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Criminalidade

Tráfico impõe as regras em invasão na Zona Norte de Porto Alegre

Domínio de traficantes na ocupação Marcos Klassmann, na Zona Norte, repete o drama de famílias que, sem ter onde morar, viram vítimas fáceis do medo

20/08/2014 - 07h01min

Atualizada em: 20/08/2014 - 07h01min


Luiz Armando Vaz / Agencia RBS
Loteamento Marcos Klassmann

Mais de duas mil pessoas se espalham pelos quase oito hectares de terreno alagadiço, tomado por casebres e vielas, entre a Rua José Luiz Martins Costa e a Estrada Antônio Severino, no Bairro Mario Quintana, na Zona Norte. Desde a metade de 2012, a ocupação, que recebeu o nome de Marcos Klassmann, virou, além de uma solução precária para quem não suportava mais viver de aluguel, uma espécie de zona de refugiados do Recanto do Sabiá, na Vila Timbaúva. Lá, o tráfico expulsou moradores e impôs suas regras.
Pois o sonho, de acordo com investigações da polícia, pode ter se tornado a repetição de um pesadelo que incluiria até a liderança comunitária encarregada de defender os interesses dos ocupantes. Nas investigações de sete assassinatos na região no intervalo de pouco mais de um ano, até a presidente da cooperativa habitacional, Elisete Vargas da Conceição da Silva, está indiciada. Seria, segundo a polícia, associada e conivente com a quadrilha de traficantes que atua na vila.
- Se você está jantando à noite, eles (criminosos) não querem saber. Vão entrando na casa. Pegam comida, guardam armas e até esvaziam a tua geladeira. Quem contraria, vende o terreno ou não paga a taxa para eles, matam mesmo - contou à polícia uma antiga moradora.

Domínio pela violência

Ela e o filho foram embora da ocupação há alguns meses, depois que o rapaz, que é usuário de crack, teve uma arma encostada à cabeça. O motivo: supostamente, devia dinheiro aos traficantes e à cooperativa habitacional, criada em outubro de 2012 para defender os interesses dos ocupantes na tentativa de tomar posse do terreno particular.
O domínio pela violência começou a ser comprovado, de acordo com o delegado João Paulo de Abreu, a partir da morte de Édson Melo Goulart, no dia 17 de fevereiro do ano passado.
Elisete e outros dois homens _ Daniel Ramires de Mello, o Danielzinho, e Giovane da Silva, o Graxa - foram indiciados pelo crime. O primeiro de uma série que inclui a líder comunitária entre os investigados.
- Ela não é líder da quadrilha, mas é conivente, demonstra saber onde eles guardam as drogas e armas. Eventualmente, protege os criminosos e se favorece dos "serviços" deles. Se torna cúmplice do medo que esses traficantes impõem nessa comunidade - afirma o delegado.

Rotina de agressões

Conforme o inquérito já remetido à Justiça, Édson teve uma discussão forte com Elisete em uma das ruas laterais da invasão no dia em que foi morto. Enquanto os dois ainda se desentendiam, conforme a polícia, a líder comunitária teria ligado para alguém e relatado a situação. Minutos depois, os dois outros acusados apareceram na rua e, ali mesmo, teriam executado o homem.
- Ele teria contrariado o interesse da cooperativa, vendendo o terreno onde morava. Temos relatos de outros moradores que foram agredidos pelo mesmo motivo. Há casos também de famílias retiradas, ou que saíram dali, e tiveram o lote vendido ou ocupado pelos traficantes _ relata João Paulo.

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Escutas entregam as relações na invasão

Na última semana, a investigação, que inclui outros cinco inquéritos, foi concluída. E Elisete acabou indiciada também pelo homicídio de Márcio Menezes Brandão, encontrado morto a golpes de facão na Rua da Poesia, em abril do ano passado. De acordo com a polícia, o crime revelou a forma como a líder amparava os traficantes.
Minutos depois da morte de Márcio, escutas telefônicas mostrariam Elisete conversando com Guilherme Moraes Dias, o Gui, que seria o executor do crime. Além de conferir se havia "corpo" no local, a mulher teria informado o homem considerado líder do tráfico na ocupação sobre a chegada de viaturas na região.

Formação de quadrilha

A resposta do criminoso é ainda mais comprometedora. Segundo os investigadores, ele pediria para a líder comunitária informar aos comparsas para "tirar os bagulhos de lá".
- Ela demonstra saber da existência de drogas e armas no local - garante o delegado.
De acordo com o advogado de Elisete, Paulo Renê Soares Silva, as acusações contra ela são absurdas.
- Ela nunca extorquiu ninguém e ninguém a reconhece com mandante ou mentora do crime. Todos sabem que há tráfico lá, mas ela conhece os criminosos como vizinhos, não se envolve. Ela nunca estaria os protegendo, porque sempre quis a polícia lá dentro, até para legitimar a ocupação - afirma.
Além de dois homicídios, Elisete foi indiciada por formação de quadrilha. Ela responde pelos crimes em liberdade.

 

"Eu luto pela comunidade"

Na manhã em que conversou com a reportagem, Elisete estava entre canos e pneus no coração da vila. Recebia o material comprado pela cooperativa para criar um sistema alternativo de esgoto que seria implementado no terreno. Ao mesmo tempo, era erguida mais uma casinha de madeira naquele ponto. Segundo Elisete, será uma creche para atender pelo menos 20 crianças. Além da briga judicial para a permanência dos ocupantes na área, o projeto dela é implementar, com uma psicóloga voluntária, um programa de acompanhamento a jovens dependentes de crack. Com este currículo, a líder comunitária dispara:
- Você acha que, se eu fosse bandida, estaria fazendo tudo isso pela comunidade? Estaria colocando meu nome em uma cooperativa oficial e legalizada? Nunca extorqui nada de ninguém. O que cobramos das pessoas é a taxa mensal para a cooperativa, mas alguns acham que tudo aqui é de graça.

Contribuição mensal

Das atuais 500 famílias que ocupam os lotes, 320 contribuem para a cooperativa com uma taxa mensal de R$ 80. Ela admite que não há como ter controle sobre quem ocupa cada lote atualmente.
- No começo, nós pedíamos para ninguém vender mesmo, porque estávamos fazendo a lista de famílias para passar ao Demhab. Mas quem sou eu para impedir compras e vendas? O que fica é o nome da família original na lista - afirma.
Elisete chegou à ocupação em julho de 2012. Estava entre as primeiras famílias na área, vinda de um apartamento no Bairro Rubem Berta onde pagava aluguel. Na época, havia uma liderança do movimento, mas a iniciativa de criação de uma cooperativa teria sido dela. A organização foi formalizada em outubro de 2012. Casualmente, foi o mesmo período em que uma enxurrada de famílias deixou suas casas no Recanto do Sabiá, a 2km dali, corridos pelo tráfico.

MP vai apurar vendas de lotes

Pelo estatuto da cooperativa, reconhecido pela Justiça, cada família tem a obrigação de permanecer pelo menos cinco anos no seu lote. O preço para isso, porém, pode ser bem caro - e sem garantia de permanência.
Se no começo da ocupação lotes eram vendidos por R$ 500, no ano passado já havia comercializações por até R$ 4 mil. As informações sobre negociações de lotes dentro de uma área invadida serão repassadas pela polícia ao Ministério Público.
A suspeita da polícia é de que cada negócio de lotes e casas precisa ter o aval dos traficantes e da cooperativa. Seja para garantir pontos de tráfico estratégicos ou o lucro financeiro.

Matador dita as regras na ocupação

Em outubro do ano passado, uma operação da 22ª DP desmascarou uma quadrilha que comandava o tráfico em diversos pontos entre Alvorada e os bairros Mario Quintana e Rubem Berta, na Zona Norte da Capital. Escutas telefônicas revelaram como os líderes do bando encomendavam as mortes de devedores e concorrentes. Um dos matadores do grupo era Guilherme Moraes Dias, o Gui, que chegou a ser preso temporariamente naquela ação. De acordo com os investigadores, cabia a ele, com mortes e ameaças, garantir o controle na ocupação Marcos Klassmann.
- Na ocupação, ele comanda e executa os crimes. Dessa forma, mantém a comunidade amedrontada - explica o delegado João Paulo de Abreu, da 3ª DHPP.

Matam dentro da vila e desovam os corpos fora

No dia 22 de julho, Gui foi preso com um dos seus principais comparsas na ocupação, Eder Aneres da Rosa, o Nego Eder. Condenado por tráfico na Zona Sul de Porto Alegre há quatro anos, Nego Eder atualmente é dono de um bar na Marcos Klassmann. A suspeita da polícia é de que o local serviria como ponto de tráfico e de encontro da quadrilha.
A dupla é apontada pela autoria na morte de Moacir Cherer dos Santos, a tiros na frente do bar, na madrugada do dia 18 de julho. O corpo só foi encontrado na manhã seguinte, em um terreno baldio do lado de fora da ocupação. Horas antes, outro corpo, de Diogo Custódio Ferreira, foi encontrado em um terreno a poucos quilômetros dali. Há suspeita de que também tenha sido morto no bar e desovado longe dali.
- A prática deles é de matar dentro da vila e desovar os corpos fora. Contam sempre com o silêncio da comunidade - diz o delegado.
Gui já foi indiciado, juntamente com a namorada, Stéfani Denise Taborda Meireles, e Bruno Schultz de Assis, o Bozó, pelas execuções de Simone Almeida Quadros e Maicon Douglas Simões Pereira, encontrados mortos em um matagal no final de março do ano passado. Ele ainda foi indiciado por outros dois homicídios na vila até abril de 2013.
- Todas as mortes envolvem desacertos do tráfico e de terrenos na ocupação - garante o delegado.
Segundo ele, desde a prisão do Gui, denúncias teriam surgido relacionando o criminoso a pelo menos outros três assassinatos entre a Zona Norte da Capital e Alvorada.

O raio-x da Marcos Klassmann

Histórico da invasão

As primeiras famílias invadiram a área particular de 7,6 hectares no Bairro Mario Quintana no dia 29 de julho de 2012.

Atualmente, pelo menos 500 famílias ocupam lotes no terreno. Estima-se que mais de 2 mil pessoas estejam vivendo no local.

O nome da invasão é uma homenagem ao antigo vereador de Porto Alegre que, nos anos 1970, ficou conhecido pela luta na área habitacional.

Em outubro de 2012, houve um racha na liderança da ocupação e Elisete tomou a frente, formalizando a cooperativa habitacional. Mais de 300 famílias estão cadastradas na organização e pagam taxa mensal para permanecer no terreno.

Ainda em 2012, os proprietários ingressaram com uma ação judicial requerendo a reintegração de posse da área. Medida liminar favorável a eles já foi concedida pela Justiça, mas o mandado de reintegração ainda não foi cumprido.

A cooperativa recorre judicialmente dessa decisão, ainda em primeiro grau. Caso percam, ainda podem recorrer ao Tribunal de Justiça antes de serem retirados de lá.

Mortes na invasão

17 de fevereiro de 2013 - Édson Melo Goulart foi morto a tiros em uma rua lateral à ocupação Marcos Klassmann. Édson discutia com Elisete da Silva a venda do seu lote. No meio da briga, ela teria ligado para alguém. Minutos depois, dois homens teriam chegado em um carro e executaram o morador. Elisete, Danielzinho e Graxa foram indiciados pelo crime.

31 de março de 2013 - Simone Almeida Quadros e Maicon Douglas Simões foram encontrados mortos a tiros e facadas em um terreno na Rua Irmão Ildefonso Luís, nos fundos da ocupação. Simone era usuária de drogas e teria uma dívida com os traficantes que dominam a vila. Na noite do crime, pelo menos dez pessoas teriam invadido o casebre onde ela morava com o namorado na ocupação e não a encontraram. Ela teria sido achada em um bar da vila, do qual foi arrancada pelo grupo. No caminho, eles teriam ainda executado Maicon, que era "vapozeiro" dentro da ocupação e teria consumido a droga da boca de fumo. Os dois corpos foram desovados juntos. Reconhecidos pelo crime, Gui, Stéfani e Bozó foram indiciados.

5 de abril de 2013 - André Gottlieb de Oliveira foi encontrado morto a tiros em um terreno da Rua Horácio Vaz Pinheiro, próxima à ocupação. Ele era namorado de Simone e também usuário de drogas. Semanas antes da morte dela, teria negociado a casa onde moravam por R$ 4 mil. O casal dividiria o valor, mas a venda não teria agradado à quadrilha que comanda o tráfico local. André teria sido arrancado de casa e morto na entrada da vila. O corpo teria sido jogado no porta-malas de um carro e abandonado no matagal. Gui e Stéfani foram indiciados por homicídio. Elisete, por formação de quadrilha.

24 de abril de 2013 - Márcio Menezes Brandão foi encontrado morto a golpes de facão na Rua da Poesia, na entrada da vila. Usuário de drogas, ele tinha um terreno na ocupação e o teria vendido. Gui e Elisete foram indiciados.

18 de julho de 2014 - Diego Custódio Ferreira foi encontrado morto a tiros na Rua Deodoro, a alguns quilômetros da ocupação. Ele teria sido desovado naquele local e a suspeita é de que foi baleado no bar do Nego Eder momentos antes. O caso ainda não foi encerrado pela polícia.

18 de julho de 2014 - Moacir Cherer dos Santos foi encontrado morto a tiros em um terreno da Rua José Luiz Martins Costa, próximo aos fundos da ocupação. Ele era morador da Marcos Klassmann e foi baleado na madrugada no bar do Nego Eder. O dono do bar e Gui foram presos preventivamente pelo crime.

 


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