o tom de voz vai baixando. Os olhos voltam para o passado e para o lugar cercado de usuários de drogas que viviam a furtar e a roubar para sustentar o vício. Foi testemunha do que a droga faz com o ser humano.

Jamais topou experimentar. Mas não via problema em ajudar o namorado e amigos alcançando pedras de crack ali, gramas de cocaína acolá.

- Usar, eu nunca usei. Sei bem o que acontece, as pessoas acabam roubando, matando - observa.

Naquele dia ela foi alcançar a droga para um suposto usuário e... se deu mal. Era um policial disfarçado. O flagrante foi inevitável:

- Fiquei com medo. Imaginava que iria para um lugar horrível.

Com dois meses e meio de internação, ela se diz decidida: não retomará o namoro quando sair.

Seu jeito moleque esconde o mulherão de voz grossa e olhar manso. As fotos? Foi no seu lugar de orgulho: a lavanderia. É de lá que M. reúne economias (meio salário mínimo por mês) para uma nova vida.

A fascinada pelo dinheiro fácil

Diante das colegas de quarto, T., 17 anos, observa que há novidade na casa. De canto, pega um bolo, reclama do café velho. Até que toma coragem e avisa a repórter: também quer contar a sua história. A caminho da salinha de entrevistas, ela solta o cabelo, arruma a blusa, refaz o laço da manga, sorri. Faz mistério.

Antes de ensaiar as primeiras confissões, ela olha no olho, os dedos comicham, e o delito é contado como se fosse uma grande travessura.

No começo, recorda, era tudo divertido: a adrenalina do risco, muito dinheiro fácil. Começou com um desafio proposto pelo namorado, um traficante da Região Metropolitana. Terminou num camburão.

Aos 17 anos, T. vive há três meses no Casef. Enche os olhos de lágrimas ao lembrar dos irmãos pequenos que vêm visitá-la. E compara:

- Sabia que, mais cedo ou mais tarde, eu ia cair. Depois de cair, vi como é que é.

Cada vez que subia num ônibus em Canoas, com destino a Novo Hamburgo, levava colado no corpo 2kg de droga. Ou levava a encomenda em uma sacola de supermercado.

Assim ganhava R$ 150 por dia, mais transporte e um troco para o lanche. Em casa, ninguém desconfiava. Mas a polícia desconfiou. E um dia, o táxi em que viajava parou numa barreira policial.

No Casef, enturmada, ela faz bagunça com as meninas do quarto. Pula de beliche em beliche. Faz pose para foto. É mais uma adolescente rindo sozinha em frente a uma câmera.

Do delito até a internação

- Na lei aplicada aos adolescentes, crime é chamado de ato infracional. Não existe prisão, é apreensão. Usa-se o termo "medida socioeducativa" para representar a palavra pena.

- Quando um menor comete um ato infracional antes de fazer 18 anos, é apreendido e levado a uma DP. Há internos na Fase com 20 anos, pois o prazo máximo da internação é de três anos. Com 21 anos, a pessoa está livre.

- Dependendo da gravidade do delito e dos antecedentes, é feito um procedimento e ele é apresentado a um juiz que decide a medida. Pode ser advertência, reparação de dano, prestação de serviços até a mais grave, a internação.

- Para ocorrer a internação, o ato infracional deve ter sido cometido com violência ou grave ameaça (roubo, latrocínio, homicídio), contra a saúde pública (tráfico) ou ser cometido em série (furtos).

- O delegado faz um procedimento e avalia a chance de liberar o menor aos cuidados de um familiar ou apresentá-lo ao Ministério Público.

- A apreensão é comunicada ao promotor, ao juiz, à família e ao defensor público. Quem aplica a medida é um juiz. Assim, menores chegam à Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase). Meninas ficam no Centro de Atendimento Socioeducativo Feminino (Casef). Só há uma unidade no Estado - na Vila Cruzeiro, na Capital.

O ORGULHO EM SER PERIGOSA

O olhar é destemido, há confiança na fala, existe orgulho em ser perigosa. A tarefa no Casef não é fácil: desfazer nas gurias projetos de vida fora da lei que elas viram como uma alternativa no meio em que nasceram e cresceram. Mas o tempo passa e traz reflexões.

- Quando a gente tem uma menina com vergonha de dizer que é da Fase, me orgulho muito. Em geral, isso é status para elas, numa inversão total de valores - desabafa a coordenadora da semiliberdade, Patrícia Dornelles.

Traficantes têm perfil definido

Além de cuidar, as socioeducadoras têm papel de conselheiras, dando carinho e conforto que muitas nunca tiveram na família. É nessa relação de troca que vidas começam a melhorar.

- Aqui, realmente se faz ressocialização - garante a diretora da casa, Luciana Carvalho.

Dentre as adolescentes internadas na Capital, algumas têm perfil definido: capacidade de organização, liderança, observação. São as meninas do tráfico. Algumas conseguem reavaliar o que fizeram. Outras, não.

Das 30 internas...

IDADES:
- 14 anos: duas
- 15 anos: quatro
- 16 anos: oito
- 17 anos: cinco
- 18 anos: oito
- 19 anos: duas
- 20 anos: uma

O QUE FIZERAM:
- Tráfico: nove
- Roubo: seis
- Homicídio: cinco
- Descumprimento de medida: cinco
- Latrocínio: três
- Lesões corporais: uma
- Furto: uma

DE ONDE VEM:
- Serra: seis
- Porto Alegre: cinco
- Região Metropolitana: quatro
- Noroeste: quatro
- Região Norte: três
- Litoral Norte: duas
- Região Central: uma
- Vale do Sinos: uma
- Vale do Caí: uma
- Vale do Paranhana: uma
- Vale do Rio Pardo: uma
- Fronteiro Oeste: uma

ESCOLARIDADE:
- Ensino fundamental: 26
- Ensino médio: quatro

Fonte: Fase/RS - Dados coletados em 3 de abril de 2012 (conferência é feita a cada dois meses). A casa tem vaga para 33 meninas.


HOJE Meninas do tráfico AMANHÃ A rotina da casa SEXTA Três destinos possíveis


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