Solidariedade na boleia
Conheça a caminhoneira gaúcha que ajuda famílias e amigos a se reencontrarem pelo Brasil
Cleusa Ximendes é quase uma Mamãe Noel, mas em vez de um trenó puxado por renas, pilota um caminhão rodotrem de 30 metros e espalha solidariedade pelas rodovias onde passa
Ela é quase que uma Mamãe Noel, mas em vez de um trenó puxado por renas, pilota um caminhão rodotrem de 30 metros. O veículo não passa despercebido pela personalização em rosa. Pela janela, ela joga sacolas com itens básicos para quem está andando nos acostamentos das estradas do Brasil. Por vezes, o presente é mais do que um auxílio em forma de alimentos e roupas, ela oferece a oportunidade de voltar para casa.
Essa é a Cleusa Ximendes, 54 anos, caminhoneira conhecida nas estradas e nas redes sociais por ajudar andarilhos.
— A estrada é meu lugar. Nós, caminhoneiros, também somos andarilhos de alguma forma — diz a motorista.
Com uma empatia maior que todo seu caminhão, ela percorre o país com um desejo: acolher pessoas que, por vezes, são invisibilizadas pelo poder público e, até mesmo, pela própria família.
O que não falta na boleia é um lanche para amenizar a fome e uma escuta aberta para entender cada história de vida.
Começou na Opala, foi até o Truck
Foi em Capão do Leão, cidade onde Cleusa morava com a família, que ela teve o primeiro contato com o caminhão. A rotina de uma cidade do Interior facilitou para que algumas ações, que apesar de solidárias são consideradas infrações gravíssimas, ocorressem por um bem maior. Ela usava o carro da família para ajudar as pessoas que precisavam ser levadas ao hospital ou que necessitavam de uma carona, mesmo sem ter a carteira de habilitação.
— Eu sempre gostei de ajudar os outros. Morávamos em uma cidade pequena e eu não tinha carteira de motorista, mas sabia dirigir um opala na época. Tinha pessoas idosas e as crianças pequenas que, às vezes, precisavam de ajuda. A polícia deixava eu passar. Dizia "estou levando porque está doente". A gente juntava o dinheiro para colocar gasolina e íamos, eu levava — recorda.
O ex-marido de Cleusa e pai dos seus três filhos tinha uma oficina mecânica para caminhões. Foi aí que ela teve a oportunidade de pilotar:
— Tinha que levar o caminhão para os clientes e como eu dirigia o Opala, pensei que era a mesma coisa com caminhão pequeno. Eu levava pelo Interior, em estradas de chão, sem fiscalização. Só não fazia a ré, depois de anos que eu fui aprender — conta, com bom-humor.
Sem tanta burocracia para a formalização da carteira de motorista como é o sistema atualmente, Cleusa conseguiu logo tirar a habilitação para caminhão.
— Na época, quando fui tirar a carteira era direito que podia fazer a de caminhão. Eu fui lá e passei para caminhão — afirma.
Estar perto dos filhos era um desejo
Após, ela e o companheiro vieram trabalhar na Região Metropolitana. Ela trabalhou em empresas de transporte em Porto Alegre, com caminhões trucados. Mas, seu desejo era pilotar uma carreta e sair pelas estradas.
— Comecei a trabalhar com coleta e entrega só em Porto Alegre. Também trabalhei um tempo em família. Depois, a primeira experiência contratada foi na Braspress, quando assinaram minha carteira em 2001. Os guris (filhos) eram pequenos e estudavam, então eu não tinha preferência em viajar por causa deles. Eles nunca rodaram na escola, eu não estudei e sempre gostei que eles estudassem — diz Cleusa, que estudou apenas até a oitava série do Ensino Fundamental.
O sonho de sair pelo Brasil continuava e, para isso, Cleusa precisava da habilitação categoria E. Na tentativa de conquistar essa categoria, ela passou por cinco tentativas. Para pagar essa custo, Cleusa fez faxinas para complementar a renda. Depois da habilitada para carretas, ainda demorou até a primeira experiência. No entanto, depois de começar não parou mais.
— Foi meio complicado no início, porque eu não conhecia nada. Tinha muito nervosismo e já peguei direto duas carretas. Na estrada tem os perrengues, guincho para puxar, descidas na serra do Rio com medo, entradas em favelas perdida, coisas assim. Até hoje me perco às vezes, mas agora dou risada, tiro de letra — conta.
Nesta fase, Cleusa já havia vivido a separação e do retorno dos filhos para Pelotas.
Um olhar além de entregar cargas
Pelas rodovias, Cleusa encontrou outro público que necessita de cuidado.
— Depois que eu virei caminhoneira, vi que existe muitos andarilhos que precisam de um apoio para mudar o quadro (da vida). Em muitos casos são pessoas que têm estudo, faculdade. Também existem os que tem alguma doença mental e que precisam de ajuda — explica a motorista, que atualmente trabalha na empresa Giovanella Transportes.
A solidariedade que, antes não era compartilhada na internet, passou a ser conhecida por milhares de seguidores. Nas plataformas Instagram, Facebook, TikTok e YouTube são mais de 658 mil pessoas acompanhando o dia a dia de Cleusa. Ela grava desde desafios enfrentados na estrada até o acolhimento de um andarilho que quer voltar para casa.
— Antes da internet, eu já tinha uma visão além. Nunca quis estar cega, muda ou surda para esse tipo de coisa (negligência de pessoas vulneráveis). Às vezes, estou conversando com alguém num posto e já vejo, lá adiante, um andarilho vindo. Eles me conhecem, param para conversar comigo, se abrem — detalha a caminhoneira.
Triagem para oferecer ajuda
Nesta conversa, Cleusa pergunta detalhes sobre a vida do andarilho. Ela busca entender qual a melhor forma de ajudar. Por vezes, a urgência não é um pedido de retorno para família, mas é um prato de comida, uma roupa limpa e um chinelo. Segundo Cleusa, existem pessoas com medo da reação e julgamento que poderiam enfrentar ao retornar para casa.
— Quando eu passo por eles (andarilhos), eu já faço uma conversa. Pergunto tudo sobre ele, se tem família, de onde é, tudo. Peço até os documentos. Meus vídeos circulam por todo Brasil e, normalmente, vem por mensagem pessoas que falam que são parentes — explica o método.
Depois dessa entrevista, ela segue o caminho para entregar a carga. Se a família confirma os dados, Cleusa combina de, na volta após descarregar, pegar a pessoa.
— Nos casos dos que eu trouxe para casa, tem a família envolvida, que entra em contato com a empresa e comigo. E eu trago mais quando é no Rio Grande do Sul, porque já diz que é gaúcho e toca no meu coração. Aí pergunto se quer ir pra casa e, geralmente, eles têm um telefone da família e eu ligo. Pergunto se é confiável, se não tem vício, se posso levar. Se a família falar que posso levar, aí sim — diz ela.
Cleusa afirma que essa carona ocorre só em alguns casos porque ela espera saber se a família aceita e ter a confirmação.
— Também tem as pessoas que eu fico meio desconfiada e meu coração diz "não vai que é fria". Quando fico em dúvida, consigo a passagem.
Ela diz já ter perdido a conta do número de reencontros. Quando não oferece um assento na cabine, tenta comprar passagens nas rodoviárias com vaquinhas divulgadas nas redes sociais e grupos de caminhoneiros.
O veículo não carrega apenas uma grande carga, mas uma empatia gigante. Segundo ela, alguns andarilhos demonstram uma tristeza por situações que deram errado na família.
— Parece que no fundo querem que a família vá atrás dele. Quando se soltam já falam nome, sobrenome e a gente percebe que eles querem ser identificados — conta.
Todo o registro que Cleusa publica nas redes sociais tem autorização do andarilho. A caminhoneira destaca que, através dos vídeos, consegue mostrar uma realidade que não era vista.
— Eu penso que um dia, com todas as essas filmagens, alguém vai fazer alguma coisa sobre isso, o governo ou outra iniciativa, que possa recolher e fazer uma triagem. Têm muitos que querem voltar ao trabalho e já não possuem documentos. Têm muitos que o vício levou para as estradas. Andarilho é diferente de morador de rua — afirma a caminhoneira.
Chinelos amarelos nas estradas do Brasil
A carona não acontece com tanta frequência. Ela conta que existem outras necessidades mais urgentes, como a fome.
— Eles sentem necessidade de trocar a cueca. Dou banho de balde, corto o cabelo, dou comida.
O caminhão grande não a impede de fazer uma manobra imprevisível:
— Paro em cima da faixa, dou pisca-alerta, até a PRF fica atrás me guardando. Eles já sabem que eu sou pelas redes sociais.
No início do ano, Cleusa participou do quadro Acredite Em Quem Quiser, no programa Domingão com Huck. Ela foi uma das convidadas a contar a história de uma pessoa que reprovou 25 vezes na prova prática para tirar a carteira de habilitação — o que não foi o caso de Cleusa.
— Me chamaram porque a história conciliou com a vida da outra convidada, que foi faxineira.
Questionada se ela ganhou algum valor pela participação, Cleusa detalha:
— Deram um dinheirinho e comprei tudo em chinelo no Brás (em São Paulo). Mas não conseguia carregar de tão pesado, não conseguia nem caminhar. Por ser de promoção, todos os chinelos eram amarelos. Na faixa, todo mundo de chinelo amarelo nos pés — conta, com entusiasmo.
Sacolinhas entregues para quem precisa
Cleusa recebe apoio de pessoas que conhecem esse lado voluntário e, por isso, ela recebe doações de roupas, alimentos e, principalmente, chinelos.
— Tem vezes que nem tem lugar para dormir na cabine de tantas doações. O que mais tenho dificuldade de conseguir é doação de chinelos — salienta.
A caminhoneira organiza doações em sacolinhas que possam ser jogadas pela janela quando passa por um andarilho:
— Tem lugares que não dá parar, então atiro pela janela. Eles já sabem e vem correndo pegar.
Com a intenção de que mais pessoas tenham a mesma atitude, Cleusa tenta influenciar outros caminhoneiros:
— Tem gente em tudo que é lugar precisando. Vários motoristas que me conhecem já estão fazendo sacolinhas para doação também. Quero expandir essa ideia de ajudar. Um dia vou parar, mas alguém tem que continuar.
O desejo de Cleusa está longe de ser uma aposentadoria em casa descansando, como ela descreve:
— Nem sei se vou me aposentar, não penso nisso. Meu sonho é recolher todos os andarilhos e ter um lugar para deixar eles. Eu saio da estrada quando isso acontecer. Queria que um milagre acontecesse. Para quem não quisesse ficar nesse lugar, teria banho, roupa limpa e comida. Uma casa de passagem, mas sem regras como é dentro de cidade.
Uma passadinha em casa
Cleusa diz que não tem casa, apesar de ter Pelotas como sua referência. Os cinco netos também são motivo de uma passadinha em Canoas. Ela é avó de cinco.
— Eu não tenho casa, mas pago um consórcio para quando me aposentar. Eu moro no caminhão e passo mais em Canoas por causa dos netos. Só quando eu fico doente vou para Pelotas. Lá meus irmãos cuidam da gente, são enfermeiros.
Quando se fala em festas do final de ano, Cleusa admite que por ela tudo bem seguir trabalhando:
— Muito raro eu passar um Natal ou virada de ano em casa. Aproveito que o patrão manda um dinheiro a mais e faço um churrasco e chamo os andarilhos. Falo para eles "vamos comer junto comigo" e fazem uma festa.
Caminhão faz parte da família
Ter o caminhão como veículo da família é uma das lembranças que a filha mais velha de Cleusa, Raniane Ximendes Huber, 37 anos, recorda. Segundo Rani, todas as saídas eram feitas de caminhão e, por isso, alguns lugares eram inacessíveis.
— Vamos jantar, era de caminhão. Vamos no jogo do Grêmio, era de caminhão. Tinha lugares que não entrava o caminhão, como o drive-thru do MC Donald's. Uma vez eu queria ir, eu fiquei tão braba que não comi no restaurante que me levaram — conta, em meio a risos.
Mãe de três meninos, Henry, Rafael e Matheus Huber de Souza, de 13, oito e sete anos, respectivamente, Rani dá exemplo de solidariedade, assim como sua mãe ensinou:
— Tenho lembranças da minha mãe de quando tinha eleições e os vereadores vinham falar com ela. Ela falava que até fazia campanha, mas queria cadeiras de rodas, cobertores, colchões, tudo para doar. Desde que me entendo por gente ela é assim. Fala com todos, pergunta se tá precisando de alguma coisa. Para e ajuda. Eu carrego sempre algo no carro que possa doar.
Para o neto mais velho, Henry, ter uma avó caminhoneira e "blogueira" é algo de se orgulhar.
— Ela ajuda as pessoas que não tem muitas condições, acho muito legal — diz o neto de 13 anos.
Rodrigo foi uma das caronas para casa
Na véspera de Natal do ano passado, Cleusa trouxe Rodrigo da Silva Mendes, 27 anos, para o encontro com a família. Natural de Canoas, ele havia deixado a região metropolitana de Porto Alegre, em setembro de 2022, para tentar a vida em São Paulo. Primeiro foi de ônibus. Encontrou emprego, não se adaptou no trabalho e decidiu mudar de novo. O destino, dessa vez, seria o Rio de Janeiro. Sem dinheiro, iniciou o percurso a pé.
Enquanto tentava chegar à capital fluminense, o andarilho parou em um posto de combustíveis. No local, foi abordado pela caminhoneira que lhe ofereceu um par de chinelos e comida. Assim que conversou com o gaúcho, a motorista fixou uma ideia: iria ajudá-lo no trajeto, fosse seguindo ao RJ ou retornando ao Rio Grande do Sul — o rapaz diz que decidiu viajar ao Sudeste em busca de algo diferente, mas admitiu saudade de casa.
Ela fez o que sempre faz: entrou em contato com a família. À época, ela contou à reportagem que a família de Rodrigo não fazia ideia que ele estava indo a pé pro Rio de Janeiro.
— Ele escondia da família pra não preocupar ninguém. De cara já deu pra ver que era um menino bom — contou Cleusa, ao repórter Tiago Boff.
Atualmente, Rodrigo está em uma situação melhor do que há um ano.
— Ando pensando bastante sobre isso, pois faz um ano que ela me trouxe. Eu não saberia onde eu estaria se ela não tivesse me ajudado — conta o jovem, que hoje está empregado em uma estética automotiva.
Residente da Capital, ele comenta que, agora, para sair daqui para uma nova jornada precisará de um planejamento:
— Só com um plano bem feito.