Polícia



"Operação Revelação"

Delegado é condenado por inventar ritual satânico em caso de crianças mortas em Novo Hamburgo

Moacir Fermino deverá cumprir mais de seis anos de prisão por falsidade ideológica e corrupção de testemunhas. Cabe recurso, e cumprimento só deve começar após o trânsito em julgado

03/11/2020 - 09h01min

Atualizada em: 03/11/2020 - 09h01min


Vitor Rosa
Vitor Rosa
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Vanessa Kannenberg / Agência RBS
Delegado Moacir Fermino concedeu coletiva à imprensa, em 2018, para apresentar sua versão sobre o crime

O delegado da Polícia Civil Moacir Fermino foi condenado pela Justiça a seis anos de reclusão por sua atuação na investigação sobre o caso de duas crianças encontradas esquartejadas em Novo Hamburgo, em setembro de 2017.

Ao substituir, durante as férias, o titular do inquérito, o delegado veterano e de quarta classe — a última da carreira — afirmou que o fato se tratava de um ritual satânico, prendeu cinco pessoas e obteve mandado contra outras duas. A versão, no entanto, não passava de "uma narrativa fabricada", segundo denúncia do Ministério Público.

A condenação de Fermino foi confirmada na última sexta-feira (30), mais de dois anos após ele ter sido denunciado. O juiz Ricardo Carneiro Duarte entendeu que o delegado é culpado pelos crimes de falsidade ideológica (três vezes) e corrupção ativa de testemunha (quatro vezes).

Além disso, para o magistrado, houve concurso material, que é quando o autor comete dois ou mais crimes, o que leva as penas a serem somadas. A Justiça ainda considerou que houve continuidade delitiva, ou seja, o crime foi feito em sequência. Foi observado como um agravante o fato de ele ser um funcionário público e a coação das testemunhas.

No cálculo do tempo de prisão, o juiz aplicou penas próximas da mínima, acrescidas de alguns meses. Ainda assim, afirmou na decisão que as "consequências ocasionadas pelo delito praticado exigem aumento considerável de pena, eis que as ações ocorreram durante inquérito policial e afetaram o curso da investigação de homicídio de duas crianças – ressalta-se que até a data da publicação desta sentença não houve resolução do caso".

A sentença também condenou Paulo Sérgio Lehmen, o informante do delegado Moacir Fermino, responsável por repassar a ele a versão do "ritual satânico" e apontar testemunhas. A pena dele é de quatro anos, dois meses e 12 dias de reclusão.

Paulo Sérgio foi considerado culpado pelo crime de corrupção ativa de testemunhas. Contra ele, também foi observado que houve continuidade delitiva, já que teria agido de forma semelhante para convencer quatro pessoas a depôr e confirmar a narrativa.  

Os condenados devem cumprir pena inicial no regime semiaberto. Cabe recurso da decisão, e o cumprimento só deve começar após o trânsito em julgado.  

Outro policial, o inspetor Marcelo Cassanta, que assinou um dos relatórios do delegado Fermino onde constava a versão falsa, foi absolvido no processo. Foi considerado pelo juiz que ele assinou o documento ordenado pelo superior e que não possuía independência para tal decisão.

O Ministério Público ainda não foi intimidado da decisão. 

Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
No cemitério de Novo Hamburgo, corpos das crianças foram sepultados como indigentes

O processo  

A sentença, à qual GZH teve acesso na íntegra, conta com o depoimento de 11 testemunhas, entre elas as pessoas envolvidas na trama, o delegado titular do caso à época, Rogério Baggio Berbicz, o delegado regional à época, Rosalino Seara, além do interrogatório dos três réus.  

Os depoimentos apontam que Fermino fez uma investigação paralela à do delegado titular ainda antes do período em que assumiu a delegacia. Isso começou após ele ter sido procurado pelo informante, Paulo Sérgio — um antigo conhecido da época em que ambos atuaram na política, em 2002 —, com a versão dos fatos, de que a morte das crianças fora encomendada por um empresário para que tivesse prosperidade. No relato, quem a realizou teria sido um bruxo de Gravataí.

Cid Martins / Agência RBS
Fermino na coletiva de imprensa

Na sentença, o magistrado detalha que a versão começou a ruir em janeiro de 2018, quando uma coletiva de imprensa — que contou até com a cúpula da Polícia Civil — deixou toda a história em suspeição. Questionado pelos repórteres, Fermino contou que tivera uma "revelação divina". Apresentou uma capa, uma máscara de cachorro, itens que, para ele, teriam sido usados no "crime". A história atípica e a fala confusa do delegado levaram a reiterados questionamentos.

— Eu também sou um servo de Deus. Essa pessoa que passou é um profeta de Deus e estava comigo. Disse: "Deus tem uma revelação para ti, é uma coisa de repercussão internacional e mundial".  Aí, eu digo: opa. Quando cheguei na delegacia, desci do carro, um outro profeta de Deus me ligou: "Fermino, vem aqui que eu só confio em ti e tenho tudo para te passar das crianças que tiveram as partes dos corpos encontradas na Lomba Grande" — detalhou o delegado, em entrevista à Rádio Gaúcha, em 8 de janeiro de 2018.

Relembre a entrevista do delegado à Rádio Gaúcha:

Poucos dias depois, a polícia reconduziu Berbicz à titularidade do caso e abriu uma investigação na Corregedoria contra Fermino. O órgão chegou a pedir a prisão dele, que foi negada.

Na decisão confirmada na sexta-feira, o juiz constata que não havia nenhuma prova elencada por Fermino, que não houve "campanas"  nem atos de investigação, como narrado por ele à imprensa na época. Além disso, que as quatro testemunhas do suposto "ritual macabro" com as crianças foram convencidas pelo delegado e pelo informante a narrar a versão sob promessa de que seriam inseridas no sistema de proteção de testemunhas e receberiam uma ajuda fixa de três salários mínimos — mais do que o programa realmente paga.

"Essa investigação não foi feita pelo acusado Moacir, preocupando-se mais em levar o caso para a imprensa por meio de uma entrevista em que declara desvendar o crime, das crianças mortas, por meio de intervenção divina, conforme já ressaltado, tendo, até aí, cinco pessoas presas injustamente pelo crime".

Interrogatório

Em depoimento, Moacir Fermino acusou o delegado titular (Rogério Baggio Berbicz) de ter "o incriminado". Chegou a dizer que "essa perseguição ocorre porque, hoje, tem duas polícias, ou seja, os novos e os velhos, chamados de dinossauros".

Também admitiu ter acreditado, em determinado momento, que a versão do informante (Paulo Sérgio Lehmen) era falsa: "Depois do que o Paulo fez, acha que não é verdade. Não sabe se todas essas pessoas já estavam previamente combinadas para a falsa imputação", trata a denúncia.  

Para o juiz Ricardo Carneiro Duarte, "não se pode admitir que no momento em que teve informações do caso, que até o momento não havia sido descoberto pelo titular, passar a fazer uma investigação paralela, baseada em indícios estranhos, místicos, religiosos, diabólicos, seja lá o que for".

O magistrado, em suas anotações, também lembra que Fermino questionou no processo como iria saber da armação do informante:  

"Exatamente isso que deve saber um delegado, investigar o fato, mas também veracidade do que lhe é trazido, em especial um profissional com vários anos de serviço. O profissional deve confrontar os fatos em busca da verdade, principalmente quando lhe vem uma versão do tipo cogitada nos autos".

Aposentado, Fermino segue recebendo seu salário integralmente. Contra ele ainda está aberto no Conselho Superior da Polícia Civil um procedimento que pode resultar na cassação da aposentadoria, mas até hoje não houve decisão.  Procurada nesta segunda (2), a chefia da polícia informou que "durante a pandemia todos os prazos do Conselho foram suspensos e retomados recentemente". 

Bruna Ayres / Agencia RBS
Uma das "provas" apresentada pelo delegado

Já o outro réu, Paulo Sérgio, em seu interrogatório, "referiu não lembrar muito bem daquele tempo, pois sofreu um AVC (acidente vascular cerebral)". Ele ainda garantiu ter sido pressionado pelo delegado a conseguir testemunhas.  

"Ajudou no que pôde e depois veio as testemunhas, sendo forçado a conseguir testemunhas, oportunidade em que ofereceu as testemunhas. Diante de ameaça, conseguiu as testemunhas. Ele falou que os caras eram culpados, motivo pelo qual precisava de testemunhas. Quando falou que não poderia testemunhar, o delegado Fermino falou que então deveria ajeitar o testemunho", disse em depoimento.

Em sua versão, contou que o delegado insistiu na narrativa falsa e que fora o policial quem inventou a versão. Isso, para o juiz, "pouco importa".  

"A autoria do co-réu Paulo Lehmen restou evidente quando das investigações do Delegado Rogério, no caso pouco importando que jogue a culpa em Fermino, e vice-versa, até porque esse motivo, que resulta do conluio entre réus, da motivação deles, sabe-se que pode se diluir na prova judicial, diante das várias versões que apresentam, inclusive um contra o outro, elemento as vezes puramente subjetivo".

Após ser preso na época dos fatos, Paulo Lehmen foi solto e responde em liberdade.

Contrapontos

GZH ligou para os telefones de Fermino, mas estão desligados. A reportagem também tentou falar com o advogado do delegado, José Claudio de Lima da Silva, mas não conseguiu contato no escritório e no celular. Ainda em setembro, a reportagem enviou mensagem, mas não foi respondida ou procurada até hoje.

Paulo Sérgio Lehmen foi assistido pela Defensoria Pública. O órgão pediu a absolvição dele por ausência de provas, o que foi negado. Em seu depoimento, ele admitiu que "seu erro foi plantar testemunhas, através do delegado". Ainda considerou que "foi abandonado pelo sistema, pois um delegado dizia que com um telefonema prendia todo mundo".

André Ávila / Agencia RBS
Estrada onde corpos foram encontrados

A investigação

Em setembro, GZH recontou o caso das crianças esquartejadas em Novo Hamburgo. Até hoje, não se sabe quem matou as duas crianças.  

O máximo que foi possível descobrir, por meio de análise do Instituto-Geral de Perícias (IGP), é que as duas vítimas são um menino e uma menina, entre oito e 12 anos, e que possuíam material genético compatível pelo lado materno. Ou seja, podem ser irmãos, primos ou mesmo tia e sobrinho. Não se descobriu nome, familiares, nem mesmo de onde eram.

Os dois corpos foram sepultados em dezembro de 2019, após mais de dois anos armazenados no Departamento Médico-Legal. A palavra "ignorado", escrita grosseiramente em tinta azul, indica as duas gavetas do Cemitério Municipal de Novo Hamburgo onde foram sepultadas as vítimas do crime brutal. Sem terem sido identificadas até hoje, viraram números: 115/17 e 116/17.

O caso segue em aberto. Ainda em setembro, a chefe da Polícia Civil, Nadine Anflor, garantiu que o caso "não foi esquecido", mas a esperança de ser desvendado depende de "um fato novo".

— Continua sendo algo que acompanhamos e de forma prioritária, porque não se tem certeza do que aconteceu. Mas, infelizmente, de tempos em tempos, temos alguns fatos que não se pode apontar autoria ou dinâmica de como aconteceram. Esse é um deles, infelizmente — ponderou.


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