Histórias de resistência
Casas da década de 1950 enfrentam ação do tempo e mudanças do setor imobiliário em Xangri-Lá
Construída em 1953, primeira residência do município, batizada de Pioneira, completa 70 anos em setembro
Há 70 anos, o empresário de Caxias do Sul Oscar Boz decidiu comprar um terreno para construir uma casa em uma praia que ainda estava em formação no Litoral Norte. Não havia vizinhos, nem qualquer estrutura preparada para receber veranistas. Tudo ainda era um projeto.
A tal nova praia, que hoje é o município de Xangri-Lá, tinha outro nome em 1953: Capão Alto. Foi ali, entre as esquinas das ruas Jacuí e Rio Forqueta, que surgiu a casa pintada de laranja que segue resistindo ao tempo, ficando conhecida como Pioneira.
Crescendo junto com o chalé — e com o balneário —, Maria Elena Boz Nora, 71 anos, passou a colecionar as memórias do pai, das férias em família e da construção. Veraneando até hoje no imóvel com o marido Vitor e a cachorrinha Linda, a aposentada senta na varanda e já começa a contar que as madeiras da casa vieram da Serra gaúcha e que os funcionários precisavam dormir em Capão da Canoa para fazer o serviço. Finalizada em setembro de 1953, a casa Pioneira passou a ter a companhia de outras quatro ou cinco no primeiro veraneio.
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— Prometeram calçamento, iluminação, água, tudo. Um trator ligava um gerador de luz só para eles. Eu lembro que a gente saía e colocava num caderninho quantas casas tinham sido construídas a cada ano. Fomos até 200, daí perdemos a conta — lembra a filha do primeiro proprietário.
A inspiração para a estética do chalé foi uma foto que seu Oscar guardou para levar ao carpinteiro responsável pela obra. De acordo com Maria Elena, a ideia era fazer algo que lembrasse as casas de jardim americanas, e a cor laranja teria sido ideia da mãe, para ficar parecido com o tom de tijolo.
Já o gramado da casa tem também uma história curiosa, que envolve o atual prefeito de Xangri-lá, Celso Barbosa. Celsinho, como é conhecido, revela que já trabalhou para seu Oscar, na Pioneira.
— Cada vez que eu ia cortar a grama eu ficava muito bravo, porque na frente tinha uma árvore chamada seringueira, que é muito grande e tinha uma folha enorme. Então tinha que juntar todas as folhas da árvore pra depois cortar a grama. Mas a gente tinha orgulho disso, e tem até hoje — comenta.
Celsinho conta que o pai trabalhava no ramo da construção civil e foi contratado pelo proprietário da casa. Junto com os filhos, ele ficava com a chave da Pioneira e fazia a manutenção e a limpeza durante o ano para deixar tudo preparado para o veraneio.
— É parte da história da minha família. Eu tenho até a vontade de colocar ela como patrimônio histórico do município, porque tudo se iniciou ali — confessa o prefeito.
No interior do chalé, as paredes ainda são verdes, mas em tonalidade mais clara do que a original. Com o avanço do tempo, as janelas deixaram de abrir, então, Maria Elena decidiu suavizar a pintura e usar mais luzes acesas, mesmo durante o dia. Os detalhes ondulados em madeira nas paredes e o lustre ainda são originais. Já os móveis tiveram que ir mudando, por culpa dos cupins que destruíram as cadeiras e o sofá com assentos de palha.
— Como não tinha padaria, tinha que fazer pão em casa. E o leite, a Corlac fazia uma entrega para Capão da Canoa e passava aqui com o caminhãozinho, aí, a gente deixava uma panelinha, com o dinheiro embaixo todos os dias para ter leite fresco. E a Zero Hora vinha de avião, aí eles jogavam o pacote e a gente corria lá para o hotel para buscar o jornal — conta Maria Helena.
O hotel que a idosa cita é o Termas Xangri-lá, construído em 1955 e demolido em 2006. O estabelecimento foi um marco para o avanço do balneário, que se emancipou de Capão da Canoa em 1992. O futuro do terreno poderá ser definido se forem aprovadas mudanças no Plano Diretor, que está em fase de audiências públicas. Para a área da Casa Pioneira, não há previsão alterações, conforme a prefeitura.
Resistindo ao tempo e às mudanças da cidade
Com o crescimento do setor imobiliário, virou comum para a família Boz ser procurada por interessados em adquirir o terreno de esquina.
— Meu Deus! É todo o ano. Eu estou aqui desde 15 de dezembro e acho que já ligaram umas quatro vezes. Eles querem saber o valor. Aí a gente já aprendeu que não adianta dizer que não, então a gente diz que R$ 2 milhões serve — brinca Maria Elena.
A veranista admite que resistir à modernização e à verticalização do Litoral não é fácil, ainda mais com a casa precisando anualmente de reparos pela idade. Ao longo dos anos, a base de madeira já teve que ser substituída por tijolos, e o piso, que era feito em tábuas, passou a ser concretado.
— A gente está vendo que ela está muito sofrida. Para levantar, a gente precisaria de muita grana, mas enquanto ela está em pé, ela fica! —garante Maria Elena.
Outro desafio é a segurança. Exceção em meio a várias cercas no bairro, a Pioneira resiste com o quintal de grama aberto para não trair o projeto original. O preço, porém, é alto. Tendo sido alvo de furtos todos os anos, a família decidiu retirar os objetos de valor, como a televisão e o micro-ondas, e trazê-los novamente nos verões. Até a antiga placa com o nome Pioneira, que ficava na frente, não durava um ano inteiro e era levada embora.
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Mesmo com os furtos, Oscar Boz não desistia: fazia e colocava novamente a placa. O fundador e diretor da lendária Malharia Americana, na Serra, e cineasta amador aproveitou sua casa de verão até 2019, quando faleceu, aos 99 anos.
—Ele tinha um orgulho dessa casa. Passava e dizia “mas ela ainda é bonita!” — enfatiza Maria Elena, nostálgica, sentada em uma das cadeiras antigas da sala.
A casa "velha"
Para dar uma referência a alguém que vai fazer uma visita em Xangri-lá, o aposentado Ari Almeida Martins, 77 anos, diz “é ali na casa velha”. Localizada na mesma região da casa Pioneira, a fachada de madeira demonstra que o imóvel já viveu muitas histórias na Rua Rio das Contas — aliás, todas as vias da região têm nomes de rios.
Seu Ari testemunhou a construção da residência em 1955, quando o pai dele, que atuava na construção civil, acampou no terreno com os funcionários para realizar a obra.
— Eu tinha uns oito anos. Ficava acompanhando tudo e aprendendo — comenta o veranista, que, mais tarde, seguiu os passos paternos e entrou para o mesmo ramo.
A casa ainda tem móveis antigos, como sofás e poltronas com estampas florais. Somente a parte dos fundos é que não é mais de madeira, passando a ser sustentada por paredes de tijolos. Tudo ali acompanhou a família, passando dos pais de Ari para as gerações seguintes.
— Quando a gente casou, viemos passar a lua de mel aqui. Faz 56 anos. Não tinha nem supermercado em volta, e ele (Ari) foi buscar carne para nós naquela estrada que hoje é a Estrada do Mar — relata Vera Maria Medeiros Martins, 72, esposa de Ari.
A dona de casa se diverte contando que os amigos dos cinco filhos faziam a maior bagunça durante o veraneio. Com festas de madrugada e jogos de carta até o amanhecer, o casal se acostumou a ter movimento pelos cômodos.
— Quando chegava o Carnaval, a gente dizia que saía caravana aqui de casa. As gurias iam pro quarto e se maquiavam. E os guris iam com aqueles isopores cheios de cerveja para frente da Saba (Sociedade dos Amigos do Balneário Atlântida). Vinham os filhos, amigos, primos... só os jovens, porque os velhos ficavam em casa — conta ela, entre risadas.
Verinha, como é chamada, lembra que logo nos primeiros anos da casa ainda era possível enxergar o mar e ouvir o barulho das ondas, mesmo ficando a cerca de oito quadras na beira da praia. Ela também recorda que era do tempo dos biquínis de crochê, das cabines telefônicas e da fila para fazer ligação no orelhão da cidade.
Entre as histórias mais engraçadas da casa, descreve uma bastante inusitada, ainda da década de 1950.
—Minha sogra contava que ficava com os filhos e, uma vez de noite, eles ouviram um barulho nas paredes pelo lado de fora e ficaram assustados. Depois, descobriram que era uma vaca se roçando! — narra Vera.
Perguntados sobre o futuro da casa, o casal se divide nas opiniões. Enquanto a esposa está mais inclinada a vender o imóvel, pelo custo elevado para fazer uma reforma, o marido ainda está balançado.
— Eu quero ficar, mas essa moça aqui, não. A gente se criou aqui, mas não tem mais os amigos, porque tudo muda. Não temos decisão ainda — confessa, mas também brinca — Por que, está interessada? — e dá risada.