Polícia



Império em disputa

Tráfico em guerra por bocas de R$ 1,2 milhão

Desde o começo do mês, a polícia está alerta para a guerra que se anuncia na Vila Maria da Conceição. Três grupos querem o domínio das bocas de fumo da região

23/05/2013 - 07h15min

Atualizada em: 23/05/2013 - 07h15min


Bocas que movimentam pelo menos R$ 1,2 milhão por mês (R$ 300 mil por semana, segundo o Ministério Público) e o ponto privilegiado encravado numa área importante do desenvolvimento de Porto Alegre. Esses dois fatores explicam a guerra que envolve lideranças do tráfico da Vila Maria da Conceição, no Bairro Partenon.


A área, cercada por avenidas que ligam as zonas Leste e Sul da Capital, representa um mercado nobre para os traficantes. Usuários entram com facilidade e são atendidos nas vias. Estima-se que até 50 bocas de fumo funcionem na Conceição.


As vias urbanizadas protegem vielas, casebres e áreas ainda não regularizadas nas quais se criou, há pelo menos três décadas, um império do tráfico, até agora comandado por Paulo Ricardo Santos da Silva, o Paulão da Conceição. Mesmo preso na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas, ele comanda traficantes e quase tudo o que afeta a vida dos cerca de 15 mil moradores da vila.


Desde o início deste mês, esse império começou a rachar e está sendo disputado a bala. Foram mortos pelo menos três homens ligados a Paulão. E o medo dominou a comunidade.


Ruas, festas e escolas vazias


Entre os dias 9 e 17 de maio, houve toque de recolher, decidido pelos próprios moradores. Creches e escolas liberaram os alunos mais cedo, estudantes do turno da noite não foram à aula, as festas de Dia das Mães foram suspensas. Até uma missa foi cancelada.


- Só neste mês, as mães tiveram que recolher os filhos da pracinha cinco vezes por conta das trocas de tiros durante o dia. As crianças estão traumatizadas porque havia tempos não ocorria algo assim - conta uma mãe, que pediu para não ser identificada.


Soou o sinal de alarme


Há dez dias, a 1ª Companhia do 19º BPM decidiu reforçar o patrulhamento e as abordagens na região. Segundo o comandante, major Marco Antônio dos Santos Amaral, o principal motivo foi o assassinato de um sobrinho de Paulão. Carlos Maurício Silva Rabelini, o Boquinha, 21 anos, tombou atingido com mais de dez tiros em 8 de maio, numa residência na Rua João do Rio.


- A casa invadida pertence ao Paulão. Quando isso ocorreu, soou o sinal de que uma guerra estava iniciando. Invadir a casa do líder é confronto na certa - explica o oficial.


Um exército sem fim


Quatro dias depois da morte de Boquinha, mais equipes se juntaram às duas viaturas da BM que percorrem a vila 24 horas. Barreiras e abordagens são feitas nos entornos à tarde e à noite. Pelo menos 20 prisões por tráfico são feitas todo mês na vila.


O detalhe nessas prisões revela uma das maiores dificuldades para a polícia. O delegado do Denarc Rodrigo Zucco diz que praticamente todos os presos este ano não tinham antecedentes por tráfico.


- A mão de obra lá dentro é infinita. São usuários que, para sustentar o vício, entram para o tráfico. Geralmente, são pegos com pequenas quantidades e logo voltam às ruas como novos soldados da quadrilha - explica.


Em 2011, em ação na Rua Paulino Azurenha - onde se concentram as principais bocas de maconha e crack da vila -, o delegado fez uma declaração ousada:


- Agora, terminamos com o tráfico na Paulino Azurenha.


Não terminou. Nem é de se admirar. Conforme o Ministério Público, que na última década já formulou ao menos duas grandes denúncias contra a quadrilha, a cada três minutos são vendidas dez buchas de cocaína nas bocas da região.


Por enquanto, o "abafa" continua


A Brigada Militar garante que continuará com as ações para "abafar o tráfico". O Denarc promete manter ações em duas frentes: repressão e sufocamento dos bens dos traficantes. Em uma operação no ano passado, por exemplo, o departamento sequestrou em torno de R$ 1,5 milhão em bens do enteado de Paulão, Carlos Alberto Silveira Drey, o Beto Drey.


Mas o próprio diretor de investigações do Denarc, delegado Heliomar Franco, admite que apenas o trabalho policial é insuficiente. O major Marco Antônio dos Santos Amaral, do 19º BPM, concorda:


- O grande filé que sustenta o tráfico não é a comunidade. São as classes mais abastadas da Capital que vão até a vila buscar drogas para a diversão com os amigos.


Região é foco da construção civil


Para o delegado Heliomar Franco, só ações policiais não conseguirão eliminar o domínio do tráfico na Conceição.


- É preciso urbanizar por completo aquela área. Hoje, o traficante tem duas vantagens fundamentais, que são o terreno, com as vielas de difícil acesso às autoridades, e a falta de alternativas mais dignas aos jovens da localidade - aponta.


Se dependesse dos setores da construção civil, isso já teria acontecido. Desde 2011, o Bairro Partenon figura, segundo as entidades imobiliárias e da construção, entre os mais atraentes para investimentos. A importância cresceu com as obras da Copa - o viaduto da Terceira Perimetral e o corredor do BRT, ambas na Bento.


Desvios dificultam abordagens


Mas, até nesse aspecto, os criminosos foram mais rápidos do que as autoridades públicas. Um dos motivos da cobiça pelo império está exatamente no novo boom da construção. E ainda tem a malandragem para driblar o policiamento.


- Antes dos desvios na Bento Gonçalves (devido às obras), sabíamos diferenciar exatamente quem estava apenas cruzando as ruas, como a Barão do Amazonas e a Paulino Azurenha, e quem vinha buscar droga. Agora, fica difícil porque todos estão passando por aqui - diz o major Marco.


Crime cruel confirma disputa na vila


Se a morte do sobrinho do Paulão chamou a atenção da polícia para a guerra na vila, não foi menos chocante a forma como um dos supostos gerentes do tráfico foi executado.


No dia 10 de maio, um corpo foi achado enrolado em um papelão no Bairro Nonoai, na Zona Sul. O homem levara pelo menos cinco tiros no rosto e teve um dos olhos arrancado. O DML confirmou se tratar de Rafael Pereira Santiago, 37 anos.


Era a confirmação do que os moradores falavam nas ruas da vila. Sabiam que havia um terceiro corpo nessa guerra, mas ninguém sabia onde ele estava. O caso é apurado pela 4ª DHPP.


Polícia mantém investigações em sigilo


Encravada no coração da vila, em um prédio na Rua Barão do Amazonas, a 1ª DHPP investiga os outros dois assassinatos relacionados ao conflito. Todas as informações são mantidas em sigilo. A polícia confirma apenas que os crimes têm relação com a disputa pelas bocas até então dominadas por Paulão.


O cenário da guerra 


O que está em jogo:


- São mais de 50 bocas de fumo que movimentam mais de R$ 1,2 milhão por mês.


- A vila fica em meio ao bairro de maior densidade demográfica da Capital, com 7,5 mil hab/km². Porto Alegre tem 2,8 mil hab/km².


- Em 2011, o Bairro Partenon foi apontado pelo Sinduscon entre os seis de maior oferta de imóveis em construção. Em abril de 2013, foi considerado pelo Secovi como o sexto em oferta de imóveis para venda. É o terceiro em número de unidades habitacionais para aluguel.


- O novo chefão - Um antigo homem de confiança de Paulão, conhecido como Xu, estaria aproveitando a saúde debilitada do traficante para se aliar com criminosos de fora da Vila Maria da Conceição e tomar o poder. A polícia investiga a hipótese de o tal aliado ser a facção dos Bala na Cara, do Bairro Bom Jesus. Eles seriam os responsáveis pelas primeiras mortes nos confrontos.


- Durante os anos 1990, Paulão fez a divisão territorial dos seus domínios. Na parte alta da vila, ficam as bocas de cocaína. Na baixa, onde fica a Rua Paulino Azurenha, são vendidos maconha e crack. De acordo com a Brigada Militar, porém, hoje a divisão das regiões já não existe mais.


- Quando Paulão foi preso, em 2010, ele próprio teria delegado o domínio da parte baixa da Conceição ao enteado Beto Drey. A parte alta era gerenciada pelo braço direito do traficante, conhecido como Xu e um comparsa, Juvenil Marques de Souza Júnior, morto no ano passado. Todos deveriam responder a Paulão.


- Os herdeiros - Comandados por Beto Drey, o enteado de Paulão, seriam um grupo de remanescentes da vila e que, até então, detinha o poder herdado pelo patrão. Conhecido por seus métodos violentos de impor dominação, o suposto líder, atualmente na cadeia, estaria prestes a receber o benefício da progressão para o regime semiaberto. Na vila, os comentários são de que o grupo organiza uma violenta reação armada.


- Os aliados - A polícia apura uma aliança que teria surgido dentro da penitenciária de Charqueadas. Paulão, com problemas de saúde e com o comando reduzido, teria formado uma parceria com o traficante conhecido como Primo - um dos líderes do tráfico na Restinga - para restituir a "ordem" nas bocas da Maria da Conceição. A ordem seria fazer uma "limpeza" na área e restabelecer o império que tornou a vila um dos pontos de tráfico mais famosos da cidade.


Conceição é o último grande império da droga


RENATO DORNELLES

renato.dorneles@diariogaucho.com.br


A guerra na Vila Maria da Conceição segue uma tendência do mercado varejista de drogas, iniciada ainda nos anos 90, no Rio de Janeiro: a fragmentação dos grandes impérios.


Aliás, em Porto Alegre, a Conceição pode ser considerada o último império, daqueles cujo um único líder ou um pequeno grupo domina uma grande área - tal qual foi, por exemplo, o de Anão e de Carioca, no Morro da Cruz, nos anos 70 e 80.


O modelo seguido pelos traficantes Anão e Carioca, e até então existente na Conceição, foi criado no Rio de Janeiro, nos primórdios das grandes organizações criminosas (Falange Vermelha, Comando Vermelho, Terceiro Comando...): um líder, oriundo da própria comunidade, era, ao mesmo tempo, o chefe do tráfico no local e um "benfeitor."


Em sua estratégia de dominação, esse líder ocupava as brechas deixadas pelo Estado, fazendo assitencialismo e, à sua maneira, garantindo até a segurança dos moradores. Com isso, conquistava a simpatia de parte deles.


A partir dos anos 90, porém, o tráfico cada vez mais lucrativo gerou a ganância que, por sua vez, pôs fim à lealdade e à confiança antes existentes. As lideranças passaram a ser questionadas, principalmente pelos traficantes mais jovens, que sonhavam com os supostos benefícios do comando: dinheiro e poder. As consequências foram e são as disputas sangrentas pelos pontos de vendas de drogas. No tráfico pós-impérios, os líderes não mais fazem assistencialismo: impõem-se perante as comunidades na base da violência e das ameaças.


As primeiras baixas


- 5/5 - Bruno Bicca, 22 anos, foi morto com três tiros na cabeça na frente de casa, no Beco da Bruxinha, na Rua Paulino Azurenha. Bruno era conhecido na vila por ser afilhado de Paulão. Nas festas da comunidade, costumava contribuir com doces para as crianças, mas não participava dos eventos.


- 8/5 - Carlos Maurício Silva Rabelini, o Boquinha, 21 anos, foi morto com mais de dez tiros por dois homens que invadiram a casa onde ele estava com a irmã, na Rua João do Rio. Boquinha era sobrinho e aliado de Paulão, e tornou-se inimigo de Beto Drey. Era considerado um dos líderes da quadrilha. Cabia a Boquinha o controle do dinheiro do bando e da distribuição de drogas entre as bocas.


- 10/5 - Rafael Pereira Santiago, 37 anos, foi encontrado morto com pelo menos cinco tiros na cabeça. O corpo foi abandonado no Bairro Nonoai. Era considerado um dos antigos gerentes do tráfico na vila, um cargo de confiança do patrão.


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