Polícia



Atlas da Violência

Taxa de homicídios é mais alta entre pessoas negras no RS

Assassinatos vêm caindo no Estado, mas cenário não é igual para todos

03/09/2021 - 07h00min

Atualizada em: 03/09/2021 - 07h00min


Leticia Mendes
Marco Favero / Agencia RBS
Multidão em protesto realizado em novembro do ano passado, após morte de cliente negro em supermercado da zona norte

Assim como no país, a violência atinge de forma diferente as camadas da população gaúcha. É o que mostra o Atlas da Violência 2021, divulgado nesta semana pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O estudo aponta que pessoas negras correm mais risco de morrer no Estado e que a taxa de homicídios entre os negros é, inclusive, mais alta.

A pesquisa indica que os homicídios, de maneira geral, vêm caindo nos últimos anos no país — após ápice de conflitos armados nos anos de 2016 e 2017. Mesma realidade se percebe no RS, onde os assassinatos apresentam redução, mas esse cenário não é igual para todos.

Quando dividimos em negros (inclui pardos) e não negros (brancos, amarelos e indígenas), a taxa não se comporta da mesma forma. No Brasil, por exemplo, um negro tem risco 2,6 maior de ser morto e as vítimas negras representam 77% das pessoas assassinadas, com taxa de 29,2 por 100 mil habitantes. No RS, a taxa é mais baixa do que a nacional, 22, mas mais alta do que a da população em geral, de 19,2, e ainda mais do que entre não negros, que é de 18. 

Em quase todos os Estados brasileiros, um negro tem mais chance de ser morto do que os demais, com exceção do Paraná e de Roraima. No RS, o risco de uma pessoa negra ser assassinada é 1,2 maior. Em Alagoas, a situação é ainda mais grave e esse dado chega a 42,9.

— A população negra está mais exposta à violência como um todo, como os homicídios e as lesões corporais. Quando se trata de violência de Estado, esta taxa também está acima. Bem acima da média da população branca. Quando fala em racismo institucional estamos falando disso. Que a violência de Estado opera muito mais sobre os corpos negros do que sobre os corpos brancos — analisa Gilvandro Antunes, membro do Vidas Negras Importam.

O sociólogo aponta entre os fatores para intensificação da violência contra pessoas negras o preconceito com a cor da pele e a estigmatização do espaço de moradia — pelo fato de a pessoa habitar áreas de periferia, por exemplo. Também enfatiza a necessidade de investimentos em políticas públicas, como garantia de acesso à escola, saúde de qualidade, cultura, transporte público adequado e empregos formais, especialmente para garantir que jovens tenham oportunidades.

— Tudo isso é reflexo de quase 400 anos de escravidão no nosso país. A população negra sempre foi preterida, marginalizada. Nunca foram dadas oportunidades, após essa falsa abolição. Quando trazemos essa questão da violência ou do mercado de trabalho, começamos a perceber que os números são muito gritantes em relação à população negra. É a população que mais sofre com violência policial e mais sofre com perda de jovens periféricos para o narcotráfico — argumenta Letícia Marques Padilha, advogada e integrante do Movimento Negro Unificado.

Os dois movimentos estão envolvidos na busca por medidas relacionadas ao caso do engenheiro negro Gustavo Amaral, 28 anos, durante abordagem policial em Marau, no Norte, ano passado. Entre as medidas que apontam como essenciais, estão o aumento da carga horária de direitos humanos e de antirracismo na formação policial, além do uso de câmeras na farda dos agentes. 

Após encontrar a família do engenheiro, e representantes do movimento negro, o governador Eduardo Leite decidiu criar grupo de trabalho, liderado pela Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos, para debater temas relacionados ao genocídio da população negra e a relação com a polícia.

Em dezembro de 2020, o RS inaugurou a primeira Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância. A medida havia sido anunciada em 20 de novembro, um dia após o assassinato de João Alberto Freitas, 40, cliente negro, espancado e morto dentro do supermercado Carrefour na zona norte da Capital

O foco da unidade é atender vítimas de intolerância racial, religiosa, quanto à orientação sexual, entre outras. Os delitos relacionados ao preconceito de cor lideram os registros na nova DP, com mais da metade dos casos, segundo a titular, delegada Andréa Mattos.

O ambiente de trabalho ou mesmo comércios são os pontos onde mais acontecem os episódios envolvendo preconceito racial que são registrados no local. A maioria dos casos, no entanto, não está relacionada à violência física e, sim, a agressão verbal, mas que também provoca abalos psicológicos nas vítimas. A delegada destaca ainda a importância de as pessoas procurarem a polícia e tentarem reunir o máximo de provas possíveis do caso:

Falta conscientização por parte das pessoas, principalmente das pessoas brancas que racismo existe, que está enraizado, e que todos nós podemos cometer praticas racistas.

ANDRÉA MATTOS

Delegada

— Muitas vezes algumas pessoas nem se dão conta que aquela pratica é racista. E os acusados usam como justificativa o fato de que tem amigos ou familiar negro. Como se o fato se relacionar com pessoa negra eximisse da culpa, do racismo. Falta conscientização por parte das pessoas, principalmente das pessoas brancas que racismo existe, que está enraizado, e que todos nós podemos cometer praticas racistas.

 Mulheres negras correm mais risco de serem mortas

O Atlas da Violência revela ainda que as mulheres negras correm mais risco de serem mortas do que as demais. O chamado risco relativo é de 1,2 no RS — no país é de 1,7. Em 2019, segundo a pesquisa, 236 mulheres foram assassinadas no Estado (não apenas casos de feminicídios). Dessas, 52 são identificadas como negras e 177 como não negras (em sete casos não foi possível precisar).

Quando olhamos o comparativo com 2009, percebe-se que os homicídios de mulheres aumentaram 4,9% (de 225 para 236) — embora seja preciso ressaltar que o número foi maior, chegando a 308 em 2016, e depois apresentando queda. No entanto, nos casos em que a vítima é negra, o salto é de 44,4% no mesmo período (de 36 para 52). Já entre aquelas identificadas como não negras houve redução de 4,8% (de 186 para 177).

A mulher negra é a que ganha menos na escala na pirâmide do trabalho. Primeiro, estão homens brancos, mulheres brancas, homens negros e, por último, mulheres negras. Sempre lá embaixo na pirâmide.

LETÍCIA MARQUES PADILHA

Advogada

— A mulher negra é a que ganha menos na escala na pirâmide do trabalho. Primeiro, estão homens brancos, mulheres brancas, homens negros e, por último, mulheres negras. Sempre lá embaixo na pirâmide. Isso não é muito diferente quando traz assunto violência contra mulher negra. O corpo negro sempre tem menor valor. A cor da pele chega antes de qualquer coisa — afirma advogada Letícia Marques Padilha, integrante do Movimento Negro Unificado.

No Brasil, o comparativo também aponta disparidade, enquanto as mulheres negras tiveram acréscimo de 2% nos assassinatos, de 2.419 em 2009 para 2.468 em 2019, as não negras tiveram queda de 26,9%, de 1.636 para 1.196. Há disparidade ainda na taxa de homicídios — enquanto a de mulheres negras é de 4,5 (com aumento de 4,9% se comparado a 2009), a de não negras é mais baixa, com 3,8, e apresentou queda de 1,6%. A taxa do RS para mulheres negras é, inclusive, maior que a nacional (4,1). A maior apresentada entre os Estados foi em Roraima (9,6).

No cenário nacional, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras foi de 2,5, a mesma taxa para as mulheres negras foi de 4,1. Os Estados que apresentaram maior risco relativo de vitimização letal de mulheres negras foram Rio Grande do Norte (5,2), Amapá (4,6) e Sergipe (4,4). No Brasil, 66% das mulheres assassinadas em 2019 eram negras. No RS, as mulheres negras representam 23% das vítimas do sexo feminino — o percentual é o menor do país.

Indígenas

O RS está entre os cinco Estados que apresentaram em 2019 taxa de assassinatos de indígenas maior do que a taxa geral de homicídios. Enquanto entre indígenas foi de 20, entre a população total foi de 19,1. O Atlas destaca os Estados que apresentaram esse cenário, considerando a situação mais grave, mas detalha que, em termos absolutos, alguns tiveram os menores números de assassinatos. O RS está entre eles, com sete casos. Outros Estados apresentaram os maiores números, como Amazonas (49), Roraima (41) e Mato Grosso do Sul (39). No Brasil, as taxas de homicídios indígenas aumentaram na última década, ao contrário da taxa brasileira.  

Homicídios em queda

A redução de homicídios, que vem sendo percebida no RS nos últimos anos, após intenso período de conflitos entre grupos criminosos em 2016 e 2017, pode ser visualizada no Atlas. Enquanto o Brasil teve queda de 12,6% nos homicídios, no comparativo entre 2009 e 2019, o RS teve redução de 2,6%. A taxa de assassinatos por 100 mil habitantes diminuiu no mesmo período, chegando a 19,2 em 2019 no Estado. A taxa no Brasil naquele ano foi de 21,7.  

Uma das constatações do Atlas, no entanto, é de que, no país, a redução dos homicídios esteve mais concentrada na população não negra. Em números, entre 2009 e 2019, os homicídios de pessoas negras no RS subiram 15,7% — no Brasil, o aumento foi de 1,6%. No mesmo período, no RS, o número de pessoas não negras assassinadas teve queda de 8,6%. Já quando olhamos as taxas o cenário é diferente: redução da taxa mais acentuada entre negros, 17,1%, enquanto entre não negros foi de 5,8%. A taxa de negros assassinados no RS já foi mais alta: em 2017, por exemplo, chegou a 36,7, enquanto a de não negros era de 27,1.

A cada dois dias, cinco jovens assassinados

A violência é a principal causa da morte de jovens no país e ainda mais evidente quando se trata do sexo masculino. No RS, o cenário também mostra que essa camada é uma das mais atingidas. Em 2019, foram 996 vítimas entre 15 e 29 anos, o que resulta numa média de cinco mortos a cada dois dias — 91,2% eram do sexo masculino. Quando isolamos somente os jovens, a taxa de homicídios sobe no RS de 19,1 para 39,5. E se olhamos somente para os jovens do sexo masculino, salta para 70,8.

Dos 45.503 homicídios ocorridos no Brasil em 2019, 23.327 vítimas eram jovens, que tiveram vidas ceifadas, em uma média de 64 assassinados por dia. Apesar dos dados alarmantes, nos últimos anos, os números de jovens assassinados vêm caindo no país. No comparativo entre 2019 e 2009, o Brasil teve redução de 17,5% no assassinato de jovens. No RS, essa diminuição foi de 7,9% (de 1.081 para 996). A pesquisa aponta que, ainda assim, a perda de jovens para a violência é um problema endêmico no Brasil, sem perspectiva de mudança a curto ou médio prazo.

— Vivemos uma epidemia, que faz com que os jovens tenham como principal causa da morte a violência. Quando se trata de jovens negros, essa expectativa de vida é ainda mais baixa tendo em vista essa exposição da violência, do racismo, da estigmatização do espaço urbano e renda. A renda é mais baixa e o desemprego atingem majoritariamente os jovens. E quando se trata de jovens negros, o impacto ainda é maior — afirma Antunes.

No RS, uma das estratégias lançadas no ano de 2019 foi o programa RS Seguro, que busca atacar diferentes frentes para conter a violência. Algumas áreas são o combate ao crime, a prevenção da violência, especialmente com foco na juventude, por meio de projetos sociais envolvendo não somente a segurança pública, e a tentativa de desafogar o sistema carcerário. A Secretaria da Segurança Pública (SSP) do Estado informou que não comenta levantamentos externos.

Delegacia de Combate à Intolerância

A Delegacia de Combate à Intolerância fica na Avenida Presidente Franklin Roosevelt, nº 981, no bairro São Geraldo, na zona norte de Porto Alegre.  O registro pode ser feito em qualquer delegacia, mas se o caso aconteceu em Porto Alegre será encaminhada para a DPCI.  O telefone de contato é 51 3224-6086.


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