Turma histórica
Cotas ampliam presença de negros no curso de Medicina da UFRGS
Matrícula para o segundo semestre, realizada nesta quarta, indica um novo padrão na composição étnica do corpo discente


Desde as 8h30min de quarta-feira, os alunos que circulam no interior de uma das principais faculdades do Estado ganharam um perfil mais parecido com o da população que perambula pelas calçadas do lado de fora.
Antes restrito a uma maioria esmagadora de estudantes brancos, o curso de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) ganhou uma proporção inédita de rostos negros na matrícula para o segundo semestre, feita ontem, graças a mudanças realizadas no mais recente vestibular.
Mesmo com a implantação das cotas, em 2008, o ingresso de negros egressos de escolas públicas em cursos muito disputados como a Medicina era mínimo. No primeiro ano, por exemplo, somente brancos conseguiram superar a nota mínima exigida para ocupar uma cadeira na academia. A partir do último concurso, essa nota de corte foi eliminada. Isso facilitou o preenchimento das 21 vagas - de um total de 140 - destinadas ao programa de promoção étnica.
- A avaliação subjetiva que temos é de que a mudança nos critérios realmente surtiu efeito e aumentou a presença dos negros aqui - afirmou o coordenador da comissão de graduação da faculdade, Gilberto Friedman.
Calouros foram recebidos com tintas por veteranos
A instituição não divulgou, porém, números oficiais sobre a etnia de quem confirmou ingresso. Recebidos pelos veteranos, tiveram a cor da pele misturada aos tons de tintas com que foi estampada a palavra "bixo" no rosto.
- O contato com os veteranos foi muito bom, acho que não haverá diferença de tratamento - disse o calouro Guilherme Reis, 20 anos.
Os pais da futura médica Jéssica Franco, 20 anos, acompanham a filha no ingresso ao Ensino Superior.
- É um duplo orgulho. Não só pela minha filha, mas pelo que isso representa de resgate em relação às oportunidades que os negros não tiveram no passado - observou o pai, o professor estadual Luiz Henrique Franco.
Zero Hora conversou com seis dos novos acadêmicos que se autodeclararam negros. Confira, nesta página, quem são e o que pensam alguns dos beneficiados pela política que está mudando o perfil de um dos cursos mais tradicionais do Estado.
O perfil dos futuros médicos
Jéssica Franco
Idade: 20 anos
Cidade: Porto Alegre
Filha de professor estadual, Jéssica já tem planos bastante detalhados para quem mal pisou nos corredores da Medicina da UFRGS. Antes mesmo da conquista da vaga, a ideia inicial da egressa do Colégio Tiradentes, da Brigada Militar, era ser neurocirurgiã. Porém, pensando enquanto aguardava a matrícula, decidiu manter em consideração outras três especialidades, oftalmologia, cardiologia ou pediatria:
- A chegada dos negros à universidade é muito importante para corrigir uma questão histórica.
Felipe de Oliveira
Idade: 26 anos
Cidade: Caxias do Sul
O ingresso de Felipe na Medicina da UFRGS, beneficiado pela mudança no sistema de reserva de vagas para negros egressos de escolas públicas, encerrou uma série de tentativas. Esta foi a sexta vez que Felipe tentava seguir a carreira. Para compensar o esforço, também foi aprovado pela federal de Santa Catarina. Mas o filho de um mecânico com uma agente de saúde nem pensou em deixar o Estado:
- Embora eu goste de praia, não se compara a uma universidade como a UFRGS.
William Oliveira
Idade: 19 anos
Cidade: Porto Alegre
Morador do bairro Sarandi, na zona norte da Capital, William Oliveira, 19 anos, começou a realizar ontem um sonho de infância: virar médico. Egresso da escola estadual Parobé, de Porto Alegre, ainda não sabe como será a receptividade da academia aos novos estudantes negros da Medicina, mas confia em um futuro mais igualitário:
- Com uma entrada maior dos negros na universidade, teremos uma quantidade muito maior de médicos negros, que hoje praticamente não existem.
Bruna de Mello Vicente
Idade: 17 anos
Cidade: Venâncio Aires
Para Bruna, fazer parte da primeira turma da Medicina da UFRGS com presença significativa de alunos negros tem um grande valor.
- Esta será uma turma histórica, até como marco de início de uma integração étnica muito maior em um dos cursos mais tradicionais da universidade.
Em 30 de janeiro, a filha de um mecânico e uma comerciária publicou um texto sobre o tema das ações afirmativas em ZH, chamado Tentativa de Igualdade.
Guilherme Reis
Idade: 20 anos
Cidade: Santo Ângelo
Depois de passar em um dos vestibulares mais difíceis do país, Guilherme tem um outro desafio: encontrar lugar para morar na Capital. Está na casa de parentes. Filho de pai professor e mãe técnica em enfermagem, pretende decidir durante o curso que especialização seguir. Ele comemora a mudança nos critérios da UFRGS que facilitaram a inclusão dos negros:
- Antes, mesmo com as cotas, era difícil um negro entrar nos cursos mais concorridos. Agora é diferente - vibra Guilherme.
Laís da Silva Rodrigues
Idade: 19 anos
Cidade: Canoas
Fluminense radicada no Rio Grande do Sul há 12 anos, Lais recebeu uma ligação da mãe quando foi divulgado o listão dos aprovados em um dos cursos mais tradicionais do Estado. Do outro lado da linha, a mãe, funcionária em um escritório de advocacia, chorava de emoção. Estudante do Colégio Militar, a caloura sonha em ser cirurgiã pediátrica.
- As cotas são fundamentais para dar mais oportunidades aos negros - sustenta.
Para entender
- 30% para cotistas - 15% para egressos do ensino público e 15% para egressos do ensino público autodeclarados negros;
Como era
- A universidade selecionava um grupo de alunos com melhor desempenho, cujo número variava conforme a quantidade de vagas de cada curso, independentemente de serem ou não cotistas.
- Se não houvesse cotistas, eles não ocupavam as vagas destinadas a eles. Isso ocorria principalmente com os negros.
Como ficou
- Em vez de selecionar os melhores colocados em geral, a UFRGS passou a fazer três seleções: os melhores não-cotistas, os melhores do ensino público e os melhores egressos da rede pública autodeclarados negros.