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Limpeza urbana

Projeto promove trégua na disputa entre catadores e prefeitura de Porto Alegre por resíduos recicláveis

Após sofrerem multas de até R$ 7 mil com base no Código Municipal de Limpeza Urbana, 143 recicladores autônomos ganham carteiras para trabalhar 

14/10/2022 - 07h00min

Atualizada em: 14/10/2022 - 07h00min


Kênia Fialho
Kênia Fialho
Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
Jorge foi um dos trabalhadores que buscaram ajuda da Defensoria Pública do Estado

O desentendimento entre a prefeitura de Porto Alegre e os catadores autônomos, sobre quem teria direto de manejar os resíduos sólidos urbanos, parece ter encontrado uma via de conciliação. Desde 2021, catadores e recicladores que utilizam veículos para realizar a coleta dos materiais afirmam ter notado um aumento na fiscalização e na aplicação de multas por parte do município.

De acordo com a Lei Complementar 728/2014, que institui o Código Municipal de Limpeza Urbana de Porto Alegre, catadores autônomos não teriam direito de fazer a coleta de materiais de resíduos sólidos em Porto Alegre. Assim, o descumprimento da lei representaria infração gravíssima e resultaria em multa. Segundo a Defensoria Pública do Estado (DPE/RS), alguns recicladores chegaram a ser multados em cerca de R$ 7 mil. 

Um dos trabalhadores que buscou ajuda foi Jorge Fagundes, 53 anos, morador do bairro Humaitá, na Capital. Apesar de não ter sido multado, ele conta que fez questão de se mobilizar para buscar auxílio. A reciclagem é a fonte de renda da família de Jorge há três gerações:

— Eu não entendi o porquê disso (a aplicação das multas). Tinha gente sendo multada por fazer um trabalho que faz bem para a cidade. Achei injusto, foi quando eu e alguns colegas recorremos. De onde um catador terá R$ 7 mil para pagar?

"Invasão"

Morador da Ilha Grande dos Marinheiros, em Porto Alegre, Venâncio Francisco de Castro, 65 anos, foi afetado pela proibição quando o filho foi multado. O idoso conta que trabalha como catador desde sempre. Apenas como morador da Ilha dos Marinheiros, são 35 anos de trabalho. Para ele, a intensificação da aplicação da lei ocorreu de maneira abrupta, sem nenhum tipo de informação.

— Ela começou a ser aplicada invadindo nossos espaços: sem informação, sem diálogo, sem nada. No pior período possível— lamenta o trabalhador.

Como funciona o projeto

Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
Proposta da iniciativa é de que os recicladores não precisem mais fazer a coleta por conta própria

A partir do aumento da procura, a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul passou a acompanhar os trabalhadores na tentativa de solucionar o conflito. De acordo com o defensor público dirigente do Núcleo de Defesa do Consumidor e Tutelas Coletivas da Defensoria (Nudecontu), Rafael Magagnin, a lei aplicada atualmente poderia ser aperfeiçoada:

— A legislação acaba indo de encontro a uma atividade de décadas e que contribui para a limpeza urbana. Essas pessoas têm um processo de destinação dos materiais muito bem desenvolvido, trabalham com isso há anos. Dizer que é contra a lei e aplicar multas acaba desconsiderando anos de aprendizado.

O defensor público explica que, assim que foi identificada a questão municipal, a DPE/RS procurou o poder executivo que, segundo ele, desde o início, se mostrou interessado em resolver a situação. Em abril de 2022, após quase um ano de negociações, a prefeitura de Porto Alegre e a DPE/RS firmaram um termo de compromisso com o objetivo de regularizar a atividade desenvolvida pelos 143 catadores que fazem parte do projeto. 

Segundo o combinado, os integrantes terão uma carteira de identificação. Além disso, a quantidade de materiais coletada será contabilizada e, posteriormente, a prefeitura irá disponibilizar o mesmo volume aos catadores. Assim, a proposta é que os recicladores não precisem mais fazer a coleta por conta própria. 

Amparo de cooperativa

A Cooperativa de Trabalho dos Recicladores e Papeleiros da Ilha Grande dos Marinheiros foi criada em 2012, pelo DMLU. Porém, ficou sem funcionar por um período. Em 2021, quando as multas passaram a ser aplicadas com mais frequência, alguns catadores procuram a entidade, que começou com moradores do local mas que, hoje, tem cooperativados de diferentes bairros da Capital.

— O pessoal tomou multa e acreditou que a cooperativa poderia fazer alguma coisa. Eles se identificaram com a proposta e continuaram — explica Venâncio, que é presidente da entidade.

A carteira de identificação está disponível para catadores autônomos que fazem parte do projeto-piloto. É a partir da utilização dela que o trabalhador será identificado como integrante do grupo e não sofrerá nenhuma consequência por estar trabalhando.

Jorge se emociona ao recordar das etapas até que o acordo fosse firmado. Para ele, é a possibilidade de desempenhar sua missão de vida: 

— Em outra atividade, será que eu estaria ajudando meu próximo como eu ajudo hoje? Eu estaria proporcionando uma saúde melhor para o meu planeta? Acho que não.

Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
Carteira de identificação está disponível para catadores autônomos que fazem parte do projeto-piloto

Apoio no Legislativo

A Câmara de Vereadores de Porto Alegre aprovou, em 24 de agosto, o Projeto de Lei Legislativo (PLL) 452/21, que garante a anistia das multas decorrentes de infrações ao Código Municipal de Limpeza Urbana, aplicadas a catadores de materiais recicláveis. O autor do projeto, Airto Ferronato (PSB), conta que acompanha a questão dos catadores há muitos anos. Dessa maneira, sugeriu o PLL após conversas com representantes da categoria:

— Fiquei sabendo que existia a cobrança de multas de R$ 5 mil, R$ 7 mil e R$ 8 mil. Achei que seria interessante que houvesse uma proposta para anistiar essas multas.

O vereador explica que a anistia vale, justamente, para multas que já foram aplicadas. Assim, o ideal é que agora os catadores encontrem uma maneira de regularizar a atividade para que deixem de ser penalizados.

Atualmente, o DMLU recolhe aproximadamente 1.300 toneladas de resíduos urbanos por dia. Dessa quantidade, 50 toneladas são de materiais recicláveis. Porém, o número está longe de ser o ideal. De acordo com a assessoria de imprensa da pasta, a Capital teria potencial de recolher 300 toneladas de materiais recicláveis por dia. Mas, o que poderia ser reciclado acaba sendo misturado com resíduos orgânicos e destinado ao aterro sanitário.

Professora do Departamento de Engenharia de Produção, da Escola de Engenharia da UFRGS, Istefani Carisio afirma que a prefeitura de Porto Alegre cumpre o objetivo de conscientizar a população quanto a separação de, pelo menos, o resíduo orgânico do seco. Mas, ela acredita que existem pontos que precisam ser melhorados.

— Cada vez mais a gente percebe que existe riqueza no resíduo. Se entregarmos o material mais organizado, não misturado com alimentos orgânicos, nós aumentamos o valor de mercado desses resíduos  — ressalta a professora.

Prefeitura irá construir Unidade de Triagem

Vicente Marques, diretor-geral adjunto do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), afirma que, com a troca da gestão municipal, houve um aumento no monitoramento e no controle de fiscalização. Segundo ele, isso ocorreu "baseado em queixas vindas de unidades de triagens regularizadas":

— Mas, depois do trabalho que resultou no projeto-piloto, tivemos uma redução nesse tipo de autuação, porque estamos dando a oportunidade de regularização de parte de uma cadeia de pessoas que estão na informalidade.  

Na primeira etapa do projeto-piloto, o DMLU fez três centros de monitoramento: na Vila Santo André, na Vila Dique e na entrada da Ilha dos Marinheiros. Com isso, a prefeitura permaneceu durante 15 dias em cada um dos locais para identificar a quantidade de material coletado. 

Para a segunda etapa, o departamento pretende começar recolhendo, onde antes os catadores coletavam, 20% do total de resíduos. O diretor-geral adjunto alerta, no entanto, que o cooperativado precisará entrar na linha de produção que a prefeitura trabalha:

— Se antes eles saíam e faziam essa coleta a qualquer momento, agora haverá um processo de alinhamento, vamos incluir essa nova demanda. Faremos uma programação respeitando a quantidade que foi apurada para cada reciclador. 

A terceira etapa inclui a construção de uma Unidade de Triagem (UT). Vicente explica que existe a ideia de um convênio para a captação desse recurso.

— A iniciativa existe, mas não está definido por qual das secretarias será operacionalizada. Há esse interesse e esse compromisso de chegar em 2024 com essa unidade de triagem _ afirma.

Quanto ao local, o diretor-geral adjunto conta que há uma área próxima da Arena do Grêmio que pode vir a ser escolhida.

Etapas da regularização

/// Etapa 1: contabilização da quantidade e da qualidade dos materiais recolhidos pelos catadores. Período de transição em que o município terá o papel de verificar as características desses materiais. Nesta etapa, catadores do projeto podem recolher com a utilização da carteira de identificação.

/// Etapa 2: o município disponibilizará materiais para os recicladores. A proposta é que o catador não precise mais ir recolher esse material, o que deve diminuir custos de combustíveis, manutenção, etc. Os caminhões da prefeitura farão as distribuições em pontos estabelecidos.

/// Etapa 3: uma unidade de triagem deverá ser construída no bairro Humaitá.







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