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Criminosos sugerem existência de pacto entre facções para reduzir mortes, mas policiais contestam

Reportagem percorreu as seis delegacias especializadas em investigar homicídios em Porto Alegre, ouviu policiais, membros do Judiciário, advogados e integrantes de facções para compreender o fenômeno que vem derrubando os índices de assassinatos

23/06/2019 - 16h44min


Humberto Trezzi
Humberto Trezzi
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Leticia Mendes
Renato Dornelles
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Rodrigo Ziebell / SSP/Divulgação
Em 2017, Operação Pulso Firme transferiu 27 líderes de facções para presídios federais em outros Estados

Especialistas em segurança pública apontam que combate ao crime organizado, com o isolamento de líderes de facções criminosas, foi determinante para a redução dos homicídios em Porto Alegre e na Região Metropolitana. Sem ligação direta entre as bases e o comando, após a transferência de líderes para o sistema penitenciário federal, algumas facções trataram de garantir sua própria divisão territorial. Evitam entrar em conflito, para não perder mais recursos materiais e humanos. Quando o limite imposto é respeitado, menos pessoas morrem. Diante disso, criminosos reconhecem que parte dos grupos entende que matar é mau negócio.

Homicídio não dá dinheiro. Droga dá dinheiro. Morte só dá cadeia — conclui um gerente do tráfico da facção com base no Vale do Sinos, contatado pela reportagem por meio do advogado.

Ele afirma que, ao menos com o grupo criminoso nascido no bairro Bom Jesus, zona leste da Capital, há certo pacto na Grande Porto Alegre. O acordo incluiria não tomar o ponto de tráfico do rival. Para dominar uma "boca de fumo", criminosos costumam abrir fogo contra os inimigos. Mas a tática, pelo menos entre as duas facções, teria sido abandonada.

— Cada um tem seu lado. E um não invade o outro. Taí o acordo. Por isso é demarcado território — afirma o criminoso.

Do lado dos criminosos da Bom Jesus, um matador da facção é reticente em admitir acordo. Afirma,  que o grupo tem espécie de pacto com os bandidos do Vale do Sinos. "Nóis não tem (sic) guerra declarada (com o grupo do Vale do Sinos), doutor, e sim com toda akela facção (bando rival)."

O delegado Newton Martins Souza, da 6ª DHPP, contesta:

— Composição entre lideranças não existe. Isso se levanta para conferir descrédito ao trabalho da polícia. Então coloca o criminoso para sentar na minha cadeira.

"Homicídios não são bom negócio"

Para a titular da 2ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa e interina na 5ª DHPP, delegada Roberta Bertoldo, as facções concluíram que os "homicídios não são bom negócio".

— Talvez eles (os criminosos) estejam visualizando que, no jogo do tráfico, não é uma boa entrar nessa questão do homicídio. Houve tantas prisões de envolvidos com isso que eles viram que são presos. Não que pelo tráfico não sejam. Mas, nos casos de homicídio, a prisão costuma ser mais rápida e grave na hora de um julgamento — afirma.

Com ponto de vista semelhante, o titular da 3ª DHPP, delegado Cassiano Cabral, destaca que a integração entre as forças policiais, Ministério Público e Judiciário é outro fator que tem impedido a concretização de crimes e também agilizado a punição:

Não estão matando menos porque as facções estão dominando o crime. As facções estão ficando receosas de terem seus líderes identificados e mandados para fora (do Estado). A queda no índice dos homicídios é sinal de que os negócios não vão bem e que eles querem que fiquem bem.

VANESSA PITREZ

Diretora do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP)

— Era comum saírem dois carros cheios de homens armados lá da Timbaúva (área conflagrada no bairro Mario Quintana) para vir matar aqui na área da minha delegacia. Agora, com base no trabalho de inteligência, a Brigada Militar se posiciona em pontos estratégicos e impede a ação dos chamados bondes.

Nesta sexta-feira (21), a reportagem esteve no bairro Mario Quintana e ouviu pessoas da comunidade. Todas fizeram coro à tese de que a sensação de insegurança baixou bastante nos últimos meses.

— Aqui anda bastante calmo. Antes, não dava para sair de casa à noite. Agora, o pessoal vai trabalhar sossegado — atesta um pedreiro de 57 anos.

Em uma praça, duas jovens conversam enquanto cuidavam de duas crianças.

— Agora está bem calmo. Tudo muito de boa — diz uma estudante e comerciária de 18 anos.

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Palco de confrontos entre facções no passado, bairro Mario Quintana teve a primeira quinzena de junho sem homicídios

Tráfico ainda é principal motivo

Embora o combate às facções seja ponto central para a redução dos homicídios em Porto Alegre, não significa que as mortes pelo tráfico tenham cessado. As drogas seguem sendo principal pano de fundo dos assassinatos. O perfil da maioria das vítimas também é o mesmo: homem e jovem, na base da pirâmide do grupo.

— A gente vê que a guerra continua. Tem lugares em que é mais flagrante. E outros em que se tem adotado postura diferente. (Os traficantes) não ficam matando gente lá dentro. Expulsam os moradores das casas. Se tem vinculação com a facção rival, dão uns tiros na casa, mandam sair, mas não matam ninguém — explica o delegado Newton Martins de Souza, da 6ª DHPP.

Mas as execuções, inclusive de membros da facção, continuam. No início do ano, um morador do bairro Santa Tereza foi torturado e morto a tiros pelo grupo do qual fazia parte. A execução aconteceu depois de o bando ser atacado repetidas vezes. Rivais estavam em uma casa nas proximidades, armados e com bombas caseiras. Em resposta, a facção metralhou o esconderijo. O suposto informante foi morto a tiros.

Na 1ª DHPP, que apura homicídios em bairros como Bom Jesus, Lomba do Pinheiro e Partenon, as disputas do tráfico também têm episódios de enfrentamento:

— O comum é estar na esquina vendendo drogas, passar alguém da facção rival, de carro ou moto, executar e fugir. Não acredito em estabilização das facções. Ou esses fatos não continuariam — avalia delegado Guilherme Gerhardt.

A desarticulação de quadrilhas é a principal forma de frear o homicídio. O tráfico aqui não parou. Mas eles viram que o homicídio é um mau negócio. O cara vai para a cadeia. Não é à toa que eles fogem quando a gente chega. Eles sabem o quanto é ruim estar na cadeia.

NEWTON MARTINS DE SOUZA

delegado da 6ª DHPP

A maioria das mortes ainda é praticada por membros de outra quadrilha. Em março, no bairro Cristal, dois integrantes de uma facção foram cercados e executados a tiros pelos rivais. A responsabilização dos líderes por execuções como essa é vista pelo delegado Rodrigo Pohlmann, da 4ª DHPP, como um freio para o comando dos homicídios.

Chefes começam a ter na sua conta uma série de processos envolvendo assassinatos em sua área de domínio. Esse seria um dos motivos para a queda das ordens de assassinatos. E, num ciclo, com menos homicídios registrados, os policiais conseguem concentrar esforços para reunir provas e responsabilizar desde o executor até o mandante:

— Quando a gente vê que partiu de um comando, estamos indiciando também os mandantes. Eles vão permanecer no sistema penitenciário. Dali, não saem mais. Isso faz com que determine menos execuções — avalia Pohlmann.

Outro fator é percebido pelos policiais e pode ter impacto na queda dos assassinatos: o menor número de integrantes das facções. Em prisões recentes na zona sul da Capital, a polícia vem notando a presença de pessoas de outras regiões do Estado. O que indicaria que partes dos criminosos precisam ser remanejados, por conta das prisões e mortes. 

— Num ponto de tráfico, precisa de um olheiro, do cara que vende, do segurança da boca e do responsável pelo rodízio de entrega. Quando começa a perder gente, isso te enfraquece. E aumenta, inclusive, a possibilidade de perder o ponto. Não seria interessante continuar atuando daquela forma, com um homicídio atrás do outro, numa guerra — conclui Pohlmann. 

Aliado a isso, a descapitalização, especialmente nas investigações vinculadas à lavagem de dinheiro, também dificulta a arregimentação de novos membros. Um ex-presidiário confirma que o crime tem perdido gente:

— A questão dos homicídios terem diminuído se deve muito ao prejuízo causado por "soldados"” presos. Ninguém quer gastar com cadeia, querem lucro com o tráfico — afirma o homem, que esteve abrigado na ala de uma facção do Vale do Sinos, no Presídio Central.

Comando "de fachada" é criado em prisões

Foi dentro desta mesma cadeia que um novo grupo foi criado há cerca de um ano e meio, sob o manto de reduzir a violência e a brutalidade nas ruas.

— Eles fizeram até uma carta dizendo que iam parar com as guerras, em especial com aquela questão dos esquartejamentos — recorda Pohlmann.

Não é algo interessante executar, não é algo interessante dar tiros durante a tarde. Porque isso vai atrair um número de policiais bastante grande para aquela região. Bastante gente foi e continua presa. Não é algo interessante para eles financeiramente.

RODRIGO POHLMANN GARCIA

delegado da 4ª DHPP

Para uma autoridade do Poder Judiciário, o propósito de parar com as mortes pregado pelo grupo era apenas uma fachada.

— No fundo, eles queriam conquistar galerias em presídios.

Também do Central partiu um áudio, divulgado em 2017, no qual um dos membros de facção do Vale do Sinos orientava o grupo a cessar a mortes. A orientação aconteceu depois da transferência dos líderes para prisões federais. Para o delegado Pohlmann, as manifestações não demonstraram ser um acordo entre facções.

— Acredito que internamente pode uma facção dizer: "Vamos parar de matar porque estamos falando de um crime cuja pena pode chegar a 30 anos, que atrai muita polícia, e cujas prisões cautelares são deferidas com mais frequência".


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