Polícia



Violência

Gangues se enfrentam nas ruas da Restinga, na Zona Sul da Capital

Rixas são os principais motivos da criminalidade na região de Porto Alegre

29/07/2013 - 07h48min

Atualizada em: 29/07/2013 - 07h48min


Ação da BM nas ruas da Restinga é constante

O tráfico está por trás da imensa maioria dos tiroteios e assassinatos, certo? Errado. Ao menos quando se fala da Restinga. O bairro da Zona Sul da Capital, com mais de 80 mil habitantes, é palco de uma situação atípica. Não há guerras por pontos de tráfico.

Os índices de assalto a veículos e de roubo a estabelecimentos são baixos, em relação a outros bairros. Mas a região virou cenário de uma explosão de gangues (cheias de adolescentes). Agora, coisas banais, como disputas por gurias, bailes e até preferência musical, são motivos para tiros. De acordo com a Brigada Militar, há pelo menos 17 bandos agindo no bairro.

Gangues impõem leis

Para comemorar seu aniversário de 21 anos, um rapaz alugou um salão no bairro e fez um baile funk. Dias depois, na rua, levou um tiro no ombro direito - só não foi executado porque conseguiu correr. Antes de atirar, os criminosos explicaram o porquê da violência: ele havia feito a festa na "área deles", sem autorização.

- São vários e vários casos parecidos, uma situação endêmica - analisa o titular da
4ª DHPP, delegado Gabriel Bicca.

Comandante do 21º BPM, responsável por grande parte da Zona Sul da Capital, o tenente-coronel Oto Amorim também acumula histórias semelhantes. Na semana passada, PMs apreenderam um rapaz de 15 anos com uma pistola.

Oito menores foram feridos

Ao ver o rapaz cabisbaixo, pensativo, o coronel o lembrou:

- Agora não adianta, você será levado ao Deca e pode ir para a Fase.

A resposta do menino surpreendeu o oficial:

- Eu nem tô (preocupado). Tô pensando é onde vou arrumar dinheiro para comprar uma outra arma quando eu sair.

Exemplos assim fazem o policial civil e o militar terem certeza de que há algo errado na formação dos jovens. De janeiro a julho, oito menores foram baleados no bairro. A BM registrou 92 pessoas feridas a tiros, mas Amorim admite que o número pode ser maior.

Faltam alternativas

Conforme Bicca, dos 280 inquéritos a cargo da 4ª DHHP, pelo menos 40% (112) são sobre homicídios (ou tentativas) na Restinga.

- Sempre é coisa de uma gangue contra a outra. A simples futilidade de se pertencer a um grupo e entrar no território de outro, até para visitar um amigo, gera uma morte - acrescenta.

Para Amorim, a ausência de "diversões modernas" como shoppings e cinemas na região, é um motivador para a criminalidade.

- Quem é pego com arma fica muito pouco tempo preso. Se não criarem atividade para essa gurizada, não sei onde a coisa vai parar - diz o comandante.

O delegado Bicca completa:

- A própria comunidade tem de dar um basta nisso, e não é só reclamar. É preciso denunciar, ajudar o trabalho da polícia.

17 bandos estão à solta

Um levantamento feito pelo 21º BPM identificou 17 gangues em atividade na Restinga, além de pelo menos mais seis espalhadas em outros bairros da Zona Sul, como Lami e Belém Novo. PMs do serviço de inteligência acreditam que, entre filiados e familiares que dão apoio, o número de membros supera 300 pessoas.

O fato de o bairro ser um Território da Paz (área definida como prioritária pela segurança pública a partir dos índices de homicídios) não tem sido suficiente para impedir a violência.

Na quinta-feira passada, o Diário Gaúcho acompanhou uma ronda do Pelotão de Operações Especiais (Poe) do 21º BPM. Em menos de 5km, a viatura passou por áreas de pelo menos cinco gangues - em cada uma, havia ao menos uma boca de fumo identificada pelos policiais.

Traficante reclama da violência

Na Rua Antonio Onofre, um traficante de 36 anos (oito deles, passou na prisão), vinculado à gangue do Alemão, foi abordado. Mas, como os PMs não encontraram drogas com ele, foi liberado.

Quando os brigadianos foram embora, ele aceitou falar com a reportagem sobre a boca, que rende "pouco menos de R$ 4 mil por dia":

- A gente vende, mas somos da paz. Todas as bocas eram amigas, mas aí os Milton (rivais) cresceram o olho. São os Bala na Cara que tão alimentando eles. 

Mas assegura: as mortes pela disputa ainda não começaram. Hoje, o motivo é outro.

- Parece mentira, mas começou do nada. As brigas eram porque uma turma botava o som alto e a outra não curtia aquele funk. Ou pelas gurias. Teve até por não gostar da roupa que um cara usava. Qualquer coisinha, um já ia em casa e pegava o ferro (arma de fogo). Virou isso aí, um não pode mais pisar na área do outro - resumiu.

Um filho morto, um preso e um fugido

Dois anos atrás, Neusa Maria dos Santos, 42 anos, nascida na Restinga, viu seu filho mais velho, 22 anos, ser assassinado a tiros. Os dois irmãos menores se revoltaram, tentaram vingar a morte do mano e foram presos.

Um deles saiu da cadeia este ano e, jurado de morte, mudou-se de bairro. O outro permanece no Presídio Central.

- Pelo menos lá ele está vivo - conforma-se a mãe, que pediu para não divulgar o nome dos três irmãos.

Segundo ela, a morte e as brigas não tiveram origem no tráfico.

- Essa gurizada confundiu as coisas, não respeitam mais ninguém. Disputa por causa de guria ou qualquer bobagem vira morte. Eu mesmo quase não saio de casa. A gente tá sempre escutando tiros - protesta.

Pichação, uma das marcas

Poucos metros depois da Boca do Alemão, os policiais passam por uma área na qual, em muros e postes, aparece a sigla MD. A pichação é a marca da gangue dos Madeireira, tida como uma das mais fortes e bem armadas da região.

- Eles usam as armas para cometer assaltos fora da Restinga e, ao mesmo tempo, se defender dos rivais quando estão no bairro - conta um PM.

Segundo o policial, que pediu para não se identificar, os vendedores das bocas ganham cerca deR$ 200 por dia. A maior parte, gastam em bares e festas pela própria região. Dessa maneira, acabam fomentando o comércio legal e, assim, ganhando alguma admiração e até apoio de alguns moradores.

Semelhante à máfia

Doutora em Psicologia e professora de pós-graduação da área na Unisinos, Silvia Benetti observa que, em linhas gerais, no mundo todo "há um crescimento de características narcisistas, o individualismo. Estamos vivendo uma situação na qual as pessoas compreendem e interpretam as outras pelo que vestem, pela posse de objetos".
- O jovem tenta fazer agrupamento social com seus valores - resume.

No Bairro Restinga, muitas vezes, gerações passam para filhos as bocas de fumo e até asseguram a inserção deles em quadrilhas. A psicóloga compara essa situação às máfias nova-iorquina (EUA) e siciliana (Itália) dos anos 50.

Crianças são o foco principal

- Uma transformação não é simples, leva anos. O que a gente tenta fazer é trabalhar os adultos, seja através de futebol, algo da região, enfim, qualquer coisa para criarem identidade e não se enxergarem como sobreviventes, e sim alguém que tem projeto futuro. Muitas vezes, fala-se que essas pessoas sequer sabem onde estão os pais ou a data de aniversário dos filhos.

O principal foco, lembra Silvia, devem ser as crianças. E, depois da família, a segunda maior fonte de socialização é a escola.

- Mas a gente sabe a situação em que muitas das escolas  estão - adverte.

Apreensões 2013

MUNIÇÕES: 1.433 - 806 de pistola, 594 de revólver, 32 de espingarda e uma
de fuzil

ARMAS: 130 - 88 revólveres, 31 pistolas, dez espingardas e um fuzil. Em julho, foram 24 armas localizadas

* Dados da BM até 24/7

"Pode ser que eu pare"

Longe dos PMs, a reportagem flagrou um jovem comprando drogas em uma das bocas.

- Uso no máximo duas vezes por dia. Faz um ano. A fissura dura uns 20 minutos - conta, o jovem, que diz ter 19 anos.

Por uma dose de não mais de 5g, ele disse ter pago R$ 10, dinheiro conseguido com o trabalho de empacotador em uma rede de mercados.

Claramente ansioso, movimentando bastante as pernas e as mãos, antes de ir para casa ele comenta:

- A gente nunca sabe o dia de amanhã. Pode ser que eu pare.

"Termina em tiro"

Abordado pela polícia no dia em que completava 30 anos, um morador, com antecedentes por porte ilegal de arma e já conhecido dos PMs, assegura:

- Preciso me defender. É só para isso. Mas não tenho mais arma.

Ele conta que, recentemente, um dos tiroteios na Restinga, promovido por adolescentes, teve origem na internet.

- Os caras de uma vila ficam mordidos porque as amigas deles, pela internet, conhecem os guris de outra vila. E termina em tiro. Se olhar por aí, o que não falta é marca de bala nos muros - resume.

As brigas quase sempre, acabam envolvendo famílias inteiras.

- Alguns até querem largar essa vida, mas não é fácil. Só dá pra fazer isso se mudando. Ou matando o rival. Aliás, nem assim, pois depois vem um parente para te matar - diz.

No tráfico, aos 12 anos

Um menino que completou 12 anos em dezembro foi pego com crack e dinheiro proveniente da venda de drogas, na noite de sexta passada, perto da Boca do Alemão, conhecida zona de tráfico no Bairro Restinga. Os PMs encontraram R$ 167 em notas de baixo valor e, dentro de uma embalagem de confetes M&M, 99 pedras de crack.

- Ele comentou que só queria sustentar os irmãos. Nos garantiu ter começado a vender drogas na sexta mesmo - contou a soldado Oriana Burin.

De acordo com a Brigada, o guri tem cinco irmãos - dez, oito e dois anos, e o caçula de oito meses. O menino foi encaminhado ao Deca.

Vítimas de "forasteiros"

Raríssimas vezes os comerciantes são vítimas dos bandidos locais. Mas não estão livres: a polícia já detectou que ladrões dão dicas a "amigos" de outras regiões.
Foi o que, acredita a polícia, ocorreu com Denilson Santos, 39 anos. Há menos de um ano, ele montou um minimercado na Restinga.

Domingo passado, três homens invadiram o local. Levaram mercadorias e dinheiro. Fugiram a pé. Cerca de dez fregueses também foram roubados. À polícia, declararam ter certeza de que os criminosos não eram dali.

SAIBA MAIS

Vítimas de disparos

- 2012 - 60 
- 2013* - 92 (aumento de 53,3%)

Homicídios

- 2012 - 18
- 2013 - 11*

- Nos demais bairros da Zona Sul na área do 21º BPM, como Chapéu do Sol, Lami e Belém Novo, foram 13 mortes este ano, contra seis em 2012.

* Dados da BM até 24/7

Gangues na Restinga: Madeireira, Nê, Esquina, Alemão, Rato, Milton, Primeira (Maconhão), Bambam, Primo, Bitas, Rondônia, Silvano, Balãozinho, Fofo, Tati Gorda, Velho Teco e Márcia.

Outras gangues:  Pepé (Chapéu do Sol), Sidnei (Ponta Grossa), Bolívar (Lami), Beco 2 e 3 (Belém Novo), Edmundo (Lageado) e Lucio (Hípica/Beco do Adelar).


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