Polícia



Um ano depois

Lei dos maus-tratos registra um caso por hora de violência contra animais de estimação no RS

Apesar de avanços, como prisão de agressores, Ministério Público e entidades de proteção apontam questões que precisam ser revisadas

28/09/2021 - 08h40min

Atualizada em: 28/09/2021 - 08h40min


Cid Martins
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Marco Favero / Agencia RBS

Na próxima quarta-feira (29), a nova lei federal sobre maus-tratos a cães e gatos completa um ano. Neste período, em que se aumentou a pena para agressores, ocorreram 64 prisões em flagrante registradas em delegacias do Rio Grande do Sul e 10 condenações. Além disso, entre 29 de setembro de 2020 e 31 de agosto de 2021, Brigada Militar e Polícia Civil atenderam a mais de 8,1 mil casos de crueldade a bichinhos de estimação – praticamente uma agressão a cada hora. Ainda houve mais 2,8 mil casos de falta de cuidados e negligência no período, ou seja, um a cada três horas. Já o Tribunal de Justiça abriu 1.021 processos.

A questão, entretanto, vai além de números. Se por um lado, a Lei 14.064 trouxe um efeito preventivo e educativo, bem como a possibilidade da conversão dos flagrantes em prisão preventiva — pelo fato da pena ficar entre dois e cinco anos de reclusão –, por outro, o Ministério Público (MP) lembra que outros animais, como o cavalo, que também sofre muito, ficaram de fora da nova regulamentação.

Outro detalhe é que, na prática, quase sempre tem ocorrido acordos previstos na legislação, excluindo o processo criminal e interferindo no flagrante. Entidades de proteção também concordam com mais uma questão levantada pela promotoria gaúcha: a nova lei pune o agressor, mas não garante o atendimento à vítima. 

Apesar desses pontos, as polícias se equiparam e treinaram para atender a demanda, assim como alguns municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre aprimoraram legislações próprias ou criaram setores específicos para esta causa.

Com a sanção do presidente Jair Bolsonaro, no final de setembro do ano passado, a punição foi aumentada. Anterior a esta data, um agressor ficava sujeito à Lei 9.605 de 1998, que estipulava detenção de três meses a um ano de prisão, além de multa, aumentando a reclusão em até um terço no caso de morte do animal. 

Com uma pena muito baixa, não ocorria prisão e processo criminal, gerando uma transação penal. Agora, a situação é outra, ocorrendo a prisão para agressores de cães e gatos com um período de até cinco anos e podendo chegar a seis anos e meio conforme agravantes, como o caso da morte do animal.

Avanços

O coordenador do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente do MP, promotor Daniel Martini, destaca que a nova lei dos maus-tratos é importante e fala sobre o efeito preventivo e educativo que ela trouxe para toda a sociedade.

— Um agressor vai pensar duas vezes antes de cometer este crime pelo fato de que sabe da pena mais alta — explica.

Martini ainda destaca que a regulamentação trouxe a possibilidade de um flagrante, podendo ser convertido em prisão preventiva. Já Rejane Ferreira, 48 anos, da Associação Duas Mãos Quatro Patas, na zona sul da Capital, entende que o primeiro passo foi dado, mas diz que ainda tem muito a ser feito.

— E o primeiro é o fato de que outros animais precisam estar incluídos nessa lei — ressalta.

Questões não atendidas

Assim como Rejane, Martini ressalta que apenas cães e gatos foram incluídos na nova lei, apesar dos seres humanos terem vários outros bichos de estimação, sem contar a fauna que existe nas cidades, por exemplo. O promotor ainda entende, o que já é debatido no meio jurídico, que a punição é considerada desproporcional ao ficar, por exemplo, superior à punição de homicídio simples em caso de agravantes.

Além disso, tem ocorrido acordos previstos em lei, excluindo o processo criminal e interferindo no flagrante. Por isso, os casos de maus-tratos e omissões têm sido tão superiores aos de prisões em flagrantes no Rio Grande do Sul (como mostra o quadro acima). 

Martini destaca o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), que consta no Artigo 28 A do Código Penal, quando o criminoso tem bons antecedentes e ainda não tenha se utilizado de benefícios.

— Na prática, exclui o processo criminal, interfere no flagrante e na manutenção da prisão e até mesmo na conversão de flagrante para prisão preventiva. Em que pese a exacerbação da pena, o processo criminal em si, por esses fatos, vira exceção, sendo regra a realização de acordo entre promotor e réu — explica Martini.

Para o promotor, ocorre uma falha terrível na política pública de proteção aos animais. Segundo ele, esta questão sobre atendimento após agressões ficou de fora da lei. Rejane concorda com o MP no fato de que essa atribuição envolvendo tratamento acaba recaindo para as Organizações da Sociedade Civil (OSC) – como são chamadas hoje as ONGs – ou para estabelecimentos privados, bem como para os municípios, que muitas vezes reclamam da falta de recursos em relação a atendimentos, recolhimentos e abrigo.

— Para nós, a realidade continua a mesma com esta lei. A pergunta de um milhão de dólares é: para quem eu ligo se encontrar um animal atropelado ou agredido? — questiona Rejane.  

Ela ainda diz que o custo para internar e tratar é alto e, por isso, muitas pessoas não têm condições de pagar quando se deparam com uma situação de maus-tratos e desistem, mesmo querendo ajudar os animais.

Especialistas

O Tribunal de Justiça do Estado, por meio de sua assessoria de imprensa, informa que, em um período aproximado de um ano após a nova lei, ou seja, de 29 de setembro de 2020 a 15 de agosto deste ano, registrou 1.021 processos sobre maus-tratos a animais. Neste período, 10 pessoas foram condenadas.

O advogado Rogério Rammê, professor de Direito Animal, entende que a punição não seja exacerbada, já que anteriormente, as condenações eram muito menores comparadas aos registros de ocorrências policiais sobre maus-tratos. Ele acredita que o efeito educativo virá aos poucos com o aumento da pena, mas entende que ainda precisa de ajustes no caráter preventivo. 

— Além disso, a lei nova pune mais severamente e traz como uma das consequências da condenação a perda da guarda. Sob esse viés, poderá ser pedagógica para casos futuros de agressão, porém não tem um viés preventivo claro. Esse tipo de política pública precisa ser desenvolvida em paralelo pelo governo — explica.

A advogada Helena Sant'Anna, de Porto Alegre, defensora da causa animal, acredita que a lei é omissa. Tanto ela, quanto o advogado Rammê, acreditam que todos os animais deveriam estar incluídos e tem ainda a questão de que, os animais não sendo considerados sujeitos de direito, toda a coletividade acaba sendo vítima.

— Pois, uma agressão a um animal, seja ele cão e gato, ou qualquer outro, poderá chocar a sensibilidade média da comunidade — explica Helena.

No que tange à exacerbação da pena, a advogada entende que o cumprimento delas no Brasil não é integral devido à distorção legislativa criada pela Lei de Execuções Penais. Helena também não concorda com ajustes penais que eliminam processos e interferem nos flagrantes. Para ela, não é correto permitir medidas pedagógicas quando uma pessoa é agredida, tão pouco em relação aos animais.

A vereadora de Porto Alegre Lourdes Sprenger (MDB) teve uma proposta aprovada neste ano pela Câmara Municipal. Trata-se de um projeto de lei complementar que define um regime jurídico especial aos animais domésticos com o objetivo de vedar qualquer prática de maus-tratos.

— A proposta tem como base o reconhecimento da natureza biológica e emocional dos animais, capazes de terem sensações e sentimentos — ressalta Lourdes.

As práticas, conforme o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), foram tipificadas em 30 itens, entre eles: ferir ou mutilar, manter em lugares anti-higiênicos, submeter a trabalhos excessivos, privação de ar ou luz, abandonar, deixar de fornecer água ou alimento, utilizar coleira de choque e envenenamento.  

Prefeituras  

Assim como existe a questão da falta de recursos por parte de algumas prefeituras para o acolhimento de animais machucados, como destacaram alguns especialistas, também há executivos municipais tentando reverter esta situação. Mais do que prevenir casos como o da cadela Belinha — morta por um comerciante em Sapucaia do Sul — ou o de outra cadela morta com 15 golpes de facão em Gravataí, ambos os crimes no ano passado, a ideia é também acolher animais feridos. 

Érico Fabres / Agencia RBS
Segundo o MP, canil de Gravataí é referência no atendimento a animais feridos

Em Gravataí, citada como referência nacional neste assunto pelo promotor Martini, tem uma Unidade de Saúde Animal — o canil municipal, como era o nome inicial — com várias salas de recuperação e espaços operatórios em uma área de 1,2 mil metros quadrados.

O prefeito Luiz Zaffalon (MDB) diz que são recebidas 30 denúncias por dia sobre maus-tratos, sendo confirmadas pelo menos 10% delas, mas todas atendidas.

— Chamamos de canil, mas é um local para resgate de cães, gatos, cavalos e todos os animais possíveis. Tratamos, recuperamos, castramos e colocamos para doação em feiras, além das campanhas — explica Zaffalon.

Denúncias podem ser feitas pelo (051) 31914947 e pelo WhatsApp (51) 9.9226-5955 ou pelo 153 da Guarda Municipal.

Em Porto Alegre, foi criado o Gabinete da Causa Animal neste ano. A diretora Catiane Mainardi diz que há seis médicos veterinários, além de outros servidores, responsáveis pelo atendimento e pela fiscalização.

— Além de atuarmos na verificação de denúncias e irregularidades flagradas, promovemos a educação sobre cuidados aos animais, bem como a regulação de canis e gatis comerciais e não comerciais — diz Catiane.

Contudo, o Gabinete tenta ampliar a capacidade limitada a cem animais — na Lomba do Pinheiro —  para atendimento veterinário. Por outro lado, já verificou desde março deste ano 967 denúncias de maus-tratos. A comunidade pode ligar para o telefone 156. O telefone 190 da Brigada Militar também pode ser usado. 


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