Polícia



Sob investigação

Quem era a líder comunitária que morreu na Cruzeiro, em Porto Alegre

Jane Beatriz da Silva Nunes, 60 anos, faleceu após abordagem da BM; perícia apontou rompimento de aneurisma cerebral como causa

10/12/2020 - 09h49min


Bruna Viesseri
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Leticia Mendes
Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Jane vivia em comunidade há 40 anos

Descrita como mulher forte e ativa na comunidade da Cruzeiro, no bairro Santa Tereza, em Porto Alegre, Jane Beatriz da Silva Nunes, 60 anos, tentava transformar a realidade do local onde vivia. Também era avó, dedicada aos netos, com quem residia. Ela morreu na terça-feira (8), após abordagem da Brigada Militar na casa dela – o episódio gerou protestos dos moradores. As circunstâncias da morte ainda são investigadas. 

A Brigada Militar informou que os policiais estavam na comunidade, receberam uma informação sobre um possível caso de maus-tratos e, por isso, ingressaram na casa. A BM disse que a moradora passou mal e foi socorrida, mas não resistiu.  A perícia apontou que ela sofreu o rompimento espontâneo de um aneurisma cerebral e que não foi encontrado sinal de trauma que justificasse o óbito (confira as notas completas no fim da reportagem).   

Jane morava na Cruzeiro há mais de 40 anos, comunidade onde criou seus seis filhos — três deles adotados. Pela idade, por ser grupo de risco em razão do coronavírus, segundo o filho Ederson da Silva Nunes, 35 anos, atualmente estava afastada do trabalho na Secretaria Municipal da Segurança. Viúva, vivia com dois dos filhos e netos na casa em que aconteceu o episódio na terça-feira.

—  Ela cuidava dos netos, enquanto meus irmãos trabalhavam. Fazia comida para eles, café. Era muito dedicada a eles. Ela queria entrar na casa porque sabia que meus sobrinhos, crianças, estavam lá dentro  — afirma o filho.

Na Cruzeiro, Jane atuava como Promotora Legal Popular (PLP), após participar de uma capacitação promovida pela Themis, entidade que trabalha no enfrentamento da discriminação contra mulheres. A moradora era ativista e militante em questões de gênero e raciais dentro da comunidade, e dialogava principalmente com jovens e mulheres. Ela também era servidora pública da prefeitura, na área administrativa da Guarda Municipal.

 —  Minha mãe nunca comprou uma roupa para ela na vida. Tinha que brigar com ela. Ela se importava com os outros, não com ela. Fazia tudo pelos outros, até por quem não conhecia. Era muito ativa politicamente, defendendo os direitos de quem estava no lado mais fraco. Era uma guerreira  —  define o filho.

Ederson ficou sabendo que a mãe estava hospitalizada enquanto trabalhava. Seguiu até a Cruzeiro, onde soube que ela não havia resistido.

A morte  

Segundo o relato de uma vizinha à polícia, Jane retornava do mercado, quando deparou com a casa cheia de policiais militares. A BM afirma que os policiais estavam na comunidade e receberam informação sobre maus-tratos, que não se confirmou, mas que, por isso, os policiais entraram na casa. Conforme o depoimento da vizinha, Jane teria tentado ingressar na casa e foi impedida. A testemunha contou que a líder comunitária escorregou e caiu junto a uma escada, no acesso à residência. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, ela chegou com vida ao pronto atendimento da Cruzeiro, em parada cardiorrespiratória. A equipe tentou reverter o quadro, mas não teve sucesso.

Responsável pela investigação, o delegado Newton de Souza Filho, da 6ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), diz que foram ouvidas até o momento duas testemunhas: o filho de Jane, que não estava no momento do incidente, e a vizinha que presenciou a ação. A investigação vai agora ouvir os policiais envolvidos. Segundo o delegado, as testemunhas relataram que seriam cerca de 10 PMs.

O delegado afirma que até o momento não há evidência de que tenha havido violência física por parte da BM. Embora a causa da morte já tenha sido informada, a polícia aguarda o laudo oficial da necropsia.

 — Desde ontem estávamos ouvindo testemunhas e já estávamos visualizando, mesmo antes do laudo, que por parte da BM não houve ação que pudesse resultar na morte da Jane. Essa notícia do IGP vem bem ao encontro daquilo que já vinha se formando. Ela estaria entrando, foi contida, estava havendo ação na casa e, durante essa intervenção, que não foi violenta, ela teria escorregado e caído. Então, a única coisa que não conseguimos entender ainda é se ela caiu por causa do rompimento ou se o aneurisma se rompeu depois que ela caiu. Vamos ainda analisar tudo, laudos, depoimentos e dar seguimento ao inquérito — diz o delegado.

O filho de Jane afirma que a BM já havia ingressado na casa em outras oportunidades sem mandado e que a mãe estava indignada com essa situação. Por isso, ela teria decidido construir um muro e instalar portões de acesso. A última vez em que Ederson falou com a mãe foi na noite de segunda-feira. Ela teria pedido que ele apressasse a obra no local. 

 —  Ela reclamava muito disso, não aguentava mais. Não foi só essa vez que entraram lá. Ela pedia para acelerar a obra, mas dependia de dinheiro — diz o filho.

GZH entrou em contato com a Brigada Militar sobre esta afirmação. A BM informou que o IPM está apurando todas as circunstâncias denunciadas em relação ao caso, "inclusive essa denúncia, que apenas agora chega ao conhecimento da corporação".

O corpo de Jane foi velado no Cemitério João XVIII até as 14h desta quarta, quando ocorreu o sepultamento. 

A ONG Themis emitiu nota também nesta terça-feira sobre o fato. Na manifestação, descreve Jane como mulher negra, mãe, avó, bisavó, servidora pública municipal, Promotora Legal Popular formada pela Themis, ativista reconhecida por sua comunidade e moradora da Grande Cruzeiro. 

“É imprescindível e urgente que as circunstâncias da morte de Jane sejam rigorosamente apuradas pelas autoridades competentes; que a família e a comunidade recebam o adequado apoio e respeito do Estado e que ações concretas sejam tomadas pelo Poder Público para que os direitos e as vidas das pessoas negras e periféricas não sejam mais sistematicamente violados. O nome e a história de vida de Jane não serão esquecidos. Por sua memória, exigimos justiça e reparação”, informa a nota.  

Nota da Brigada Militar

"A Brigada Militar informa que na manhã desta terça-feira (8/12), no Bairro Santa Tereza, cidade de Porto Alegre, Policiais Militares estavam no local para verificar uma denúncia sobre maus-tratos em uma residência, quando uma moradora sofreu um mal-súbito e, mesmo após ter sido socorrida pelos policiais até o Posto de Saúde da Cruzeiro, não resistiu e veio a falecer. Informa também que instaurou um Inquérito Policial Militar (IPM) para apuração das circunstâncias dos fatos. A Brigada Militar lamenta a morte da moradora do bairro Santa Tereza."

Nota do Instituto-Geral de Perícias (na noite de terça-feira) 

"O IGP informa que a necropsia de Jane Beatriz Machado da Silva, 60 anos, identificou como causa da morte o rompimento espontâneo de um aneurisma cerebral. Não foi localizado no corpo nenhum sinal de trauma que justificasse o óbito. A causa da morte, portanto, é clínica. A perícia foi realizada por Perito Médico-Legista com especialização em neurocirurgia. O óbito foi constatado na manhã desta terça-feira, em Porto Alegre. A remoção para o Departamento Médico-Legal do IGP foi solicitada às 16h. O corpo já está liberado. O órgão dará sequência nos trâmites de praxe para emissão do laudo oficial."


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