Tradicionalismo
VÍDEO: Os bastidores da preparação para o Enart em dois CTGs multicampeões
Competidores que detêm títulos recentes na principal categoria do evento ensaiam durante meses para o festival tradicionalista, que ocorre no final deste mês, em Santa Cruz do Sul
Riscos de giz marcam o tablado do Centro de Tradições Gaúchas (CTG) Rancho da Saudade, de Cachoeirinha. O tamanho da área desenhada corresponde ao tablado do Ginásio Poliesportivo do Parque da Oktoberfest, em Santa Cruz do Sul, onde ocorrem as apresentações da modalidade Danças Tradicionais Força A.
Detalhes, como este, são pensados para os ensaios de uma apresentação impecável. O cansaço de horas de treino não parece abalar peões e prendas, que dançam com sorrisos no rosto, depois de um dia de trabalho e de estudos. E, no dia seguinte, tudo de novo.
Em menos de duas semanas, entre os dias 24 e 26 de novembro, ocorre a maior competição de cultura tradicionalista rio-grandense, a 36ª edição do Encontro de Artes e Tradição Gaúcha (Enart), em Santa Cruz do Sul. A última edição, em 2022, reuniu 34 mil pessoas, conforme o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), organizador do evento. Para esta edição, é esperado que o número ultrapasse a marca do ano passado.
Cerca de 4,6 mil participantes estarão concorrendo em mais de 20 modalidades — sendo individuais ou coletivas, como danças tradicionais, dança de salão, canto, declamação, trova e chula — em 10 palcos. A mais disputada modalidade na categoria de adultos é a Danças Tradicionais e, assim como no Rancho da Saudade, vencedor da categoria em 2022, as preparações estão intensas nos CTGs espalhados pelo Estado.
Sete vezes campeões da disputa
A invernada artística adulta do Rancho, chamada de Os Provincianos, foi campeã pela sétima vez. As outras conquistas foram em 2004, 2007, 2011, 2012, 2014 e 2018. A trajetória vitoriosa é fruto de um trabalho árduo e que dá orgulho ao grupo. Os treinos ocorrem ao longo do ano. Nos últimos dois meses, seis vezes por semana, com folga apenas na quarta-feira.
Neste ano, o Rancho da Saudade, além das danças previstas, faz uma apresentação na abertura do Enart por ter sido o mais recente campeão.
— Esse show de abertura será uma volta ao tempo da história do Rancho. Desde 2004, quando ganhamos o primeiro título, até 2022. Nesse período, muitas edições perdemos. Passamos por momentos doloridos e outros de reconhecimento do trabalho de outros vencedores. Será um musical, com canto e dança, em 25 minutos — conta Patrícia Fonseca, 42 anos, secretária executiva e coordenadora da invernada adulta.
A abertura contará com cerca de cem pessoas do CTG, com integrantes da mirim à xirú. Mas, para não acabar com a surpresa, Patrícia mantém um certo sigilo sobre o que esperar, principalmente, sobre detalhes das danças de entrada e saída. O tema da coreografia que tem por objetivo mostrar os segredos da heroína da Revolução Farroupilha, Anita Garibaldi.
— O tema é contado pelos trajes e danças que iremos apresentar. Esse ano, vamos levar mais acessórios do que no ano passado. A nossa música foi feita pelo cantor Pirisca Grecco, que conhece toda parte histórica e, baseado nela, foi criada a letra. Quem toca são os nossos músicos — explica.
O ritmo intenso dos ensaios
Para entender a ansiedade e a apreensão de competidores na véspera, a reportagem acompanhou ensaios em dois CTGs — o campeão e o vice de 2022. Durante a semana, o grupo do Rancho da Saudade se encontra por volta de meia-noite e segue até as 2h, após todos estudarem e trabalharem. Sábado e domingos, os ensaios duram quase o dia inteiro. O sacrifício nesse período do ano é justificado pelo amor à tradição.
— É muito cansativo, mas é uma rotina que a gente acostuma. A partir de setembro, é mais puxado. Vivo à base de energético e café — conta Paula Leite, 24 anos, que dança desde oito.
Além do CTG, ela tem mais três jornadas: trabalho, estágio e faculdade de Psicologia.
— Estamos aqui porque a gente ama, só assim para aguentar tudo. Amor, vontade, prazer e amigos, pois acabamos virando uma família — diz Paula, dupla de Davi Ferreira, 24, que também dança desde pequeno.
— Viramos visitantes em casa. Faz dias que não vejo minha mãe. Não medimos esforços para estar aqui, até porque neste ano a expectativa está muito alta — afirma o estudante de Ciências Contábeis, que já trabalha na área.
Tanto para quem carrega apenas o último título quanto para quem viveu as sete vitórias é reforçada a importância de olhar para o passado — o que será apresentado na abertura.
— É muito orgulho de tudo que construímos. A constância de resultados é muito difícil de manter. Não é sorte, é nível técnico e dedicação para alcançar uma qualidade — explica Tiago Silva, conhecido como Boca, 36 anos, que está há mais de 20 anos dançando.
Ao menos 19 coreografias ensaiadas
Cada grupo competidor deve levar para o Enart ao menos 19 coreografias ensaiadas. As danças de entrada e saída são de livre escolha, e a organização sorteia, na hora, três danças que o grupo terá de desempenhar diante dos avaliadores. São observados correção coreográfica, indumentária, harmonia de conjunto, entrada e saída, interpretação artística e grupo musical.
— A dedicação é muito maior agora, a doação é 100%. É o momento que eles têm para fazer tudo que precisamos fazer no Enart. Por mais que exista cansaço físico e psicológico, quando vem para cá, começa a dançar, desliga de tudo externo — conta Vitor Paim, 41 anos, analista de sistemas e ensaiador da invernada adulta.
Na noite do ensaio, prendas e peões dançavam o tatu com volta no meio, uma das danças que pode ser sorteada. Na coreografia, os pares começam separados. Enquanto as mulheres sarandeiam em volta do peão, eles sapateiam acompanhando. Após, a mão da prenda é segurada pelo parceiro e ela gira como se fosse fazer várias voltas, mas para a volta no meio do verso, passando a girar no sentido contrário.
Os olhos de Paim acompanham com atenção todas as duplas durante o ensaio. Ele para algumas vezes no centro do tablado ou no palco para não deixar passar qualquer desalinhamento. A madrugada adentra e não há muitos intervalos, exceto paradas para um ajuste entre os dançarinos ou para tomar uma água.
Quando a música para e a pausa é liberada, peões aproveitam para endireitar os sapateios, enquanto prendas aproveitam para alongar ou dar aquela checada no celular. Menos de cinco minutos depois, a música recomeça.
— Levanta a mão quem está com problema — diz Paim. — Ninguém? Então, vamos de novo.
Tiarayú apresenta homenagem ao pajador
Com uma sequência de sete edições entre os dois primeiros colocados — campeão (2014 e 2019) e vice —, o CTG Tiarayú, localizado no bairro Jardim Itu, em Porto Alegre, também mantém ritmo intenso de ensaios. Às vésperas do Enart, os treinos ocorrem todos os dias, com uma folga na semana.
— Esse ano o Enart tem uma peculiaridade: ele foi adiado um pouco para não dar conflito com as provas do Enem. Temos mais umas semanas de preparação. A expectativa está lá em cima — conta Wagner Oliveira, 32 anos, instrutor de dança e ensaiador da invernada adulta.
No ensaio acompanhado pela reportagem, Ronaldo Estevo, 46 anos, instrutor e responsável técnico, repassa as técnicas, alertando sobre os passos entre os pares e o tempo para retomar movimentos. A coreografia é marcada por sapateados dos peões no piso de madeira e muita movimentação das prendas enquanto manuseiam os vestidos.
— Temos uma cobrança grande entre os dançarinos e eles sabem o comprometimento que precisam ter com a entrega no Enart. É muito ensaio, muitas repetições e muito estudo em cada dança tradicional. São dedicados e conseguem corresponder bem a carga horária e ao desempenho — explica Ronaldo.
Quem sente a energia do grupo e faz observações é o músico Alexandre Brunetto, do grupo SantaFé. Enquanto canta o tema, ele acompanha a movimentação dos dançarinos.
— Temos que nos entregar. Para emocionar as pessoas precisamos nos emocionar, sentir a saudade que é descrita na letra — incentiva Brunetto.
A ligação de Jayme Caetano Braum com o CTG
Como já foi divulgado nas redes sociais da entidade, a invernada adulta apresentará no tablado do festival uma homenagem ao poeta Jayme Caetano Braun. A ideia do tema partiu do centenário do pajador, que será celebrado no dia 30 de janeiro do ano que vem. Além disso, uma das integrantes da invernada é sobrinha-neta do poeta.
— Essa proposta de falar do tio Jayme já vem sendo amadurecida há muito tempo pelo CTG. Aproveitando que o ano que vem é o centenário, vamos fazer essa homenagem. Assim, essa proposta estará pronta para ser apresentada depois. Finalmente tiramos do papel essa ideia e, como familiar dele, estou muito feliz — explica Cristiane Braun, 37 anos.
Ensaiadora e bailarina no grupo, Cris chegou a conviver com o tio até a adolescência. No ensaio, o "tio Jayme" deixa de ser só dela.
— Quando criança não temos dimensão, mas hoje consigo enxergar o quanto ele foi uma figura forte e importante no nativismo. E, para mim, unir a família de sangue com a família que adotamos, que é o CTG, e ver o pessoal se sentindo sobrinho é muito emocionante — diz Cris, que dança há mais de 30 anos.
Os ensaiadores do Tiarayú adiantam que a apresentação contará com um acessório que será levado para o tablado. Mas o foco será os movimentos. Os declamadores Pedro Júnior, Liliana Cardoso e Adriana Braun, mãe de Cris, farão uma participação. Mais detalhes serão revelados na pré-estreia, que ocorre neste final de semana na sede da entidade (detalhes no serviço).
— O tema trata de saudade e de família. Vai emocionar o público — afirma Cris.
Amor que fala mais alto
Comprometidos com os ensaios, os dançarinos Francine Latroni e Rogério Bertoni, ambos com 30 anos, retornaram para competir em mais um Enart, mesmo depois de decidirem que o ano passado seria o último.
— Pensamos em encerrar um ciclo, queríamos um tempo para curtir outras coisas da vida. Passou um tempo, férias de verão, e estávamos em casa quando decidimos ir assistir a um ensaio. Quando percebemos, estávamos vindo no CTG com muita frequência. É uma cachaça, é viciante. Os ensaiadores falaram com a gente e nos chamaram para voltar para compor o grupo — explica Francine.
O casal, que se conheceu CTG, viaja da zona sul ao norte da Capital, para todos os ensaios.
— O amor ao CTG falou mais alto — complementa Rogério.
Pré-estreias nos CTGs
As duas entidades organizam eventos de pré-estreia. Para quem não consegue se deslocar até Santa Cruz do Sul, a pré-estreia é uma oportunidade para conferir o que as invernadas adultas vão apresentar no festival. O momento é esperado, principalmente, por familiares e a comunidade que integra os CTGs, já que os ensaios, normalmente, são fechados.
CTG Rancho da saudade — Cachoeirinha
- Data: 18 de novembro, às 20h
- Ingressos: R$ 40 com o jantar
- Endereço: Avenida Frederico Augusto Ritter, 2.626, bairro Distrito Industrial
- Mais informações: pelo telefone (51) 99124-0091 e no Instagram @ctgranchodasaudade
CTG Tiarayú — Porto Alegre
- Data: sábado (11), às 20h, e domingo (12), às 19h
- Ingressos: esgotados para sábado e R$ 25 para o domingo (não haverá jantar)
- Endereço: Rua Abílio Miler, 251, bairro Jardim Itu
- Mais informações: pelo Instagram @ctgtiarayuadulta
Saiba mais sobre o Enart
36ª edição do Encontro de Artes e Tradição Gaúcha (Enart)
- Onde? Parque da Oktoberfest, em Santa Cruz do Sul
- Quando? Entre sexta-feira, a partir das 17h, e domingo até 19h.
- Ingresso: R$ 30 por dia ou R$ 60 para entrada livre de sexta a domingo no primeiro lote (até dia 15). Há meia-entrada para estudantes, idosos e para quem doar um brinquedo (modalidade ingresso solidário). No segundo lote, R$ 40 por dia ou R$ 70 entrada livre.
- Estacionamento: R$ 70 para automóvel, R$ 150 para ônibus e R$ 20 para motocicleta (valor inclui seguro)