Casa diferente
Dilemas e sorrisos de quem mora no Hospital Conceição, em Porto Alegre
Saiba quem são os moradores da Residência Vitalícia, adquirida na década de 60
O espanto de taxistas, a confusão com entregadores e outras pequenas situações embaraçosas são comuns às nove pessoas que moram dentro Hospital Conceição, na ala da Residência Vitalícia. Elas adquiriram o direito ainda na década de 60, quando compraram leitos do lugar que se chamava Casa de Saúde Conceição.
O segundo dia da reportagem traz detalhes desta singular situação, única no país, segundo a administração. Duas senhoras abriram suas portas para o Diário Gaúcho e contaram suas necessidades, seus dilemas e curiosidades de seus cotidianos.
A síndica da turma
Quando o pai de Elaine Marisa Haselein Saleh, 68 anos, assinou a compra de quatro cotas da Casa de Saúde Nossa Senhora da Conceição, em 1961, ela ainda era menor de idade. A aquisição garantia a ele, à esposa e aos dois filhos o direito de viver, a partir dos 60 anos, num pedacinho do hospital.
Por um apartamento de primeira classe, no nome de Elaine, foi pago 45 mil cruzeiros, na planta, o equivalente a R$ 5,7 mil atualmente.
- Eu disse para o meu pai: "Deus me livre morar num hospital!" Mas minha mãe dizia que era bonito, tinha varandas - lembra Elaine, que é filha de um dos antigos donos do Hotel Majestic.
Já viúva e sem filhos, quando fez 60 anos, Elaine decidiu mudar-se para a Residência Vitalícia. A professora aposentada teve de recorrer à Justiça e, só três anos depois, em 2007, fez a mudança. Antes dela, a mãe (já falecida) viveu durante oito anos no local e o irmão de Elaine também tem uma acomodação na Residência Vitalícia.
- É insalubre morar num hospital, não foi isso que nós compramos. É quase inabitável - afirma.
Assista a imagens do local:
Ouvir rádio, sair com amigos, viajar...
O apartamento de Elaine tem sala, quarto e banheiro. A porta da sala está sempre aberta a funcionários ou vizinhos. No imóvel aconchegante, perfumado por incenso, há quadros trazidos de viagens à Grécia e à Itália. Sentado no sofá macio e saboreando um suco natural preparado por ela, o visitante até esquece que está dentro de um hospital.
- Gosto de ficar comigo mesma, ouço o Macedo e o Scola na Gaúcha, fico no computador. Também saio com amigos, viajo...
Elaine é presidente da Associação das Residentes Vitalícias do Hospital Nossa Senhora da Conceição. Cabe a ela a missão de buscar melhorias. A associação pleiteia direito à fisioterapia e à internação em quarto privativo, agilidade na marcação de consultas com especialistas e a solução de rachaduras.
A voz ativa dos moradores
O cheiro dos produtos usados na área da patologia é outra queixa.
- A direção do hospital não sabe que existimos. Sou a voz ativa das residentes, tudo elas reclamam para mim - conclui Elaine.
Hospital explica
Em relação às queixas da estrutura - rachaduras e tremores - o gerente Claudiomiro Ambrosio explica que há uma equipe que faz a manutenção do Conceição, à medida que chegam as reclamações. Segundo ele, as rachaduras de 20 anos não oferecem risco aos moradores.
Sobre a questão da internação, o gerente afirma que o atendimento dispensado aos residentes é o mesmo oferecido aos outros pacientes.
Já sobre o cheiro proveniente da patologia, o gerente diz que já foram feitas mudanças no local, com a equipe de higienização, para resolver o caso.
Linha do tempo
O hospital Cristo Redentor (o primeiro do GHC), idealizado por Jahyr Boeira de Almeida, foi inaugurado em 1956.
Em 1962, foi fundada a Casa de Saúde Nossa Senhora da Conceição.
Havia dois tipos de sócios: os remidos, com direito à assistência médica, e os locatários, com direito a moradia a partir dos 60 anos, ou antes, caso comprovada doença.
Em 1975, a União encampou a Casa de Saúde. Em 1990, foi criada a Residência Vitalícia, no terceiro andar do prédio da administração. Há nove pessoas morando lá hoje.
Livro Memórias do Hospital Cristo Redentor, de Ana Klein e Véra Barroso
Poetisa sente falta de janelas
Rodeada de obras de arte que adquiriu durante a vida toda, Leda Camargo, 91 anos, mostra que a lucidez de seus pensamentos é do tamanho da fragilidade de sua saúde. Há dez anos, ela deixou o apartamento no qual morava sozinha na Rua Fernando Machado, na Capital, para viver na Residência Vitalícia.
No quarto de hospital adaptado à moradia, a poetisa e escritora fez questão de trazer um pouco de seu universo: são silhuetas francesas, ilustrações e pinturas que tiram, em parte, a impessoalidade do ambiente.
Na entrada, uma delicada cristaleira e quadros de pintores famosos demonstram o bom gosto da idosa e remetem para a vida que ela tinha fora do Conceição. Mas o ruído de um gerador e a trepidação do piso tornam a moradia incômoda.
- Minha mãe comprou um apartamento para cada filha. Era uma mulher moderna, previdente. Como não tínhamos mais pai, ela queria nos dar segurança. Mas nunca pensei em usar isto aqui. O chão treme, sacode as coisas e, quando chove, molha tudo - conta Leda.
"Fui muito namoradeira, mas nunca me casei"
A poetisa conta que a facilidade para escrever ainda existe, só que as dores no corpo a impedem de colocar versos no papel. Depois de uma fratura de fêmur, causada por uma queda, ela precisa de fisioterapia duas vezes por semana.
- Nosso contrato é de total atendimento médico, mas não ocupo nada. Fiquei muito aborrecida quando suspenderam a fisioterapia. Até a minha alimentação especial é paga - reclama Leda, que custeia ainda o serviço de acompanhante.
A rotina ganha ares de novidade quando a sobrinha Maria Aparecida Ferrazzo, que também é procuradora de Leda, faz uma visita, e leva pratos com camarão, bacalhau e outras comidinhas que a tia aprecia.
- Sempre vivi a vida que eu quis, viajei. Fui muito namoradeira, mas nunca me casei. Logo que vim para cá, isso aqui era bom. O quarto era todo cheio de janelas, mas agora fecharam tudo.
Hospital dá sua explicação
O gerente esclarece que o serviço de fisioterapia não está previsto em contrato. Ele diz que é necessário que o médico que atende o paciente e morador da Residência Vitalícia faça a indicação.
Se a família puder custear, o idoso poderá fazer a fisioterapia. Caso não tenha condições, a pessoa entra na fila de espera junto a outros pacientes, de fora, que solicitam o serviço.
De acordo com Claudiomiro, a Residência Vitalícia conta com 11 profissionais que atendem os sócios moradores e os remidos.
- Estamos cumprindo o que está previsto no contrato, que é o atendimento gratuito. Só que, por sermos um hospital 100% Sus, ninguém mais paga. Todos que nos procuram são atendidos. O primeiro critério é a enfermidade, quem tem doença mais grave é atendido primeiro e, depois, a idade - conta o gerente.
Quais são as regras
O acesso à Residência Vitalícia pode ser feito pelos moradores em qualquer horário, bem como visitas, desde que devidamente anunciados pela portaria ou segurança.
Os moradores recebem todas as refeições nos quartos. Se quiserem, há refeitório. A comida é a mesma dos funcionários do hospital. Alguns têm o cardápio especial, segundo orientação médica. O serviço custa meio salário mínimo por mês.
Por falta de área de serviço, as roupas são mandadas para uma lavanderia e cada uma custeia sua despesa. O mesmo acontece com telefone e tevê a cabo.
Os moradores não pagam água, luz e qualquer medicamento.
O tamanho e a disposição das peças dos apartamentos variam. Há quem tenha uma pequena cozinha, com geladeira, fogão e prepare alimentos no local. Outros, por serem quarto-sala-banheiro, adaptam espaços para terem uma pequena copa.
Cada residente traz seus móveis e eletrodomésticos, como cama, sofá, televisão, rádio e computador. Os imóveis têm ar-condicionado.
Há quem contrata faxineira, mas a equipe de higienização atua nas residências.
Além do posto de enfermagem, um geriatra atende os moradores três vezes por semana. Eles também podem ser atendidos na emergência do hospital. Para consultas com especialistas, o apoio administrativo faz a marcação.
Situações curiosas
Sempre que precisam usar o serviço de táxi para voltar para casa, os moradores da Residência Vitalícia passam o tempo da viagem explicando ao motorista que não estão indo ao hospital por estarem doentes, ou para uma visita a alguém internado.
- Na ida eu vou explicando e, na volta, retorno explicando - diverte-se Conceição.
Outro inconveniente ocorrido com ela foi quando comprou um colchão e a entrega demorou uma semana.
- Eu prometi que não compraria mais nada que dependesse de entrega. Comprei um colchão de casal, pedi para colocarem na nota que a entrega era na Avenida Francisco Trein, 596 (endereço do Conceição) na Residência Vitalícia - conta.
Mas o entregador não conseguia localizar o apartamento porque todos que o atendiam estranhavam o fato de haver a entrega de colchão de casal em pleno hospital.
Uma cuidadora de idosos que trabalha para uma das idosas conta que os próprios funcionários do hospital desconhecem a existência da Residência Vitalícia:
- As pessoas se surpreendem, nem sabem que tem gente morando aqui, como se fosse numa casa. Uma vez, eu vinha com sacolas do mercado e o segurança do hospital me barrou, queria saber onde eu ia. Eu disse que estava indo na Residência Vitalícia, que ele nem sabia que existia.