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Intolerância

Casos de racismo mais do que dobraram desde o ano passado em Porto Alegre

Número de ocorrências passou de 24 entre janeiro e setembro de 2021 para 61 em 2022, conforme dados da Polícia Civil. Média é de quase um caso a cada cinco dias

16/11/2022 - 12h16min

Atualizada em: 16/11/2022 - 12h16min


Bruna Viesseri
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Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
A delegada Andrea Mattos é a titular da Delegacia de Combate à Intolerância da Capital, que existe há dois anos

O número de ocorrências registradas pelo crime de racismo mais do que dobrou nos últimos dois anos em Porto Alegre. Entre janeiro e setembro de 2021, foram 24 registros, número que subiu para 61 no mesmo período de 2022. O levantamento indica ainda ligeira queda no registro de ocorrências por injúria racial, que foi de 166 nos primeiros nove meses de 2021 para 152 em 2022. 

De acordo com a Delegacia de Combate à Intolerância da Capital, responsável pelo levantamento, a alta no indicador de racismo não significa necessariamente que os casos tenham aumentado. Uma possibilidade para a elevação é que as vítimas vêm criando consciência sobre os episódios sofridos, entendendo que não deveriam ocorrer, e se encorajando a denunciar.

Na legislação, há distinção entre racismo e injúria racial. O primeiro consiste em atingir uma coletividade de pessoas, ao discriminar a integralidade de uma raça, cor ou etnia. É a crença de que existe uma hierarquia entre as raças, que pessoas negras são inferiores às brancas, por exemplo.

Já a injúria racial ocorre quando se ofende a honra de um indivíduo, valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia ou origem. Nesses casos, há ocorrências registradas com insultos como “negro sujo”, explica a Polícia Civil, em que a característica da pessoa é usada para insultá-la.

Na avaliação da delegada Andrea Mattos, titular da Delegacia de Combate à Intolerância da Capital, um dos fatores para o aumento de denúncias por racismo é a repercussão de casos registrados nos últimos anos, que ajudam as pessoas a se reconhecerem como vítimas em situações vividas no dia a dia.

Um dos casos citados pela delegada é o de João Alberto Silveira Freitas, morto por seguranças nas dependências do Carrefour da zona norte de Porto Alegre, em novembro de 2020. Meses antes, em maio de 2020, um caso similar teve indignação mundial: a morte do afro-americano George Floyd, depois que um policial de Minneapolis, nos EUA, ajoelhou-se sobre seu pescoço por quase 10 minutos.

Em caso mais recente, o cantor Seu Jorge sofreu insultos racistas durante um show em outubro, na Capital.

Instagram / Reprodução
Seu Jorge gravou vídeo logo depois do episódio

— Toda vez que há um caso de repercussão como esses, mesmo que seja uma indignação mais local, ocorre uma identificação por parte das pessoas, a gente percebe um aumento de registro no período após os fatos. Elas percebem que algumas situações que passaram configuram crime, que não são algo normal, e tomam coragem para denunciar. Além disso, vejo uma mudança de entendimento das vítimas, de perceber que alguns casos não se tratam de injúria racial, mas sim racismo mesmo, um alcance maior — afirma Andrea.

Denúncias

A diretora do Núcleo de Direitos Humanos da Associação dos Juízes do Estado (AJURIS), Karen Luise Vilanova Batista de Souza, também acredita que a repercussão dos casos citados incentiva vítimas e testemunhas a buscarem por responsabilização.

— Pensar sobre o racismo, pensar que vidas negras importam, acabou por encorajar não apenas pessoas negras, mas também as brancas, que agora não silenciam diante das violações de direitos humanos no que diz respeito à raça — diz a especialista, que também é juíza-auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça.

Karen também destaca a possibilidade de que as subnotificações estejam caindo:

— Com o reconhecimento de que o Brasil é um país racista, um lamentável legado da escravidão, passamos a iluminar a forma como as relações sociais se apresentam, e as pessoas passaram a notificar com maior frequência.


Delegacia surgiu há dois anos


Outro fator apontado é a criação da Delegacia Especializada no Combate à Intolerância, um espaço destinado a atender de forma qualificada as vítimas, o que também contribuiu para a maior procura, afirma Andrea.

Implementada em dezembro de 2020, a delegacia também tem atribuição para investigar, além de casos de racismo e injúria racial, os de preconceito contra demais grupos vulneráveis, como a comunidade LGBT+, deficientes, pessoas de outras nacionalidades e vítimas de intolerância religiosa.

Segundo Andrea, o maior número de registros é por preconceito contra cor, que representa cerca de 65% das ocorrências.

Um dos grandes diferenciais da delegacia é o atendimento especializado para atender esses crimes. Segundo Andrea, as equipes passam por treinamentos de forma constante, e recebem capacitação por parte de integrantes de associações e ONGs da área.

Outros sete policiais integram a equipe. Em capacitações feitas  por meio da Academia de Polícia, cerca de 400 policiais civis receberam qualificação para atender e orientar vítimas de casos de intolerância.


Quando ocorre o acordo entre as partes, na mediação, os casos costumam ser resolvidos de maneira mais rápida e o combinado é chancelado pelo Poder Judiciário. Quando as partes não têm interesse no acordo, o inquérito segue em andamento. 

O desafio de coletar provas


Durante a investigação de episódios de racismo e injúria racial, um dos desafios é reunir provas. Segundo Andrea, em muitos casos, apenas a vítima e o agressor estão presentes no momento das ofensas. Sem testemunhas ou gravação, o inquérito pode acabar emperrando. Nesse sentido, a delegada destaca a importância de documentar, sempre que possível, os fatos:

— Pode gravar vídeo, áudio, chamar alguém que esteja por perto para testemunhar. Nas redes sociais, é válido também salvar o que foi dito. O ideal é que as pessoas compareçam à delegacia com o maior número de provas e informações que conseguirem, porque ajuda a promover o indiciamento.

Testemunhas

Coordenadora do Centro de Apoio de Direitos Humanos do Ministério Público, Gisele Monteiro também ressalta a importância da participação no processo de pessoas que tenham testemunhado os casos. Enquanto integrante do centro, que presta informações e faz material de apoio para promotores do MP, Gisele auxiliou a promotoria que atuou no caso João Alberto.

— Ainda temos um baixo número de pessoas que se propõem a testemunhar, que é uma parte muito importante para a polícia e para o MP. Às vezes, não temos como agir sem ter pessoas que se disponham a falar o que viram, o que ouviram. A grande diferença no caso do João Alberto foi a filmagem, as imagens que as pessoas encaminharam, que são provas.

Contudo, mesmo nos casos em que não se tenha testemunhas nem provas, a delegada Andrea defende que o boletim de ocorrência seja feito. Os dados, afirma, ajudam a polícia a monitorar os episódios.

— É importante que a gente saiba onde os casos ocorrem, em que contexto, com quem, como. Até pelo preventivo, para pensarmos ações.


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