Numa madrugada de março, o comerciante Wilmar da Silva, 62 anos, acordou com água de esgoto pelas canelas. Uma rede do Departamento de Esgotos Pluviais (Dep), que passa embaixo da sua casa, rompeu e inundou a residência no Bairro Jardim Carvalho, Zona Leste da Capital.

A água de cor escura e cheiro insuportável jorrava, de baixo para cima, com a força de um chafariz. Quarto, cozinha e área de serviço ficaram irreconhecíveis. O prejuízo só não foi maior porque a família conseguiu retirar móveis e eletrodomésticos do puxadinho.

Edificar sobre redes é proibido

Por outro lado, a família deu sorte. O aumento da umidade provoca a erosão do terreno e a consequência - agravada pelo sobrepeso causado pela edificação - é o desabamento.

A prefeitura proíbe a construção de edificações sobre equipamentos de drenagem porque obstáculos impedem os serviços de manutenção. Mesmo assim, por desconhecimento dos moradores e pela falta de fiscalização do poder público, centenas de casas como a de Wilmar são erguidas de forma irregular. Pior: o Dep não sabe quantas famílias estão nesta situação na cidade.

Uma reforma forçada no lar

A enxurrada de sujeira, que atingiu a casa do comerciante e causou estragos em outros dois imóveis da mesma rua da Vila Cefer 1, obrigou o departamento a substituir a rede subterrânea e Wilmar a repensar a localização de parte da residência.

- Esta área era do pátio, mas agora acho que vou destruir as peças. Quando construí, não sabia que havia uma rede de esgotos embaixo (canos ficam a 4m de profundidade) - disse o comerciante.

Piso pode ruir e casa desabar

Sem saber, muitas famílias como a de Wilmar correm o risco de afundar junto com suas residências. E a explicação é simples: a canalização antiga se deteriora com o tempo. Os canos de concreto enterrados há mais de 50 anos - em alguns pontos, há mais de 70 -, quebram e formam barreiras que represam o fluxo de água e fazem o esgoto transbordar.

Normas do Dep

Locais que possuem redes coletoras do Dep são considerados faixas não edificáveis, pois a construção de casas nessas áreas impede a manutenção e pode acarretar danos nos equipamentos de drenagem.

Essas faixas estão estabelecidas nos Cadernos de Encargos do Dep, e são determinadas pela profundidade das redes coletoras existentes em cada região.

Os canos do Dep, em Porto Alegre, se dividem em dois tipos de esgotos, podendo ocorrer ambos num mesmo bairro: 1) Mistos: correm pelos canos dejetos oriundos dos ralos e vasos sanitários de casas e comércios misturados à água da chuva. 2) Simples: correm pelos canos apenas dejetos, sem ligação com água da chuva.

Tapete na sala esconde tampa do Dep

Em algumas regiões da cidade, o problema pode atingir uma comunidade. É o caso de parte da Vila Cruzeiro, no Bairro Santa Teresa. Na Avenida Moab Caldas, também conhecida como Tronco, famílias que serão removidas por causa da obra de duplicação da via convivem há mais de 50 anos com esse risco, a ponto de gerar cenas inusitadas como a constatada pela reportagem na casa de Eliane Beatriz Andrade Silveira, 50 anos.

Infestação de ratos e baratas é comum

Numa sala da sua casa, a alça de acesso à rede do Dep é escondida por um tapete. Inúmeras vezes, Beatriz correu para limpar a sujeira e matar baratas e ratos, que subiam pela rede subterrânea e infestavam o lar.

- Quando entope, não dá para comer por causa do cheiro. E, às vezes, transborda. Já perdi armários. Guarda-roupas nem tenho mais. Graças a Deus, vamos sair daqui. Esgoto dentro de casa nunca mais - desabafou Eliane, que não sabia que havia se instalado em cima de uma rede de esgotos.

Sobrecarga agrava o risco

O vice-diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Ufrgs, engenheiro civil Carlos André Bulhões Mendes, alerta que não é recomendável a busca por áreas de baixo valor imobiliário ou de risco, como planícies de inundações e áreas com alta declividade (inclinação de um terreno).

Estrutura está em xeque

Além disso, as redes de drenagem foram feitas para ficar a uma distância mínima de 1m da superfície e suportar um peso limitado de terra.

- Se começam a construir edificações nesse espaço, uma sobrecarga não dimensionada põe em xeque a infraestrutura e expõe as pessoas a uma situação de risco. Tem de remover as famílias dali - afirma Carlos Bulhões, que leciona a disciplina de Diagnóstico de Controle de Impacto Ambiental de Obras de Engenharia na universidade.

Ácido corrói estrutura

Ligações clandestinas de esgoto sanitário são conectadas às redes de esgoto pluvial, formando o chamado esgoto misto (combina água da chuva e dejetos). Esse material gera bactérias que liberam o gás sulfídrico ou sulfeto de hidrogênio (H2S).

Segundo Carlos, esse gás corrói a estrutura superior do concreto, que se quebra, causando entupimento da rede e lançamento do esgoto para dentro das casas.

Como é feita a fiscalização?

Em Porto Alegre, uma construção é autorizada somente após o projeto da edificação ser analisado, aprovado e licenciado nas instâncias competentes da prefeitura.

O último passo é obter a Carta de Habitação (Habite-se), concedida mediante vistoria após a conclusão da obra.

A fiscalização das obras é feita pela Secretaria Municipal do Urbanismo (Smurb) a partir de denúncias recebidas pelo 156 ou pelo Dep.

Após a confirmação da irregularidade, fiscais da Smurb vão até o local e aplicam multa de R$ 2 mil.

O morador tem 30 dias para pagar o valor. Se não paga, a Procuradoria-Geral do Município ingressa com pedido de ação demolitória na Justiça.Em alguns casos, as famílias são encaminhadas para programas habitacionais da prefeitura.

A Smurb afirma que houve alguns casos em 2012, e que recebeu uma denúncia, dias atrás, sobre a existência de dez casas construídas em cima de uma rede na Zona Sul.

Construções irregulares sobre redes pluviais públicas podem ser denunciadas pelo telefone 156.

Duas tábuas sobre rede de drenagem

Na Rua Jataí, próximo a um valão, no Bairro Cristal, o modelo Dilmar Bica Vargas, 27 anos, retira duas tábuas de madeira para mostrar um enorme buraco. Lá embaixo está a rede do Dep.

O barulho do curso de água é intermitente. A parte de cima é uma área da casa, coberta parcialmente por lajotas. Segundo ele, a peça da frente foi construída por último com um espaço para ingresso de funcionários do Dep.

- Deixamos aberto para que eles tenham acesso - afirmou Dilmar.

Família não consta na lista

De acordo com o Departamento Municipal de Habitação (Demhab), algumas famílias da Jataí e da Avenida Divisa serão removidas por causa da obra de duplicação da Moab Caldas. Mas a família de Dilmar não consta na lista.

"Não foi projetada para sustentar edificações"

O Diretor da Divisão de Conservação do Dep, engenheiro civil Fausto Missel Vasques, afirma que o órgão não sabe quantas famílias vivem em casas construídas em cima de redes de drenagem.

No entanto, ele revela que só há risco para os imóveis quando existe a necessidade de manutenção ou nos casos em que a movimentação do terreno causa rompimento da rede coletora e extravasamento do esgoto no local.

Mesmo com a produção de gases no interior dos canos, Fausto descarta a possibilidade de explosão porque as redes são abertas, permitindo que os gases não fiquem sob pressão.

Risco de cair até a galeria

- A rede coletora pluvial não foi projetada para sustentar edificações. Dessa forma, nos casos em que a estrutura está fragilizada pelo tempo de existência, a construção irregular sobre ela pode levar ao seu rompimento.

Engenheiro civil chefe da Zona Leste, Paulo Guilherme Silva Barcellos da Silva, afirma que tudo pode acontecer: a estrutura entrar em colapso, o piso ficar oco e a casa desabar.

- A pessoa pode estar na cozinha e, de repente, cair. Basta ocorrer um problema sob uma cerâmica quebrada. Vai parar numa galeria.

Outros pontos

Em parte destas ruas há construções irregulares sobre redes de drenagem ou redes coletoras de fundo:

Rua Professor Ulisses Cabral (Chácara das Pedras)
Rua Jacy Barcellos de Oliveira (Rubem Berta)
Rua Angelina Gonçalves (Sarandi)
Rua Eurico Lara (Medianeira)
Rua Domingos de Abreu (Sarandi)
Rua Dr. Júlio Teixeira (Vila Nova)
Acesso dos Guapuruvus (Jardim Medianeira)
Rua Nelson Zang (Vila Intercap)