Polícia



Violência em Rio Grande

Grávida de sete meses, esposa de entregador de gás assassinado planeja contar às filhas que o pai delas morreu como herói

Débora Fabiane Fagundes, 35 anos, espera pela segunda menina, fruto da relação com Márcio André da Conceição Loureiro, 41 anos

06/08/2020 - 11h34min


Leticia Mendes
Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Márcio atuava no futebol amador de Rio Grande

Na frente da filha Lauren, de dois anos e cinco meses, Débora Fabiane Fagundes, 35 anos, evita usar a palavra pai para recordar do marido Márcio André da Conceição Loureiro, 41 anos. Sabe que isso pode despertar na pequena o desejo de revê-lo. O pai de Lauren e também de Lívia, prevista para nascer daqui a dois meses, foi espancado e morto a tiros em 22 de julho, ao tentar ajudar uma menina. A criança foi atropelada pelo caminhão de gás onde ele seguia na carona, em Rio Grande, no sul do Estado. Ao descer para auxiliar no socorro, o entregador foi cercado pela população e executado.

— Creio que na hora do acidente ele pensou primeiro na filha dele. Se fosse com ela. É o que uma pessoa sensata faz. Se coloca no lugar da outra — conclui Débora, enquanto atende aos chamados da menina.

Desde que perdeu o marido, ela tem passado os dias com a mãe, em outro bairro de Rio Grande. Ainda não conseguiu voltar a morar na casa onde vivia com Márcio, no bairro Recreio. A residência fica ao lado da empresa de gás para a qual ele trabalhava há cerca de um ano. Naquele dia, o entregador almoçou com a família, e por volta das 15h, pediu que Débora fizesse arroz de leite. 

Às 16h15min, voltou em casa e disse que não sairia mais para entregas. Antes de retornar para o trabalho, colocou frango para descongelar. À noite, pretendia assar, enquanto assistiriam juntos ao Gre-Nal. Márcio era apaixonado por futebol, colorado fanático, e chegou a integrar times de futebol amador na cidade, como jogador e técnico.

Minutos depois, Débora saiu com a caneca de arroz de leite na mão em direção ao depósito, para entregar ao marido. Como não encontrou o caminhão, regressou para casa, esperando que ele fosse buscar o doce.

— Não deu meia hora, e chegaram me contando a história. Eu disse que era mentira. Ele disse que não ia sair mais. Queria terminar tudo cedo, para vir para casa — recorda Débora.

Os familiares tentaram levá-la até um posto de saúde porque estavam receosos com o impacto da notícia — Débora sofre com pressão alta. Quando conheceu Márcio, ela acreditava que não poderia ter filhos, mas tinha o sonho de ser mãe. O desejo se concretizou, mas de forma prematura. Lauren nasceu aos seis meses de gestação, com 1,4 quilo — durante um mês, a menina ficou hospitalizada. À noite, a mãe permanecia com a bebê e o pai dormia no saguão do hospital. Quando descobriam a segunda gravidez, redobraram os cuidados para que isso não se repetisse. Por isso, a família tinha medo de como ela reagiria.  

— Vivíamos sempre juntos, e depois que fiquei grávida, mais ainda. Tinha muito medo que nascesse fora do tempo de novo. Cuidava para que eu não fizesse esforço. Sempre me dizia: "cuida das minhas meninas". No dia 23, estava marcada a consulta do pré-natal. Ele iria comigo. Precisei adiar porque estava enterrando meu marido — conta.

Os planos

No dia 24 de julho, um dia após sepultar Márcio, Débora foi à consulta e escutou o coração da filha. A bebê estava bem. O nome Lívia foi escolhido por insistência do pai. O acerto entre o casal era que se o bebê fosse menina a escolha seria da mãe. Mas Márcio burlou o acordo _ não gostava de nenhum nome escolhido por ela e contou que, durante as entregas de gás, havia ouvido uma mulher chamar a filha de Lívia. Débora acabou cedendo.

Aos sete meses de gravidez, a mãe vive o dilema de não permitir que as emoções do luto afetem a bebê. Ao mesmo tempo, tenta distrair Lauren e não pronuncia o nome de Márcio, assim como evita a palavra pai. Em casa, quando ouvia o som do caminhão e do portão, a menina sabia que ele estava chegando. Na espera da segunda filha, Márcio beijava a barriga da esposa e por vezes chegava em casa com presentes, como roupinhas e o carrinho, que havia ganho durante as entregas. No próximo fim de semana, a mãe planeja retornar com as filhas à casa onde viviam. Precisa preparar a moradia, para seguir em frente. Lívia deve nascer a partir de 29 de setembro.

— Estou destruída, mas quando a gente tem filho, é preciso passar por cima de tudo. Na minha barriga, ela sente tudo que sinto. Tento não desabar, para não transmitir para ela essa dor. Nada que a gente fizer vai trazer ele de volta. Só acaba gerando mais dor, mais revolta. Foi por esse tentar fazer justiça com as próprias mãos que aconteceu o que aconteceu. Deixo na mão da Justiça e na mão de Deus. Quero criar minhas filhas e contar que o pai delas era bom e morreu ao tentar ser um herói. Ensinar que elas devem seguir o exemplo dele, serem boas pessoas, sempre — conforma-se Débora.

O crime

Márcio seguia na carona do caminhão que levava a carga de botijões de gás para um depósito no bairro Getúlio Vargas na tarde de 22 de julho, quando aconteceu o acidente na Rua Dom Pedro II. A menina de oito anos foi atingida pelo veículo quando atravessava a via de bicicleta. O auxiliar desceu para acudir a criança, enquanto o condutor foi até um comércio pedir ajuda. Neste momento, Márcio foi cercado pela comunidade, agredido e apedrejado. Ao tentar fugir correndo das agressões, foi perseguido, alvejado e morreu no local. Logo depois, a carga do caminhão foi saqueada.

O irmão da criança atropelada, Fabian Luã Carvalho Tavares, 18 anos, foi preso em flagrante e confessou ter atirado no entregador. Ele alegou que se desesperou ao pensar que a menina estava morta — a criança foi socorrida e recebeu alta do hospital dias depois. Na semana passada, o preso se tornou réu por homicídio qualificado. A polícia segue investigando os autores das agressões e do furto à carga — suspeitos já foram identificados e ouvidos.


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