Polícia



Um ano da ocorrência

Processo contra policiais por morte de costureira e tiros a angolano em abordagem está parado há oito meses no Judiciário

Promotoria militar alega que jamais recebeu os autos; TJ diz que enviará nesta segunda documentação que deveria ter remetido em setembro

18/05/2021 - 09h06min


Vitor Rosa
Vitor Rosa
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Gilberto Casta Almeida / Arquivo Pessoal
Encontro entre Dorildes Laurindo e Gilberto Casta Almeida acabou em tragédia em Gravataí

— A morte não queria que eu morresse.  

É dessa forma que o angolano Gilberto Casta Almeida, 27 anos, se recorda do que aconteceu em 17 de maio de 2020. Ele voltava de Tramandaí após o primeiro encontro com uma mulher que havia meses conversava pela internet, a costureira Dorildes Laurindo, 56, num dia que era marcado por sorrisos e a alegria em conhecer o mar. 

Tudo corria bem, até que a Brigada Militar (BM) passou a seguir o carro em que eles estavam e que era conduzido por um motorista que conheceram por um aplicativo de viagens. O homem não parou na ordem dos agentes. O desfecho da ação policial foi trágico: Dorildes foi morta a tiros, Gilberto foi baleado quatro vezes, espancado, ofendido e ainda passou 12 dias preso injustamente.  

O crime completa um ano nesta segunda-feira (17) e deixa marcas profundas em Gilberto, que ainda vive com uma bala alojada no joelho direito e com o medo que aparece sempre que lembra dos estampidos dos tiros e das vozes dos policiais naquela noite. Uma das frases que mais o machucam ele diz ter ouvido quando tentava explicar que era inocente: 

— Tu vai sangrar até morrer, capeta. 

O caso também deixa um vazio na família de Dorildes, que nunca mais pode conviver com a mulher descrita como de personalidade forte e divertida.  

— É muito complicado. No Dia das Mães, estávamos todos reunidos, mas ela não estava lá. Foi um ano muito triste, de muitas recordações — lamenta Marjorie Homes Luciano, irmã de Dora.  

As sequelas no sobrevivente e na família são agravadas pela sensação de injustiça. Em setembro do ano passado, o Ministério Público (MP) entendeu que não houve dolo (intenção) por parte dos policiais que atiraram 34 vezes contra o carro em que estavam os dois inocentes e o motorista Luiz Carlos Pail Júnior, foragido da Justiça por violência doméstica e que não obedeceu a ordem de parada dos policiais. 

Em seguida, a Justiça autorizou a conclusão da Promotoria e determinou que o processo fosse encaminhado à Justiça Militar, para apuração de eventual crime no âmbito militar. Só que a documentação jamais chegou nas mãos da promotora Isabel Guarise Barros, que seria responsável por analisar os autos. Por isso, passados oito meses da última decisão, o caso contra os policiais não teve nenhuma movimentação.  

O procedimento de praxe em casos como esse é a documentação ser levada da Justiça comum até a Justiça Militar do Estado, que daria carga à promotora. GZH procurou o Tribunal de Justiça (TJ) ainda na sexta-feira (14). Nesta segunda (17), a Corte informou que encaminhará o processo ainda durante a tarde. Explicou que o fórum da comarca de Gravataí só possui dois servidores no cartório e que a pandemia atrasou o andamento.  

Para a advogada Ana Konrath, que representa a família de Dorildes e também Gilberto, a lentidão de oito meses em um procedimento que deveria ser simples no Judiciário aliado à forma com que o caso foi tratado desde o início representam “fortes indícios de corporativismo”.  

— O Estado não está olhando como deveria para esse caso. É uma impunidade que ocorre pelo fato de ter policiais militares envolvidos — declarou a advogada.  

Já na apuração interna da Brigada Militar, os policiais foram indiciados por crime militar e transgressão da disciplina ainda no dia 6 de agosto de 2020. Segundo o comando da corporação, os três estão afastados e cumprem expediente administrativo. Eles respondem ao Conselho de Disciplina, em procedimento que pode gerar punição administrativa que vai desde afastamento até exclusão.  

Um dos policiais possuía histórico de agressão  

Em junho do ano passado, GZH revelou que um dos três policiais militares investigados pela perseguição já possuía três processos em aberto na Justiça Militar em razão da sua atuação na Brigada Militar. Em um deles, em março de 2020, o soldado Regis Souza de Moura foi condenado em primeira instância a sete meses de prisão por invasão de domicílio e agressão contra um adolescente em uma abordagem ocorrida em 2016, também em Gravataí. 

A Brigada Militar não havia informado sobre a condenação e dizia, antes das informações trazidas pela reportagem, que todos os agentes envolvidos na ação não tinham problemas e que "os três são ótimos". Depois, confirmou os fatos e o comandante metropolitano, Alexandre da Rosa, admitiu que o soldado "tem um histórico de muitas ocorrências".  

O caso que gerou a condenação em 2020 contra Moura ocorreu em 2016. Segundo narra a denúncia o MP, junto com outros dois colegas, ele invadiu a residência de um adolescente tratado como suspeito e o agrediu. A mãe e o irmão do menino também dizem ter sido atacados no que relataram ter sido uma "sessão de tortura física e psicológica".  

O advogado do soldado de Moura, Fabio Cesar Rodrigues, foi procurado por GZH e preferiu não se manifestar. 

Os outros agentes envolvidos na ação são o sargento Marcelo Moreira Machado e o soldado Sandro Laureano Fernandes. GZH não conseguiu localizar a defesa deles.  

O então foragido Luiz Carlos Pail Junior responde em liberdade graças a um habeas corpus concedido pela 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça. O advogado dele, Alencar Corletto Sortica, afirma que seu cliente ainda não foi citado oficialmente para início do processo. Por isso, a defesa ainda não decidiu se irá recorrer da denúncia. Ele também entende que não há prova que o ele tenha atirado contra os policiais:  

— As duas testemunhas falaram que não viram Luiz Carlos armado ou desferindo tiros contra as guarnições. E a perícia nas mãos deu inconclusiva, não encontrou provas que ele tenha atirado, o que corrobora com a versão dele. 

Gilberto e a família de Dorildes processam o Estado em uma ação que pede indenização pelos danos cometidos pelos policiais.  

Gilberto faz mestrado em Portugal e tenta seguir a vida 

Gilberto Casta Almeida / Arquivo Pessoal
Em Portugal, Gilberto faz mestrado e tenta superar traumas

Após ficar abrigado no Rio Grande do Sul na casa de outros imigrantes angolanos e, depois, voltar para onde morava, em Goiás, Gilberto partiu para outra missão em sua vida, já sem nenhuma pendência com a Justiça brasileira, que reconheceu sua inocência. Em abril deste ano, desembarcou em Portugal para fazer seu mestrado em Ciências Biomédicas, curso em que já havia sido aprovado antes de ter sido baleado e preso injustamente. Ele estuda na Universidade Beira Interior, em Covilhã, a cerca de 300 quilômetros de Lisboa.  

Sua foto de perfil no Facebook, rede social que mais usa, é uma mão negra com a frase “basta de violência policial”. Ele compartilha com frequência lembranças dos momentos que viveu em solo gaúcho.  

"Lembrarei sempre de você. Os bons não morrem, apenas vão para um lugar melhor. Espero encontrar você um dia", postou, em uma foto ao lado de Dorildes tirada na beira da praia de Tramandaí.  

Ao ir embora do Brasil para Portugal, comentou que se encerravam seis anos de relacionamento com o país que o ensinou a ser homem, mas que teve seus erros:  

"Quatro tiros e 12 dias preso mesmo sendo inocente. Apesar de tudo, te amo e te amarei sempre. Não sei quando te verei de novo, mas foi um prazer conhecer você. Mãe gentil, terra adorada. Pátria amada, Brasil."

Já Marjorie se sente decepcionada. Ela achava que a morte de sua irmã seria um marco na luta contra a violência policial:  

— Acredito que tudo tenha um propósito, e nada é por acaso. Quando aconteceu, achei que Deus permitiu que fosse com ela porque ele sabia que a gente ia atrás, que isso não se repetiria, que daríamos um ponto final na história desses casos. Mas hoje, olhando, eu fico me perguntando: qual foi a finalidade? 


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