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A história de Carlos Alberto Jardim Fontoura, o Du: negro pobre e da periferia

Ser negro, classe baixa e viver na periferia significa portas fechadas ou sentença de morte

03/06/2014 - 09h03min

Atualizada em: 03/06/2014 - 09h03min


Du foi criado na Vila Pedreira. A família chegou na localidade no começo dos anos 1980.

Era agosto de 2005 e não havia alarde ou holofotes no barranco de terreno irregular do Campo Santo, no Cemitério da Santa Casa. Era só mais um dos 800 sepultamentos dedicados aos mais pobres de Porto Alegre. O único que a família humilde da Vila Pedreira, em uma das pontas da Grande Cruzeiro, na Zona Sul da Capital, poderia ter.

- Não se pode gastar com isso - diz, com a segurança de quem tem o sentimento endurecido pelo tempo, a empregada doméstica Ana Margarida Jardim Fontoura, hoje com 58 anos.

Em uma das covas rasas com menos de 1m² e uma singela cruz de metal ela deixou Alexsandro Fontoura Jardim, nascido em casa, negro, pobre e sem o nome do pai na certidão de nascimento. Tombou um dia depois de completar 25 anos, morto a tiros na Avenida Ursa Maior, a poucos metros de onde havia sido criado, resultado de uma disputa do tráfico.

Entre os poucos que foram se despedir estava o irmão, Carlos Alberto Jardim Fontoura, o Du, então com 13 anos. Calado, como lembra a mãe, ele parecia mastigar mais um golpe sem saber como reagir. Mesmo tão jovem, já colecionava um histórico de perdas. Foi amadurecido na marra.

Era a quarta vez que Du voltava àquele lugar para se despedir de um irmão vitimado pela violência. Entre os dez filhos de Ana Margarida, a partir daquele momento, ele seria o único homem. Sim, um homem aos 13 anos. Negro, pobre, analfabeto e, à exemplo do irmão, sem o nome do pai sequer na certidão de nascimento. Aliás, até os oito anos, Du sequer existia nos registros oficiais. Só foi registrado em 2000.

Quando aparece, tem que se agarrar

Desde muito cedo ouviu da mãe o que a vida ensinou a ela poderia lhe deixar:

- Para a gente que é preto e pobre, qualquer pequena chance custa a aparecer. E quando aparece, tem que se agarrar de tudo que é jeito. Porque não vai aparecer de novo.

Naquele agosto de 2005, a missão estava dada - ou melhor, herdada - para o Du: contrariar a lógica do "pau que nasce torto nunca se endireita" ou entrar para a estatística.

O estudo "Vidas perdidas e racismo no Brasil", da Fundação Getúlio Vargas e do Ipea, mostra que apenas 20% das mortes de negros e pardos no país pode ser atribuída diretamente à pobreza. O racismo, mesmo velado, se esconde entre os outros 80%. 

Em Porto Alegre, a chance de um negro ou pardo ser assassinado é maior do que o dobro da de um branco. Se nas ruas do Estado a população negra representa um sexto dos habitantes, dentro do Presídio Central essa proporção é de um terço.

Escolas e cursos não adiantaram

Mas Ana Margarida está longe de se considerar uma vítima da sociedade.

- Eu nunca deixei entrar uma droga, uma arma na minha casa. Ensinei para eles que, para conseguir qualquer coisa, tem que trabalhar muito. Consegui colocar todos eles em cursos para serem alguma coisa na vida, e não adiantou. Acho que eu fiz o que pude - desabafa a mãe.

Todos os guris, ao menos, passaram por escolas e por projetos sociais. Em comum, abandonaram essas estruturas - ou foram abandonados por elas - e nunca tiveram sequer carteira de trabalho assinada.

Vítimas sem oportunidade

- Não se trata de uma vitimização gratuita e vai muito além de uma escolha individual. Jovens como esse são, sim, vítimas da estrutura social que restringe oportunidades. Não é ter acesso a uma escola, mas a um ensino de qualidade. Não é ter um trabalho, é ter condições de pensar em uma carreira profissional digna - avalia a socióloga Rochele Fachinetto.

Dissociar a exclusão social da cor da pele, para a pesquisadora da Ufrgs, especialista em Violência e Cidadania, é impossível no Brasil.

- Temos um histórico de escravidão e nunca houve inclusão real. O jovem negro ou pardo já cresce com uma série de estereótipos a serem vencidos. Não é que todo o jovem negro e pobre vai ser vítima e também autor da violência, mas é uma tendência real - diz.

Du nasceu em casa, na Vila Pedreira, como os irmãos, em janeiro de 1992. O nono filho de Ana Margarida. A família chegou naquele lugar no começo dos anos 1980, quando o terreno, até então pertencente ao Hipódromo do Cristal e explorado por uma pedreira, começava a ser desativado pela empresa para se tornar mais uma invasão popular.

Ana tinha três filhos pequenos - duas meninas, de quatro e dois anos, e um menino, Evandro, de cinco -  e grávida do Alexsandro. Foram empurrados para lá.

- Nós morávamos bem na casa de uma tia que me criou, mas, quando ela morreu, a família resolveu dar um enterro de "gente fina" para ela. Deram os cheques e, quando chegou na metade, faltou dinheiro para pagar. Tive que vender a casa e achamos um lugar na Pedreira - conta a empregada doméstica.

Irmão mais velho era a esperança da mãe

Não era propriamente um terreno estranho para ela. É que, como o Du aprendeu naquele 2005, sua história seria de herança. Ana nasceu na Vila Formiga, também na Grande Cruzeiro, mas foi criada pela tia na Zona Leste. Não seguiu nos estudos - como repetiriam seus filhos anos depois - e aos 13 anos já trabalhava como doméstica.

Chegou a imaginar um destino diferente para os filhos. Os dois pequenos frequentavam uma creche no Partenon. Quando chegou na Vila Pedreira, porém, não havia creche, esgoto ou luz.

Ainda assim, a mãe dedicada conseguiu matricular Evandro, o mais velho, no internato da Fundação Pão dos Pobres. Quando saiu de lá, já tinha oito irmãos. Ele seria o exemplo a ser seguido em um cenário sem perspectivas.

Para o pequeno Carlos Alberto, por exemplo, representaria a primeira porta a ser aberta para que tivesse um bom rumo positivo. Ao menos, era a esperança da mãe.

Cocaína fechou a primeira porta

Evandro era apaixonado por animais e, com o ensino médio concluído aos 18 anos, sonhava em cursar Veterinária. Faria o vestibular em 1995, mas nunca chegou a isso. Foi a primeira perda violenta da família. E a primeira porta a se fechar para os pequenos.

- No tempo do internato, ele só voltava para casa nos finais de semana. Aprendeu marcenaria, padaria e conseguiu terminar os estudos lá - conta Ana Margarida.

Mas o filho voltou e caiu de paraquedas na Vila Pedreira. Usou cocaína injetável e, em menos de um ano definhou, vitimado pela Aids.

No mesmo ano, pela terceira vez, Ana se tornou "pãe" - pai e mãe dos seus filhos. Du tinha três anos quando o pai o abandonou.

- Ele começou a beber demais e eu nunca fui de aturar desaforo de homem. Mandei embora mesmo - lembra a doméstica.

Ela estava grávida do décimo filho. Se chamaria Evandro, nascido em junho de 1995. Já viria ao mundo sem pai.

À espera da creche

Hoje pelo menos 1,5 mil famílias vivem na Pedreira. Faz quatro anos que a comunidade espera pela criação da primeira creche, ganha no Orçamento Participativo de 2010 e até hoje não executada. O posto de saúde serve à Pedreira e a outras três comunidades vizinhas.


Esforço dos professores não impede a evasão escolar na Cruzeiro do Sul. Foto: Marcelo Oliveira / Agência RBS

Sem o pai fica difícil

- A relação entre a ausência da função paterna e o aumento do comportamento delinquente e o contato com as drogas é direta. Uma mãe até pode conseguir suprir essa função, mas na realidade são dois papéis diferentes. Se ninguém assume, a criança cresce com uma lacuna - afirma o psiquiatra Jorge Trindade.

Há 21 anos ele estuda o tema da ausência paterna na formação de jovens. Segundo ele, o pai tem a missão de transmitir as ideias de lei e culpa. 

- Nós vivemos em uma sociedade carente de bons modelos. A função paterna poderia ser encontrada na família, no time de futebol, na comunidade ou na escola. Mas, se todas essas estruturas falham, seguir alguém como o chefe do tráfico ou um ídolo errado é natural - diz.

Aí, resume o pesquisador, a vida costuma ser curta.

Casa? Não, rua

A morte do filho mais velho e o abandono do companheiro parecem ter quebrado a tênue linha que mantinha os meninos de Ana Margarida no caminho certo. Em pouco tempo, a rua virou lugar mais atraente do que a casa. Mas já não era a mesma rua que Ana Margarida havia encontrado quando chegou na Pedreira.

- Naquele tempo, as crianças brincavam na rua até tarde, a gente podia andar tranquilamente, mas a coisa começou a mudar. Hoje eles (traficantes) cuidam até quem caminha na rua - diz.

Aos 18 anos, em 1998, Alexsandro foi embora de casa. Envolvido no tráfico, em pouco tempo passou a ser conhecido. Saiu da Cruzeiro para a Vila No Limite, no Bairro Teresópolis. Era gerente de uma boca. E a mãe decretou, como um recado aos mais novos:

- Esse não passa dos 20 anos.

Mas Paulo Roberto Jardim Rocha foi vitimado antes. Aos 18 anos, em janeiro de 2004, foi morto a tiros quando, supostamente, tentou roubar a moto de um policial civil no Parque Marinha do Brasil. Desde os nove anos, ele havia se habituado a viver pelas ruas, pedindo esmolas ou de carroça. Mas era, segundo a mãe, o braço forte da casa.

- Foi um baque quando ele morreu, porque o Paulo Roberto sempre foi trabalhador. Me ajudava com os pequenos como um pai. Os guris sentiram muito a morte dele - lembra Ana Margarida.

Faça o que eu digo, não o que eu faço

Foi quando ela teve noção do estrago. Du, aos 12 anos, cheirava loló nas ruas da Cruzeiro. E já havia deixado passar a primeira oportunidade de seguir a vida escolar. Tão cedo, ele já era considerado um caso perdido por boa parte dos educadores. Ao perder mais um irmão, ele silenciou, do seu jeito.

- Ele parece que sempre guardou para ele tudo o que a gente enfrentava - acredita a empregada.

A necessidade de sustentar os filhos e, por consequência, trabalhar e se ausentar em dobro de casa, aumentou a carga sobre Du.

Quem tinha maior ascendência sobre ele era Alexsandro. Mesmo traficando, cabia a ele impedir o mesmo caminho do irmão. Isso até 2005.

E o crack chegou à vila

Até os anos 90, a Vila Pedreira era invisível para o resto da cidade. A notoriedade negativa veio no final daquela década. Em 1997, aconteceram as primeiras apreensões de crack na Região Metropolitana. E foi como um catalisador para a bomba que se ensaiava.

- Com a chegada do crack, todo o problema dos jovens sem pais foi agravado e a noção de limites, em muitos casos, foi para o espaço. O que tínhamos de teorias até então precisou ser revisto - diz o psiquiatra Jorge Trindade.

Em 2000, a Vila Pedreira foi palco da primeira grande guerra movida pelo crack na Capital. Quatro anos depois, a ousadia dos traficantes enriquecidos - e mortos - rapidamente chegou ao limite. E quem crescia neste ambiente tinha de se adaptar.
Evandro Jardim Fontoura, o mais novo de Ana Margarida, era um desses meninos. Quando perdeu o irmão, Paulo Roberto, morto por um policial, o guri foi taxativo ao encontrar um brigadiano:

- Quando eu tiver 12 anos, vocês vão ver. Vou vingar o meu irmão.

Em julho de 2004, uma viatura da 20ª DP foi incendiada por traficantes na Rua Ursa Maior. No dia seguinte, mandados por um traficante da Pedreira, três jovens foram atrás do guri que havia cometido o crime e atraído uma ofensiva policial na vila. Atiraram. Na trajetória dos tiros estava o pequeno Evandro. Foi atingido na barriga por uma bala perdida.

- Quando eu cheguei no Pronto-Atendimento, um doutor veio falar comigo todo macio e não dizia onde estava o meu menino. Eu mandei ele parar, porque eu já sabia bem como era isso - conta Ana Margarida.

"Não há vida sem correção"

No corredor, a mensagem de Paulo Freire soa como mantra para cada um dos educadores da Escola Aberta Vila Cruzeiro do Sul. Um lugar com uma proposta didática revolucionária - de recuperar estudantes em atraso e não adaptados à rede de ensino normal -, criada em 1986, e que, em alguns momentos, chegou a ter os professores circulando entre as ruas da Cruzeiro para levar os alunos às aulas.

Em salas pequenas, com turmas reduzidas a, no máximo, 15 alunos, a escola atende hoje 150 estudantes nos três turnos. Todos pobres e, conforme a estimativa da direção, pelo menos 80% negros. Nada que surpreenda. O índice de analfabetismo entre negros é o dobro do verificado entre os brancos na Capital. Além do atraso no ensino escolar, os alunos têm pelo menos um traço em comum: mais da metade não tem pai.

- São crianças que chegam aqui com muita dificuldade de aprendizagem, com histórico de maus tratos, abandono e violência. Eles não competem de igual para igual em uma escola comum. Temos a missão de mostrar a eles que ainda há uma esperança e que alguém ainda aposta neles - diz a professora Nédia Maria Brites dos Santos, 60 anos.

Ela foi uma das que abriu mais uma porta, em 2001, para Carlos Alberto Jardim Fontoura, o Du, então com nove anos, no 1º ano do ensino fundamental. E ele já era encarado como um caso perdido. Chegou a ser matriculado pela mãe na escola Fernando Ferrari, mas nunca frequentou de verdade. A última alternativa encontrada pela mãe foi a escola aberta.

Du não aproveitou a porta aberta

- Lá eles têm curso de padaria. Eu sempre pensei em dar algum curso para ver se os meus filhos conseguiam ser alguém na vida - lembra a empregada doméstica Ana Margarida.

Estava no curso mais uma possibilidade de porta estreita que a vida lhe abria. Ele até começou o curso, com a professora Maris Elena Farias, 59 anos, mas frequentou pouco tempo.

- Às vezes acho que consigo fazer a diferença, em outras, nem tanto. Mas se conseguimos recuperar um aluno, já é uma vitória - diz Maris.

Segundo ela, aprender a botar a mão, literalmente, na massa é uma chance de dar alguma perspectiva às vidas desses jovens.

- As outras escolas já fecharam as portas para eles. Então, para quem entende o objetivo da padaria, funciona. É um trabalho cooperativo para ajudar na formação deles como cidadãos - comenta.


Ruas e becos da Pedreira perderam a tranquilidade. Foto: Marcelo Oliveira / Agência RBS

Goteiras de mentirinha na "escola fantasma"

A produção da padaria vai para a merenda. O projeto de geração de renda a partir dali, porém, não decolou. O material usado ainda é o mesmo de 20 anos atrás. Exceção feita a uma assadeira doada no ano passado.

O prédio da escola fazia parte da unidade da Fase, na Vila Cruzeiro, e foi cedido justamente para a educação de meninos de rua, abrigados ou mesmo internos, mas nunca foi adaptado plenamente para se tornar um ambiente educacional. Os corredores e a escadaria ainda são tomados por grades. As salas de aula, em boa parte, ainda têm paredes improvisadas, de compensado.

Se a entrega dos educadores a uma causa social é contagiante, a situação institucional da escola contraria essa lógica e, invariavelmente, representa um obstáculo a meninos como o Du. Para a Secretaria Estadual de Educação, esta é uma "escola fantasma". Não está adequada ao projeto pedagógico de uma escola aberta, de fato, e passa pela segunda sindicância em menos de quatro anos.

Para a coordenadora regional adjunta da 1ª CRE, Lúcia Wendland, as coisas vinham funcionando mais na base da intuição.

Há mais de 15 anos que a direção pleiteia ao menos uma quadra para as atividades físicas, mas até hoje nada foi feito. O jeito é fazer as aulas de Educação Física no pequeno saguão de entrada mesmo. O chão pedregoso, também na entrada, foi "adaptado" com duas goleirinhas para fingir que há algum espaço para um jogo de bola.

E Du não voltou à escola

O histórico escolar explica como o Du nunca decolou. Logo no primeiro ano, o relatório mencionava: "Tem dificuldade de aprendizagem e relacionamento. Enfrenta problemas familiares".

De acordo com a professora Nédia dos Santos, ele não fugia ao padrão da escola:

- Um menino ansioso, com déficit de aprendizagem.

No ano seguinte, foi flagrado pela primeira vez cheirando loló e aí ficou mais infrequente às aulas. E o que é pior: "A mãe reconhece que perdeu o controle. Ele não aceita limites", consta no relatório.

Em abril de 2003, aos 11 anos, Du sumiu. Nos dois anos seguintes, perdeu três irmãos de forma violenta. As perdas nunca foram relatadas à escola.

Ele repetiu o roteiro de idas e vindas à escola por seis vezes - algumas delas apenas para garantir o benefício do Bolsa Família - até 2012, quando já tinha 20 anos e cursava o segundo ano do ensino fundamental apenas pela idade, e não pelo aprendizado.

- Por mais que nós sejamos uma referência para eles, se não têm nenhum respaldo em casa e na sociedade, o apelo do tráfico, por exemplo, muitas vezes é mais forte - comenta a professora.

Os níveis de evasão na escola, historicamente, ultrapassam 50%. No ano passado, de acordo com a 1ª CRE, 127 alunos começaram o ano escolar. Só chegaram 60 até o final. No turno da noite, o resultado foi ainda mais assustador. Apenas sete alunos concluíram o ano letivo.

- É uma escola que precisa ser reestruturada. Tem uma importância fundamental, mas estava esvaziando - comenta Lúcia Wendland.

A intenção é adaptar a escola para o tempo integral efetivamente, como já atuam outras três em áreas vulneráveis de Porto Alegre.

Mal sabendo escrever o nome, Du não voltou à escola depois de 2012.


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