Polícia



Crime organizado

Como facções avançam sobre bingos e contrabando no Rio Grande do Sul

GDI mostra que grupos criminosos travam disputa com contraventores em torno de atividades ilegais

01/09/2021 - 07h00min


Humberto Trezzi
Humberto Trezzi
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Anselmo Cunha / Agencia RBS
Operação da Polícia Civil, em agosto, resultou na descoberta de 31 locais de apostas controlados por uma facção

Bingo! Ao grito da palavra, homens e mulheres voltam os olhos para o sortudo, que está feliz com a vitória fugaz na aposta. Uma ninharia, um prêmio de apenas R$ 100, que pisca na tela do computador (hoje, substituto das cartelas). O que vale é a emoção de ser bafejado pela sorte. Só que aquilo que já foi um passatempo do cidadão comum – embora proibido no Brasil – agora une dois mundos fora da lei, o da contravenção e o da criminalidade organizada ligada ao tráfico de tóxicos.

Essa relação, porém, não é pacífica. Os contraventores reclamam que passaram a sofrer forte assédio das facções, que hoje controlam grande parte das casas clandestinas de jogo e máquinas de caça­-níqueis no Rio Grande do Sul. Trata-se de uma guerra no submundo que nem sempre vem ao conhecimento das autoridades policiais, uma vez que os dois lados têm o que esconder. Sob anonimato, empresários de jogos aceitam relatar a sua versão da disputa.

A contravenção do jogo virou investimento de quadrilhas de traficantes, assaltantes e homicidas, para limpar seus lucros com o crime. O dono do cassino ilegal diz ter duas alternativas: aceita a extorsão ou sofre consequências, espancamento, expulsão ou morte.

E a jogatina é só uma das frentes de diversificação do faturamento das facções. Elas avançam sobre todo o mercado clandestino, especialmente o não sangrento, e que, por isso, está em segundo plano nas ofensivas policiais.

Muita gente jamais pensou em financiar o tráfico e seus subprodutos, como os homicídios, mas corre o risco de fazer isso, ao tentar a sorte num bingo, ao fumar um cigarrinho paraguaio, ao passar num cabaré, ao usar bijuterias contrabandeadas ou até mesmo ao ouvir música num aparelho comprado sem nota fiscal. Isso porque, traficantes vêm exigindo propina sobre comércio ambulante, cigarro falsificado, prostituição nas calçadas, night-clubs e até de mesas de sinuca e de fla-flu em bares esfumaçados.

O percentual de “pedágio” varia. Pode ir de 10% do faturamento (no caso de empresários mais articulados na política e com conhecidos nas polícias) até 50% (quando o extorquido não tem poder de pressão, nem seguranças para se proteger). É o que constatou o Grupo de Investigação da RBS (GDI), por meio de conversa com criminosos receptadores de produtos contrabandeados, donos de casas de jogos ilegais, apostadores e policiais.

As facções já não se limitam a ter como clientes os dependentes de drogas. Agora, ambicionam conquistar o cidadão comum, menos envolvidos com delitos. As polícias sabem dessa diversificação, mas os maiores esforços de repressão são canalizados aos crimes contra a vida. Acontece que as duas performances estão mescladas, como mostram investigações recentes da Polícia Civil.

Em 1933, o presidente Getúlio Vargas decidiu legalizar a jogatina e cassinos no país. Após assumir o lugar de Vargas, Eurico Gaspar Dutra proibiu, em 1946, os jogos de azar. Em 1993, a Lei Zico autorizou a volta de bingos, para entidades esportivas angariarem fundos. Em 2004, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva editou medida provisória vetando bingos e caça-níqueis.

Uma delas resultou na descoberta de 31 locais de apostas controlados pela facção Bala na Cara em Cachoeirinha, Gravataí, Porto Alegre, Esteio, Portão, Guaíba e Pelotas. A exploração era feita por um dos ramos mais violentos da quadrilha, responsabilizado por pelo menos 30 homicídios. Colaboração premiada feita por um integrante do bando revelou nomes de 79 matadores.

Restaurantes

No celular de um dos gerentes da quadrilha consta a contabilidade do porcentual cobrado de bingos e casas com caça-níqueis, em troca de “proteção” da facção. Em um caso, cansado de extorsões, um antigo dono largou o negócio, e a facção escolheu os novos gerentes das casas de apostas, os empregados e organizou o pagamento de salários e dos restaurantes abertos 24 horas por dia para saciar a fome dos jogadores.

A negativa em “colaborar” com facções gera mortes, e não só em tempos atuais. Em junho de 2012, o empresário Marco Aurélio Guimarães Assmuss, aos 59 anos – um dos donos do mais famoso bingo de Porto Alegre, o Coliseu Roma – foi morto com três tiros por um motoqueiro, enquanto almoçava ao lado da casa de jogos. O crime até hoje não está elucidado, mas Assmuss vinha se queixando de chantagem de traficantes a quem se recusara a pagar propina. Coincidência ou não, um dia antes da sua execução, seu bingo pegou fogo.

O próprio Assmuss tinha antecedentes por tráfico, inclusive com condenação a 12 anos de reclusão. Seria sua morte uma queima de arquivo ou represália por não ceder à chantagem de traficantes? 

Outro caso pode ter ocorrido por engano. O empresário Jair Silveira de Almeida, 53 anos, foi executado em sua Range Rover em Porto Alegre, em 2019. Conforme delação obtida pela Polícia Civil, quem deveria morrer é um conhecido dele, envolvido com jogatina ilegal e que se recusava a pagar propina para uma facção.

Relatos de ameaças e ataques

O GDI procurou bicheiros, que falaram do assédio das facções aos contraventores donos de jogos ilegais. O proprietário de um bingo com negócios em Porto Alegre relatou por mensagem, em julho, o que seria parte do cenário da clandestinidade e de cobranças de propina:

– Estou sob ataque... Piorou tudo. Até explodiram a entrada do bingo. Jogaram um coquetel-molotov. (...) Estou sob pressão. Me incomodaram a noite toda. É forma de eles (facções) extorquirem as pessoas.

O proprietário da casa de jogo clandestino não informou à reportagem se procurou a polícia para denunciar os supostos ataques. 

O GDI falou com outro empresário que abriu ilegalmente um bingo em 2018, em Porto Alegre. Diz que, em 15 dias, ele e o gerente foram abordados por algumas pessoas, exigindo propina:

Eles lavavam dinheiro do tráfico por meio das máquinas eletrônicas, veículos e compra ou aluguel de residências.

FERNANDO BRANCO

Delegado, sobre atuação de facção no Vale do Paranhana

– Entraram e roubaram meu bingo na madrugada. A facção abusou e exigiu R$ 3 mil, por semana, foi aumentando. Mandou homens armados. Aí, decidimos fechar.

No Vale do Paranhana, os caça-níqueis mudaram de mãos. Donos de bares que exploravam de forma ilegal e independente as maquininhas de aposta eletrônica capitularam para a facção Os Manos. Operação da Polícia Civil em 2018 constatou que esse agrupamento criminoso avança sobre a jogatina em 13 cidades daquela região, da Serra e do Litoral Norte.

Ao se impor perante os pontos de apostas, a facção usou bandidos que vestiam uniformes similares aos da Polícia Civil e simulou apreensão de caça-níqueis. A ação foi gravada em câmera. Chegaram a sequestrar o proprietário de um bar que resistia a pagar suborno.

O delegado de Sapiranga, Fernando Branco, comandou a investigação no Vale do Paranhana e apreendeu R$ 3 milhões em bens dos criminosos, além de prender 21 pessoas e de pedir à Justiça o bloqueio de contas bancárias. Eles foram denunciados, mas o caso ainda não foi julgado.

– Eles lavavam dinheiro do tráfico por meio das máquinas eletrônicas, veículos e compra ou aluguel de residências – resume Branco.

Os Manos também avançam sobre a jogatina nos vales do Rio Pardo e do Taquari. Segundo bicheiros, algumas de suas casas teriam sido metralhadas pela facção em Santa Cruz do Sul, mas eles não informaram se procuraram a polícia para relatar o episódio. 

Mensagens

Para interromper os ataques, a facção teria exigido R$ 650 mil por mês e mais 10% dos lucros mensais dos exploradores de jogos dos dois Vales, conforme apontou inquérito da Polícia Civil, enviado à Justiça em 2020 e conduzido pelo delegado Luciano Menezes. Fontes da jogatina confidenciaram posteriormente ao GDI que houve negociação. Os valores teriam sido reduzidos, e os contraventores contam que formaram um pool para efetuar pagamentos à facção.

Em 2020, a Polícia Civil agiu. Apreendeu 30 veículos e fez buscas em 23 endereços de chefes da jogatina e do tráfico nos vales do Rio Pardo e do Taquari. Mas os jogos ilegais ainda estariam ocorrendo, assim como a propina para a facção, conforme apuração do GDI.

Nas Missões, bicheiros também alegam que têm de pagar pedágio a Os Manos para manter suas atividades ilegais. Duas bancas de Santa Rosa foram incendiadas no ano passado supostamente após relutarem em fazer o acerto. 

O GDI recebeu das fontes da reportagem áudios de Whatsapp que donos de jogos ilegais alegam ser de ameaças feitas por uma facção.

– Vamos tocar fogo em tudo as bancas de vocês, que nem fizemos nos bar, entendeu? Vem na fita, troca ideia, vamos fechar um acerto, um acordo – diz um dos áudios, em transcrição literal, que seria de uma pessoa presa.

Em mais um áudio, também em transcrição literal, o suposto integrante de facção (outro que estaria preso) teria feito nova ameaça:

– Tu acha que tá falando com quem? Se não fechar com nóis tu não trabalha mais, tu vai passar para o andar de cima, terra dos pé junto, conhece?

Como algumas bancas do bicho tinham sido atacadas em Santa Rosa, a Polícia daquela região prendeu traficantes suspeitos de veicular as ameaças. E elas cessaram, tanto lá quanto em Ijuí, informa o delegado regional, Ricardo Miron.

Em Bagé, três residências de bicheiros foram incendiadas em 2020. Policiais civis prenderam os supostos autores, que trabalhariam para um chefe do tráfico preso na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). Ele foi transferido para outra parte do país, e os ataques pararam.

Clique aqui para ler a  segunda parte desta reportagem: “Querem participação até na sinuca”, diz receptador de cigarro pirata sobre extorsões de facção. 



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