Polícia



Ocupado pelo crime

Traficantes tomam conta de loteamentos populares na Restinga

Criminosos já correram mais da metade dos moradores dos condomínios Ana Paula e Camila, na Restinga

23/05/2014 - 08h13min

Atualizada em: 23/05/2014 - 08h13min


Lívia Stumpf / Agencia RBS
Moradores de residencias da Restinga vivem com medo do tráfico e tem que conviver com a insegurança

Estavam silenciosos os caminhos entre as casas do condomínio Camila da Paz e os blocos do condomínio Ana Paula, no Bairro Restinga, na tarde de quinta-feira. A presidente da associação dos moradores, Sônia de Fátima Braga, quer acreditar que este é um sinal de que o clima melhorou, e os traficantes já não ameaçam a tranquilidade na comunidade. Mas não é o que pensam moradores. A calmaria, segundo eles, é um sinal de alerta.

- Os caras (traficantes) mandaram o recado para o pessoal não circular por aqui quando anoitece, porque a bala pode comer a qualquer hora - disse, rapidamente, um morador.

Os dois projetos do Minha Casa, Minha Vida foram entregues entre 2011 e 2012 para 608 famílias com renda até três salários mínimos. A estimativa é de que apenas 40% dos proprietários continuem morando no Camila. No Ana Paula, não há sequer estimativa. Pois o tráfico não perdeu tempo em acabar com o sonho da casa própria.

Conforme investigações da 16ª DP, se as churrasqueiras viraram a boca, alguns apartamentos - por vezes revezados - servem para armazenar drogas. Outros, para guardar armas. E o salão de festas do condomínio Ana Paula foi completamente depredado. Entre pichações, sujeira e destruição da estrutura construída, funcionaria o "fumódromo" dos traficantes.

- A ideia era fazer do salão um espaço para trabalhar com as crianças, mas de que jeito? Eu tenho a esperança de revertermos ainda essa situação - diz Sônia.

É que a depredação no salão está longe de ser exceção. Mesmo com guaritas construídas, as vigilâncias não resistiram e hoje já não existem. Praticamente, não há mais grades entre os condomínios. Pichações nas paredes e apartamentos com vidros quebrados são visíveis. E o que era para ser uma pracinha entre os dois conjuntos habitacionais, sumiu.

- Infelizmente, muitas famílias de lugares diferentes, com rivalidades, foram contempladas para morar aqui sem uma estrutura pública de educação para esse convívio entre os jovens - diz a presidente da associação.

Emboscada na churrasqueira

O silêncio desta semana é o reflexo direto do último capítulo de violência vivido entre os condomínios. Eram em torno de 17h do domingo passado, quando um grupo armado enveredou no corredor entre os dois conjuntos e surpreendeu um grupo que se concentrava nas churrasqueiras já depredadas do Camila. Conforme denúncias, as churrasqueiras há muito não servem ao lazer. Foram transformadas em ponto de venda de droga.

O alvo era o homem apontado como o líder do tráfico local, conhecido como Alemão. Baleado, ele segue internado no HPS. Quem levou a pior, no entanto, não tinha nada a ver com os confrontos de traficantes. Um jovem de 15 anos foi baleado na cabeça e morreu no local. Ele não era morador dali. Estaria visitando o pai, que recentemente teria comprado - irregularmente - um apartamento no condomínio Ana Paula.

O boato que corre pelos condomínios é de que o revide, ou um novo ataque, pode acontecer a qualquer momento.

Estruturas facilitam o controle pelo medo

Na 16ª DP, acumulam-se dezenas de denúncias de ameaças e até mesmo expulsões de casa pelos traficantes dos dois condomínios. Parte dos moradores que foram beneficiados pelo programa governamental repassou as chaves, irregularmente, por medo. E a revenda de imóveis nas redes sociais é escancarada.

A ousadia dos traficantes, com um teto privilegiado para arregimentar soldados, aumentou em relação aos seus antigos territórios. Foi o que os investigadores da 4ª DHPP observaram quando chegaram ao local de um assassinato no condomínio no começo do ano. Enquanto tentavam conversar com os familiares da vítima, um guri com não mais do que 12 anos teria sentado ao lado deles, dentro do apartamento. O policial estranhou:

- Quem tu és?

- Sou amigo dele - disse o guri apontando para o primeiro que viu.

O rapaz, assustado, garantiu que não o conhecia. Para a polícia, era um olheiro do tráfico.

- Se na vila eles já tinham poder de coação sobre testemunhas, dentro de um condomínio, isso fica ainda mais evidente - comenta o delegado Rodrigo Pohlmann.

Os que sofrem ameaça, mas são obrigados a ficar, precisam se submeter às regras do crime. A qualquer momento, podem ser requisitados a guardar armas ou drogas.

Ocupação pela malandragem

Em agosto do ano passado, uma operação da delegacia escancarou como as coisas acontecem. Dois adolescentes, irmãos, de 15 e 17 anos, foram apreendidos com drogas e armas em um dos apartamentos do Ana Paula. Eles moravam sozinhos ali.

É que pai e mãe teriam se candidatado no Demhab aos imóveis. Alegaram serem separados e foram contemplados com dois apartamentos. Mas os dois vivem juntos e entregaram o outro imóvel aos guris, que se tornaram traficantes.

Os dois projetos eram voltados a famílias com até três salários mínimos. A venda dos imóveis antes da quitação do financiamento na Caixa Federal é ilegal. Mas alguns contemplados sequer entraram nos imóveis. Quando chegaram ali, já estavam invadidos.

- Alguns venderam e repassaram as chaves, e aí quem entrou nunca pagou para a Caixa - conta a presidente da associação de moradores.

Caixa investiga os condomínios

Do ponto de vista habitacional, a situação já chegou ao extremo. O Camila passa por vistorias da Caixa para verificar ocupações irregulares, e por isso os moradores não tiveram liberados nem os contratos de compra e venda. Já o Ana Paula está em processo de retomada pela Caixa, por inadimplência e outras irregularidades.

A reportagem procurou a Caixa, que não se manifestou sobre o assunto, afirmando que a responsabilidade seria dos ministérios das Cidades e da Justiça. O Demhab, que repassou os cadastros de candidatos sorteados aos apartamentos e casas, alega que a responsabilidade pelos dois condomínios não é mais sua.

Traficantes estão em guerra

Como se não bastasse a ocupação dos condomínios pelos traficantes, os moradores agora estão em meio a um fogo cruzado. Há uma guerra aberta a partir do racha entre os dois supostos líderes do tráfico no local.

De acordo com os investigadores da 16ª DP, a gangue dos Bitas controlava as bocas até o ano passado, mas um dos líderes teria sido expulso do condomínio Camila pelo seu até então sócio. Voltou à Vila Bita, uma área irregular aos fundos dos condomínios, e agora estaria ensaiando a retomada das bocas.

- Assim como faziam nas vilas, os traficantes também foram para os condomínios. E lá, aperfeiçoam a forma de controlar a comunidade, esconder armas e drogas - afirma o delegado Rodrigo Pohlmann, da 4ª DHPP.

O traficante conhecido como Alemão veio da Lomba do Pinheiro para um dos apartamentos do Ana Paula.

E a mistura de origens nas moradias incluiria pessoas vindas de áreas rivais dentro da Restinga, além de municípios da Região Metropolitana. O resultado, de acordo com o comandante do 21º BPM, tenente-coronel Oto Amorim, é visto quando os PMs tentam abordagens entre os condomínios.

- Sempre que a Brigada esteve lá para abordar em busca de armas e drogas, no estacionamento, a comunidade foi contrária, arremessaram objetos contra os policiais. Então passamos a abordar fora do condomínio e já apreendemos algumas armas ali - comenta o oficial.

A associação de moradores já teria conversado com a Brigada para levar para os condomínios o ônibus do Território da Paz, mas não há consenso.

- Se querem um policial apenas para ficar parado lá, sem abordagens, não adianta. Eu quero PM atuando, não apenas presente - afirma o comandante.

Para fugir, só com novas ocupações

Uma das consequências diretas do medo da dominação do tráfico em novas moradias é o retorno a antigas áreas de ocupação, ou a criação de novas. De acordo com o diretor geral do Demhab, Éverton Braz, não são raros os casos de retomada de imóveis judicialmente depois de invasões ou expulsões de famílias que tinham direito a moradias populares. Ele admite, no entanto, que a maior parte dos casos relacionados à violência nem chega ao órgão municipal.

Foi o que aconteceu à família de Cláudio Almeida do Amaral, 38 anos, executado a tiros por dois homens e uma mulher dentro de casa, no loteamento Campos do Cristal, o Cristalzinho, na Vila Nova, no Natal do ano passado. De acordo com a investigação da 4ª DHPP, os criminosos teriam matado Cláudio porque queriam ocupar a sua casa.

A família era uma das 188 transferidas pelo município das áreas de risco junto ao Arroio Cavalhada, como contrapartida na construção do Barra Shopping. Depois do crime, a mulher da vítima, de 34 anos, e o seu enteado, de 15 anos, que ficaram feridos pelos tiros, foram embora para morar em outra área irregular da Zona Sul.

- Já nos deparamos com casos de ameaças feitas a famílias por criminosos em que temos que mudar os ocupantes das casas por segurança - conta Éverton.

Segundo ele, essa situação está disseminada nos condomínios e loteamentos populares da cidade.


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