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Saúde mental

Tortura no lar: como vivem pacientes e famílias que sofrem com transtornos psiquiátricos

Tema ganhou repercussão em fevereiro devido a três casos de pessoas em surto psicótico que tiveram de ser contidos pela Brigada Militar

16/02/2013 - 11h49min

Atualizada em: 16/02/2013 - 11h49min


J., 28 anos, em estabelecimento comercial na zona norte

A saúde mental ganhou repercussão em fevereiro devido a três casos de pessoas em surto psicótico que tiveram de ser contidos pela Brigada Militar. Em dois deles, os pacientes morreram. Em um terceiro, o PM sofreu um corte no braço.
Muito além da discussão sobre o desfecho, está a realidade de famílias, pacientes e da rede de atendimento.  O Diário mostra hoje o cotidiano de quem sofre com doenças e limitações do tratamento. As situações formam um cenário doentio. Um dado do Samu ajuda a dimensionar o drama: há três anos, o número de atendimentos para esses casos na Capital era de 1%. Hoje, signifca 7%. Pacientes e familiares têm os nomes preservados a pedido dos entrevistados.

"A gente não tem paz"

A situação do irmão de 48 anos coloca J., 28 anos, entre a cruz e a espada: ao mesmo tempo em que se dedica a cuidar dele, sente que a presença do homem se tornou uma ameaça para a segurança da família. E dele mesmo.
Diagnosticado com esquizofrenia aos 20 anos, logo depois que saiu do quartel, L. vive em uma peça nos fundos do pátio da casa de J., na Zona Leste da Capital. Sua situação é agravada porque ele não quer aderir ao tratamento no Centro de Apoio Psicossocial (Caps): acredita que não está doente.
- Se ele quisesse se ajudar, mas não adianta... De uns anos para cá, está piorando cada vez mais - lamenta.
Ao longo dos anos, era a irmã mais velha que cuidava dele. Até que ela não aguentou o estresse e adoeceu.
Então, J. é quem dá os cinco comprimidos que L. toma por dia, além de  aplicar injeções quinzenais. E, acima de tudo, lida com o comportamento agressivo do irmão.

- Pedido de interdição judicial

Também é ela quem tem de levá-lo para a emergência psiquiátrica e para as internações durante as crises, cada vez mais frequentes. Nesses casos, para contê-lo, é preciso acionar a Brigada.
- Depois que assumi, eu não tive mais tranquilidade. Cuido mais dele do que dos meus filhos - desabafa.
Diante desse cenário, de resistência ao tratamento, crises constantes e atitudes violentas, ela solicitou a interdição judicial do irmão. A juíza ordenou, em dezembro de 2011, que a perícia fosse realizada. Mas L. já passou por oito internações nesse período e a avaliação ainda não aconteceu.

- Quando a alta é sinal de tormento

Agora, ele está passando por nova internação, no Hospital Espírita. J., ciente da gravidade do caso do irmão, infelizmente não vai poder comemorar quando ele tiver alta. Por quê?
- Daqui a pouco, ele vai sair, voltar para casa, e aí vai começar tudo de novo.

Surto levou  à morte

Ainda tentando entender a morte do irmão no dia do casamento dele, o empreiteiro Flávio Norberto Leal Vaz,
44 anos, recorda do comportamento tranquilo do garçom Julio Cesar Leal Vaz, 35 anos, morador de Viamão.
Ele morrreu em função dos disparos de uma pistola de choque (taser) utilizados pela Brigada Militar para contê-lo durante um surto. A perícia ainda não foi concluída.
Flávio diz que esses episódios eram raros, e lembra de apenas uma outra vez em que o irmão teve de ser contido pela BM, que o levou ao hospital. 
- Ele se tratava, mas era uma pessoa sadia. Na sexta (dia 25, antes de morrer), tinha ido ao médico - conta.
A morte da filha de três anos desencadeou um episódio de depressão em Julio, que foi internado por cerca de um mês e passou a usar remédios. Isso foi há
15 anos, de acordo com o irmão. E, depois de recuperado, o tratamento não afetava a sua rotina:
- A doença não prejudicava em nada, ele era um ótimo profissional.  

Doenças psiquiátricas

As causas

- Os surtos podem ser causados por doenças psiquiátricas (como esquizofrenia e transtorno bipolar), intoxicação por álcool e outras drogas, manifestação do processo de demência e por doenças orgânicas sem controle (como insuficiência renal, cirrose hepática, tumores cerebrais etc.).
- A maioria das doenças psiquiátricas, quando o paciente está em tratamento, não provoca surtos. A interrupção do uso dos medicamentos, ou a sua utilização em uma dosagem reduzida, podem favorecer essas ocorrências.
- A agitação psicomotora é muito comum por abstinência de álcool e drogas.


O sintomas

- A esquizofrenia tem entre seus principais sintomas a psicose, marcada por alucinações que distorcem a audição, o olfato, o tato e a visão. A pessoa pode escutar vozes que não existem ou interpretar barulhos como palavras, geralmente negativas, dirigidas à ela. É comum que o paciente imagine ouvir frases como "vou te matar".
- Os delírios (alterações do pensamento) também são comuns. A pessoa pode acreditar ser alguém que não é. 
- Já o transtorno bipolar é marcado por alterações de humor, com fases que oscilam da euforia à depressão. A etapa mais propícia a surtos é quando a pessoa está com o humor voltado para a euforia, em que há muita liberação de energia e o paciente não consegue se acalmar.
- É comum haver a combinação dos sintomas nessas duas doenças.

Como agir

- O importante é que a pessoa seja contida para que não machuque a si e aos outros.
- Ela não deve, contudo, ficar imobilizada por muito tempo e nem em posição que possa vir a aspirar a própria (saliva). Evite que a pessoa fique
totalmente deitada. 
- O ideal é conter braços e pernas separadamente, com uma amarração que não seja muito forte, para não comprometer a circulação.
- Para conter alguém em surto, o ideal são pelo menos outras quatro pessoas (uma para cada membro).


Tratamento

- A base do tratamento é o uso de medicamentos. Em muitos casos, os sintomas ficam controlados. E a utilização é necessária para a vida inteira, já que são doenças crônicas.
- Também é importante o que os médicos chamam de psicoeducação, ou seja, um acompanhamento para aprender a conviver com a doença.
- Em casos mais avançados, quando a capacidade de trabalhar ou estudar fica comprometida, é indicada a terapia ocupacional, com atividades que preencham o tempo.


Dados de saúde mental

- A esquizofrenia acomete cerca de 1%
da população brasileira.
- No transtorno bipolar, índice é de 2%.
- Já os efeitos da dependência de álcool e outras drogas atingem quase 20% das pessoas.

Informações: psiquiatra do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professora-adjunta do departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS, Clarissa Gama.

Rede de atendimento


Porto Alegre

- A porta de entrada para o atendimento público são as Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Estratégias de Saúde da Família (ESF). Ali, o paciente será avaliado e, se for o caso, encaminhado para os Centros de Atendimentos Psicossociais (Caps).
- São 12 Caps na Capital: cinco
Caps-AD (específicos para álcool e drogas, sendo três 24h), quatro Caps para atendimento adulto e três Caps para crianças e adolescentes.
- Os Caps atuam como alternativa à internação em hospitais. Realizam atendimentos individuais e em grupos e desenvolvem oficinas culturais, educativas, de lazer e esportivas. Há prescrição de medicamentos.
- Para casos de internação hospitalar, a Secretaria Municipal da Saúde assume a regulação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais. E para os casos de urgência e emergência, mantém plantões nos postões do IAPI e da Cruzeiro.
- Região Metropolitana - Alvorada, Canoas, Gravataí, Novo Hamburgo, Sapucaia do Sul e Viamão contam com Caps-AD. Em Cachoeirinha, Campo Bom, Estância Velha, Esteio, São Leopoldo e Sapiranga há Caps.
- Estado - São 875 leitos psiquiátricos e 671 leitos só para dependentes de álcool e drogas em hospitais. Além disso, há a 810 leitos psiquiátricos em hospitais psiquiátricos, dos quais 435 para dependentes de álcool e drogas.

Uma segunda casa

Em nove anos de tratamento no Caps Centro, em frente à Redenção, S.,
32 anos, já transformou a unidade em sua segunda casa. E ele não poupa elogios:
- Eu não posso viver sem o tratamento, os profissionais e os amigos aqui do Caps.
Hoje vivendo com a irmã e o cunhado, e com o tratamento em dia, ele vive uma realidade bem diferente de quando chegou a Porto Alegre, há 13 anos. Na época, delírios e alucinações provocados pela doença psiquiátrica preenchiam o seu dia a dia.
- Eu me sentia discriminado. Nunca me deram serviço, chance de trabalhar.


- Ele chegou a morar nas ruas


Brigado com a família, que "não o entendia", S. morou nas ruas da Capital e foi acolhido em abrigos. A partir daí, recebeu o encaminhamento para o tratamento. Vai ao Caps duas vezes por semana e, em casa, ajuda a irmã e o cunhado, acompanha os jogos do Inter e as novelas. Neste domingo, vai comemorar o seu aniversário com um churrasco:
- A reaproximação com parte da minha família foi muito importante para mim. Quero cada vez mais me dar bem com eles.
Os Caps, porém, não têm serviço de busca de pacientes em surto. Nestes casos, a família ou quem sente ameaçado recorre à Brigada Militar ou ao Samu.

Álcool e drogas: concorrentes

No cenário de tratamento de saúde mental, o atendimento a doenças psiquiátricas e a pacientes usuários de álcool e drogas se confunde. No entanto, o foco nesse último público é uma diretriz do Ministério da Saúde, diante da demanda crescente.
Aliada a isso, também está a orientação de reduzir internações e direcionar os pacientes aos Caps. Diante desses dois fatores, Porto Alegre estima aumentar para oito o número de Caps-AD (para álcool e drogas) - hoje são cinco.
- A questão do foco parte dos sintomas. E isso (álcool e drogas) é foco no Brasil. A rede de Caps precisa e vai ser ampliada - diz o assessor da área técnica de saúde mental da Secretaria da Saúde de Porto Alegre, Marco Pires.

Rotina para a Brigada Militar

De acordo com o comandante do Comando de Policiamento Metropolitano (CPM), tenente-coronel Florivaldo Damasceno, atender ocorrências de pessoas em surto psicótico faz parte da rotina da corporação.
- A cada um ou dois dias tem uma ocorrência dessas na região do CPM - afirma.
Segundo ele, a orientação para as equipes é, quando necessário, utilizar as pistolas de choque (taser) para imobilização. E, a partir daí, auxiliar na condução do paciente para tratamento. A BM, pelo 190, também presta auxílio na contenção realizada por profissionais de saúde.
- O perigo é maior se a pessoa estiver com faca, arma, machado... - destaca Florivaldo.

Samu: de 1% para 7%

Pacientes em surto psicótico que colocam em risco a própria vida ou oferecem risco para as outras pessoas estão incluídos no perfil de atendimento do Samu - telefone 192.
A triagem para cada um dos casos é feita no momento em que o serviço é acionado, mediante uma série de perguntas feita pelo atendente. 
Há três anos, o número de atendimentos para saúde mental na Capital era de 1%. Hoje, responde por 7% dos chamados.


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