Pandemia
Auditoria do TCE aponta indícios de irregularidades na contratação de hospital de campanha de Cachoeirinha
Auditores pedem medida cautelar que impeça novos pagamentos à empresa Instituto Salva Saúde, responsável pela montagem da estrutura. Prefeitura abriu sindicância interna
Relatório de auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE), cujo teor está público para consulta, lista em 31 páginas as possíveis irregularidades na contratação feita pela prefeitura de Cachoeirinha para que o Instituto Salva Saúde, do Espírito Santo, fizesse a montagem de um hospital de campanha no ginásio municipal da cidade. Entre os principais apontamentos, está a suposta ilegalidade na decisão do município de fazer o pagamento antecipado do valor de R$ 696 mil para a montagem da estrutura e o funcionamento do hospital de campanha por três meses.
O repasse da prefeitura ao Instituto Salva Saúde ocorreu em 7 de abril, mas a inauguração da estrutura ocorreu somente no dia 27 do mesmo mês. Os auditores registraram que, por lei, o pagamento deve ser feito após a comprovação de entrega de material ou da efetiva prestação do serviço. Para os auditores, a prefeitura de Cachoeirinha também não cumpriu os requisitos da Medida Provisória 961/2020, do governo federal, que autoriza quitações prévias durante o estado de calamidade pública da pandemia de coronavírus.
“O pagamento antecipado somente poderia ocorrer quando previsto no instrumento convocatório, estivesse condicionado à prestação de garantias, e representasse a única alternativa para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço desejado, ou ainda quando a antecipação propiciar sensível economia de recursos”, diz trecho da auditoria.
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O relatório sustenta que nenhum dos requisitos foi cumprido. Um dos argumentos é que o município, no processo de contratação com dispensa de licitação, não fez pesquisa de preço e tampouco consultou outras empresas prestadoras de serviço.
“Não há, nos autos, qualquer documento que demonstre a tentativa da administração municipal de buscar o fornecimento do objeto em questão por parte de outras empresas, o que poderia vir a demonstrar que a contratação da empresa Instituto Salva Saúde era, realmente, indispensável para assegurar a execução do objeto. Aliás, o que se verifica é a reprodução literal do orçamento apresentado por tal empresa dentro do memorial descritivo (documento da prefeitura para definir detalhes e critérios da contratação)”, diz o relatório.
Ainda é destacado que o orçamento do Instituto Salva Saúde, com data de 27 de março de 2020, é anterior ao memorial descritivo da prefeitura, documento que embasou a contratação e que tem data de 1ª de abril.
“Resta evidente, inclusive pelas datas dos documentos, que os parâmetros da contratação partiram da empresa Salva Saúde, e não das necessidades reais do município. Não há elementos nos autos que demonstrem que a antecipação do pagamento propiciou significativa economia de recursos”, complementa a análise dos auditores.
A prefeitura de Cachoeirinha afirmou, em nota, que “quanto ao valor pago de forma antecipada, é importante destacar que os bens foram entregues e constituem o hospital de campanha, que está com seus leitos na regulação estadual. Reiteramos que não houve lesão ao erário, que as providências administrativas foram tomadas e que todas as informações constam nos documentos enviados ao Tribunal de Contas (veja contraponto na íntegra ao final da reportagem).”
O relatório ainda aponta que a nota fiscal emitida pelo Salva Saúde descreve um objeto diferente do contratado pela prefeitura de Cachoeirinha. Em vez de citar a montagem de hospital de campanha, a especificação foi “assessoria ou consultoria de qualquer natureza, não contida em outros itens desta lista; análise, exame, pesquisa, coleta, compilação e fornecimento de dados e informações”. Isso teria ocorrido, diz o relatório, porque “a prestação de serviço de locação” de estruturas, como as do hospital de campanha, “não figura entre as atividades econômicas reconhecidas para a empresa” junto à Receita Federal.
O setor de auditoria do TCE, com base no relatório, conclui que a contratação está “eivada de irregularidades”. Por isso, requer medida cautelar para impedir a prefeitura de realizar novos pagamentos ao Instituto Salva Saúde pelo hospital de campanha, já que um processo de renovação do contrato por mais três meses, a partir de 27 de julho, estava em andamento. O caso está em análise no gabinete da conselheira-substituta Ana Cristina Warpechowski, do TCE, que decidirá entre conceder ou não a medida cautelar.
A prefeitura de Cachoeirinha, por determinação do prefeito Miki Breier (PSB), abriu sindicância para apurar as eventuais irregularidades. Nesta semana, o secretário da Saúde, Dyego Matielo, pediu para deixar o cargo, o que foi aceito pelo prefeito. O superintendente de Compras e Licitação do município, André Balsemão, foi afastado. Breier afirma que não houve nenhum dano ao erário, admitindo que, no máximo, ocorreram "erros formais".
Contratação de médicos
Em outro procedimento relacionado à área da saúde de Cachoeirinha, a conselheira-substituta Ana Cristina Warpechowski concedeu, no dia 3 de julho, medida cautelar requerida pelo setor de auditorias. Conforme a decisão, a prefeitura ficou impedida de renovar, nos atuais termos, o contrato para aquisição de serviços de médicos na Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) Francisco Medeiros. O motivo da decisão foi o apontamento de possível sobrepreço entre R$ 1,3 milhão e R$ 1,6 milhão na contratação. A empresa prestadora de serviço, neste caso, é a XP3 Fund Gestão e Investimentos em Saúde Eireli, também do Espírito Santo. Tanto a XP3 quanto o Instituto Salva Saúde, responsável pela montagem do hospital de campanha, tem como procurador e presidente o empresário Jan Christoph Lima da Silva.
Instituto teve passagem problemática em Santana do Livramento
O mesmo Instituto Salva Saúde, fornecedor das estruturas sob suspeita no hospital de campanha de Cachoeirinha, teve uma passagem atribulada por Santana do Livramento, cidade gaúcha na fronteira com o Uruguai.
A empresa foi declarada gestora da Santa Casa de Misericórdia de Santana do Livramento com dispensa de licitação em maio de 2019, sendo o termo de gestão assinado pela prefeitura e pelo presidente do Instituto Salva Saúde, Jan Christoph Lima da Silva. Em 6 de janeiro de 2020, a vice-prefeita Mari Machado, que estava no comando da prefeitura devido ao afastamento judicial temporário do prefeito, decidiu remover o Instituto Salva Saúde da gestão do hospital.
A iniciativa foi motivada por supostas ausências e falhas nas prestações de contas sobre os recursos públicos recebidos e o atraso no pagamento do 13º salário a funcionários do hospital. Pela passagem na fronteira gaúcha, o Instituto Salva Saúde responde a processos judiciais. A empresa e o seu presidente, Lima da Silva, tiveram ativos bloqueados em decisão de maio da 2ª Vara Cível de Santana do Livramento.
“Sobre o bloqueio de contas e bens, é um assunto que está sendo cuidado pelos advogados e foi uma decisão de cunho pessoal, esquecendo preceitos éticos e legais, inclusive utilizando provas falsas protocoladas pelo demandante, com base em um balanço contábil que sequer estava pronto. Um completo absurdo”, defendeu-se, em nota, Lima da Silva.
Ele valorizou a gestão do instituto na Santa Casa.
“Colocamos em dia seis meses de salários atrasados, um ano de vale alimentação e quatro meses de vales transporte. Repactuamos todas as dívidas, fizemos mais de 40 acordos trabalhistas e assumimos mais de 20 acordos antigos. Deixamos a gestão com os salários em dia e programamos o pagamento do 13º após 12 anos que não se pagava. Isso tudo foi feito em seis meses”, diz Lima da Silva.
CONTRAPONTOS
O que diz a prefeitura de Cachoeirinha sobre os apontamentos de supostas irregularidades no hospital de campanha:
“A Procuradoria-Geral do Município informa que o contrato, conforme orientação do Tribunal de Contas do Estado, já foi formalizado e, assim, já está superada a questão, inclusive da nota e dos objetos da contratação. Quanto ao valor pago de forma antecipada, é importante destacar que os bens foram entregues e constituem o Hospital de Campanha, que está com seus leitos na regulação estadual. Reitera que não houve lesão ao erário, que as providências administrativas foram tomadas e que todas as informações constam nos documentos enviados ao Tribunal de Contas.”
O que diz Jan Christoph Lima da Silva sobre os apontamentos de supostas irregularidades no hospital de campanha de Cachoeirinha:
“O serviço do instituto foi concluído antes do empenho, e a inauguração só foi posterior por conta de outros serviços que a prefeitura contratou com outras empresas. O TCE está absolutamente equivocado, pois confunde data de execução do serviço com data de inauguração. A atividade principal do instituto é apoio à gestão de saúde. Montar um hospital de campanha é justamente isso. A descrição da nota fiscal pode ter sido feita com algum CNAE (Código Nacional de Atividade Econômica) secundário, pode ser corrigida a qualquer tempo, e não modifica o objeto contratado nem o serviço prestado”.