Sob fogo cerrado
Conflito entre facções transforma região em Gravataí em campo de batalha
Conforme a polícia, pelo menos seis já foram mortos no conflito
É irônico, mas na Travessa da Amizade não se veem sorrisos ou apertos de mão fraternais. A praça, com um campinho de futebol e brinquedos para os pequenos, mesmo em dias de sol, fica quase deserta. Aquele é o único espaço de lazer em meio às ruas esburacadas e quase intransitáveis tomadas de mato e esgoto a céu aberto no Rincão da Madalena, em Gravataí.
Mas lugar de criançada hoje é dentro de casa para não correrem o risco de levar uma bala perdida.
- Aqui, quando não dá nenhum tiro durante o dia, vamos deitar apreensivos, esperando pelo que vem à noite - comenta uma moradora de 33 anos.
Ao menos desde o final do ano passado, a região é palco de uma guerra entre aliados das duas facções mais poderosas do tráfico da Região Metropolitana na atualidade: Bala na Cara x Os Manos. Conforme a polícia, pelo menos seis já foram mortos no conflito. Outras duas pessoas - incluindo uma menina de sete anos - ficaram feridas.
Vida na fronteira da zona de guerra
A dona de casa, com o marido e os dois filhos pequenos - de dez e oito anos - vive ali há dez anos. A Travessa da Amizade está exatamente na fronteira invisível do confronto. Ela já tentou vender a casinha de madeira, mas não tem como responder à frequente pergunta dos eventuais interessados:
- Eles perguntam por que comprariam a casa. Para passar o dia de colete à prova de balas?
Moradores pedem pela BM
O Rincão da Madalena, geograficamente, fica na área central de Gravataí. Porém, a distância institucional parece bem maior. É considerado um Território da Paz pela Brigada Militar, mas o posto dedicado ao projeto fica do outro lado do bairro. A reportagem do DG passou toda a manhã na região e nenhuma viatura passou pela fronteira dos traficantes.
- Aqui a Brigada só vem depois que alguém é baleado. Quando veem que quem morreu é bandido, nem dão bola. E quando acertarem uma criança, como vai ser? - critica um morador de 55 anos.
Tiroteios viraram rotina no Rincão
Conforme a 1ª DP de Gravataí, os dois bandos contam com armamento pesado. Azar de quem vive no meio dos conflitos. Há cerca de seis meses, a casa de uma moradora, de 21 anos, virou alvo.
A parede de madeira ainda tem os furos de calibre 12. Os tiros vararam a sala onde a família costumava se reunir para ouvir música nos finais de semana, ao lado de um fogão a lenha. Uma das balas ficou alojada em um quadro.
- Por sorte, não estávamos ali no dia - comenta a moradora.
Poderia ser ainda pior. Naquele domingo, além do filho de seis anos dela, estavam conversando, na área em frente à casa, duas vizinhas com seus bebês de menos de um ano. Só deu tempo de correr para os fundos.
Depois do episódio, guardaram silêncio. É a única forma de continuar levando a vida. Na última semana, por exemplo, um casal de idosos foi expulso de casa com a filha e os dois netos pelos traficantes aliados aos Manos, na Travessa Presidente Vargas. Ninguém sabe para onde foram, mas suspeitam que eles haviam denunciado uma boca de fumo.
Na manhã do sábado passado, José Ricardo Bueno da Silva, conhecido como Amarelo, supostamente envolvido no tráfico, foi executado na mesma travessa. No dia seguinte, a praça foi palco de um novo tiroteio, com um ferido. Tudo rotina, como confirmam os moradores.
O confronto
- Combatentes: Os Bala na Cara (herdeiros de Bico Fino, um traficante, já morto, que dominava o Rincão da Madalena. Estariam aliados e municiados pelo Bairro Bom Jesus) enfrentam Os Manos (remanescentes dos antigos patrões do tráfico no Loteamento Princesas, aliados com traficantes do Vale do Sinos).
- O alvo: dominar uma rota clandestina de tráfico, na área de mata fechada que separa as zonas central e norte de Gravataí.
- As baixas: seis mortos este ano.
Domínio da rota é o obetivo da guerra
A ponta do Rincão da Madalena é um dos territórios delicados dessa guerra. A outra é o Bairro Itatiaia. São os limites do objetivo das duas quadrilhas. O "Vietnã", como é chamada, é uma área de mata fechada nos arredores do Arroio Demétrio, próximo ao Rincão, que separa as zonas central e norte de Gravataí.
Moradores relatam que diversas trilhas foram abertas naquela área pelos traficantes. Serviriam de cenário para negociações dignas da máfia. A suspeita é de que grupos armados saiam do Rincão e do Loteamento Princesas para acertar negociações de drogas e armas longe de qualquer olhar suspeito, em meio à mata fechada.
As informações ainda são apuradas pela polícia, mas o chefe de investigação da 1ª DP de Gravataí, Jair Gonçalves, admite que os conflitos vão além da simples disputa por pontos de tráfico. Trata-se do domínio de uma rota.
A Travessa da Amizade marcaria o final do território sob domínio dos Bala, que almejam o "Vietnã", hoje dominado pelos Manos. Por isso, ao anoitecer, os soldados supostamente ligados aos Bala, que ambicionam a rota, ficariam de emboscada na esquina que dá vista para a entrada do matagal.
- Eles se posicionam ali e ficam cuidando qualquer movimento do outro lado. Se passa alguém, atiram. Não importa se é bandido ou não - comenta um morador de 55 anos.
A vítima inocente
A briga para controlar o corredor no Bairro Itatiaia deixou, no começo da última semana a menina Amanda Ritieli da Rosa Duarte, de sete anos, ferida gravemente. Ela foi baleada na madrugada da última segunda quando criminosos, supostamente ligados aos Manos, alvejaram a casa de madeira onde a menina dormia com os pais e as duas irmãs. Até sexta, a menina permanecia em estado grave na UTI Pediátrica do HPS.
Conforme a polícia, foram pelo menos 30 disparos de calibres 12 e .380. A suspeita é de que os traficantes do Loteamento Princesas tentavam eliminar uma suposta boca de fumo aliada aos Bala na Cara, do Rincão.
No cenário da guerra, aquele ponto seria estratégico para cortar a rota da droga que passa pelo "Vietnã".
Princesas é dos manos
O front dos Manos em Gravataí já foi mais tenso. Atualmente, conforme a polícia, os traficantes que estariam dando as ordens no Loteamento Princesas seriam todos jovens que tomaram o lugar dos criminosos veteranos. A turma antiga foi presa, na sua maioria, em 2011, depois de três anos de terror para as 248 famílias reassentadas na região.
Desde a transferência das famílias, que moravam antes às margens do Arroio Barnabé, a prática de expulsar os moradores das casas populares se tornou comum. O Demhab de Gravataí fez pelo menos dois recadastramentos na região entre 2009 e 2011, quando foi desencadeada uma operação policial que resultou em mais de 20 presos.
Agora, comprovando que seguem o estilo de domínio dos Manos, o bando estaria adotando a mesma prática contra as famílias da ponta do Rincão da Madalena, à beira do "Vietnã".