Efeito coronavírus
Exames para diagnósticos de câncer têm queda de até 80% durante a pandemia em Porto Alegre
Especialistas alertam para surto de casos oncológicos e crônicos nos próximos meses
Mesmo com oferta, o número de solicitações para exames diagnósticos para rastreio de câncer apresentou queda de até 80% em Porto Alegre durante a pandemia do coronavírus. De acordo com dados da Secretaria Municipal da Saúde (SMS), a quantidade de biópsias de próstata, por exemplo, caiu 80% entre março e maio deste ano na comparação com o mesmo período de 2019. Se analisados apenas os dados entre março e abril deste ano, quando começou o distanciamento social, a queda foi de 47%.
As solicitações de exames de mamografia bilateral, para diagnóstico e rastreamento de câncer de mama, tiveram redução de 71% entre março e maio na comparação com os mesmos meses de 2019. Se observados só os dados do início da pandemia no Rio Grande do Sul, a queda é de 78%. Os cânceres de próstata e mama são os mais prevalentes na capital gaúcha, junto com as neoplasias de pele (não-melanoma) e de pulmão.
De acordo com o Painel Oncologia do Datasus, banco de informações do Sistema Único de Saúde (SUS), de janeiro a 15 de maio deste ano, 238 pessoas foram diagnosticadas e tratadas com neoplasias em Porto Alegre. O número acumulado de 2020 é menor que a média mensal de 2019, que ficou em 295. Os dados ainda não estão consolidados.
Na visão de especialistas, fatores como o receio da população em procurar atendimento médico durante a crise do coronavírus podem provocar, nos próximos meses, um surto de casos de câncer avançados e doenças crônicas. Em entrevista recente, o ex-ministro da Saúde Nelson Teich alertou para o represamento de diagnósticos de câncer e os efeitos que isso poderá gerar no sistema de saúde brasileiro.
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Conforme Rafael Vargas, oncologista e epidemiologista da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e professor do curso de Medicina da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), os dados ainda não estão consolidados, mas já demonstram essa "sensação" percebida pelos profissionais de saúde.
— Devemos ter uma ideia melhor daqui uns dois meses. Mas o quadro é preocupante. Corremos o risco de um surto epidêmico de agudização das doenças crônicas logo ali na frente. Podemos ter mais pessoas enfartando, sofrendo acidente vascular cerebral (AVC) e diagnósticos de câncer mais avançados. Tudo isso dentro de uma pandemia — avalia, ao destacar que países que estão em outra fase da epidemia já estão enfrentando essa situação agora.
Para Vargas, que também faz parte do Grupo OncoClínicas, com a redução na procura por consultas e exames, pacientes com sintomas de câncer e sem diagnóstico podem acabar procurando emergências em situações não ideais, podendo impactar nas chances de cura, além de sobrecarregar leitos de unidade de terapia intensiva (UTI).
— O que precisa ser feito, agora, é um esclarecimento da população de que as doenças crônicas não podem ser deixadas de lado. Pessoas com doenças pré-existentes ou que estão com suspeita de neoplasias precisam continuar suas consultas, com cuidados redobrados pela pandemia, mas seguir o tratamento. Precisamos de um plano de como vamos dar atenção a essas pessoas durante a pandemia da covid-19 — destaca.
Para a médica Maira Caleffi, líder do Comitê Executivo do projeto City Cancer Challenge (C/Can) Porto Alegre, presidente voluntária da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (Femama) e chefe do setor de Mastologia do Hospital Moinhos de Vento, a pandemia está sendo um desafio também para quem não trabalha diretamente com pacientes infectados:
— Na área do câncer, as pessoas estão com dúvidas. Não sabe se é seguro ir ao hospital ou até seus médicos. E quem está para fazer o diagnóstico tem muita dificuldade de marcar os seus exames.
Segundo Maira, o C/Can está trabalhando para auxiliar a SMS a tentar reverter essa dificuldade de acesso dos pacientes aos exames de imagens, biópsias e início de tratamento.
— Recomendamos que as pessoas não fiquem afastadas dos seus médicos por mais de três meses, que procurem atendimento para que não enfrentemos um surto de casos avançados mais tarde — reitera.
Conforme a SMS, a procura por atendimento nas unidades básicas de saúde da Capital caiu 45% no mês de abril. Desde o início da pandemia até maio, a queda foi de 35% em média. O posto de saúde é considerado, pelo SUS, a porta de entrada para o diagnóstico de cânceres. De acordo com a coordenadora do Plano de Atividades C/Can Porto Alegre e médica reguladora da SMS, Rafaela Komorowski Dal Molin, há um receio de parte dos pacientes em se dirigirem às unidades de saúde.
— Inicialmente, o próprio Instituto Nacional do Câncer recomendou que as ações clínicas de rastreamento de câncer (pacientes sem sintomas) fossem momentaneamente suspensas. Essas recomendações têm sido revistas e a tendência é que o atendimento retorne à normalidade, até porque há mais informação agora dirigida aos próprios pacientes — avalia.
Apoio da telemedicina nos postos de saúde
Para driblar as dificuldades impostas pela pandemia, a prefeitura de Porto Alegre distribuiu câmeras nas unidades de saúde para que sejam realizadas consultas a distância. Conforme a diretora-adjunta da Atenção Primária à Saúde da SMS, Diane Nascimento, o público que mais frequenta os postos são os idosos que, justamente, são orientados a ficar em casa.
— Isso acende um alerta, porque a gente sabe que as pessoas seguem tendo suas doenças normais e isso faz com seja preciso procurar outras alternativas. Nesse sentido, as unidades estão sendo incentivadas a monitorar os pacientes, ligar para ver se tem remédio, se tem medido a pressão, para fazer o monitoramento da saúde dessas pessoas — afirma.
De acordo com Rafaela Komorowski Dal Molin, a SMS está em tratativas para finalizar uma parceria com a iniciativa privada para a obtenção de 300 smartphones com recursos de vídeo e áudio que possibilitem atendimento clínico a distância aos pacientes da rede básica de saúde.
— Também estamos, em parceria com a Secretaria Estadual da Saúde e o C/Can, discutindo medidas para agilizar a porta de entrada de pacientes oncológicos ou com suspeita de câncer no sistema de saúde, a fim de reduzir tempo de diagnóstico e início de tratamento. Essa discussão envolve município e Estado porque a Capital é referência para diversos tipos de câncer — explica.
Com câncer de mama e sem tratamento
A desempregada Marivane Silva Correa, 42 anos, foi diagnosticada com câncer de mama no dia 15 de março. Desde lá, aguarda o início do tratamento pelo SUS. Moradora de Triunfo, ela afirma que o diagnóstico foi rápido:
— Comecei os exames em fevereiro e, em março, já tinha o resultado da biópsia. Não tenho do que me queixar do posto de saúde. O problema agora é o encaminhamento para o hospital. Há dois meses aguardo o início do tratamento.
Conforme lei federal, o paciente oncológico tem direito ao início do tratamento pelo SUS em até 60 dias. O que, no caso de Marivane, não foi cumprido.
Segundo ela, o pior é a angústia somada às dores:
_ Não sei se é psicológico ou não, mas sinto muitas dores no corpo e tenho medo de que o câncer esteja se espalhando.
Sem prazo e expectativa, Marivane conta com o apoio do Instituto da Mama do Rio Grande do Sul (Imama), uma organização sem fins lucrativos que auxilia mulheres no enfrentamento ao câncer. Na pandemia, a instituição também está sofrendo com a redução no número de doações. Por conta disso, lançou uma campanha para que a sociedade gaúcha continue contribuindo para que a entidade consiga seguir com seu trabalho de dar força a mulheres.
Em nota, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) informou que "em função da pandemia do coronavírus e por este ser um momento atípico, alguns prestadores precisaram fazer readequações no atendimento. A consulta da paciente está agendada para o dia 5 de junho".
"Todo nosso esforço para garantir leitos na pandemia pode desmoronar", afirma oncologista
O oncologista do Grupo OncoClínicas Stephen Stefani destaca que o represamento de diagnósticos de câncer por conta da pandemia é uma preocupação global. Para o médico, dois fatores foram determinantes para essa redução: pessoas com medo de sair de casa e agendas de procedimentos deslocadas.
— O paciente tem procurado menos seus médicos, não conseguindo calibrar o quanto que a sua saúde é protegida com o isolamento quando deixa de cuidar de outras doenças. O que mais assusta é o atraso no diagnóstico. Mas eles serão diagnosticados, o problema é que vão apresentar a doença mais adiante — diz.
Stefani defende uma política de Estado para orientar a população durante a pandemia. Isso porque, segundo ele, muitos estão perdendo seus empregos e, com isso, seus planos de saúde:
— O efeito é ainda mais complexo. O que se enxerga, no futuro prévio, é que vamos pagar um preço por isso que está sendo feito agora. Vamos pressionar o sistema e todo nosso esforço para garantir leitos para pacientes com a covid-19 pode desmoronar — alerta.
Para o especialista, o recado que precisa ser dado é que a população não pode negligenciar a saúde em nenhum momento:
— As outras doenças continuam existindo. Temos que dar o recado: as pessoas não podem deixar de se preocupar com a saúde e procurar atendimento, principalmente pacientes com doenças crônicas ou suspeitas de câncer.