Tecnologia das cavernas
Agentes comunitários ensinam analfabetos com desenhos
Para garantir a sintonia com os pacientes, profissionais da saúde trocaram os textos das receitas médicas por sinais e até recortes de jornais

Foi longe da tecnologia que uma agente comunitária de saúde de Porto Alegre e uma nutricionista de Gravataí encontraram a ajuda que faltava para estimular pacientes semianalfabetos e analfabetos nos tratamentos médicos.
Junto à ficha de acompanhamento das famílias, dentro da bolsa da agente Elisiane Kretzmann da Silva, 36 anos, estão potes de plástico e de vidro, a fita adesiva, o pincel atômico, as tiras de papel coloridas e até adesivos de corações e borboletas. É desenhando e escrevendo que ela costuma orientar quem tem dificuldades de compreensão do uso dos medicamentos na Vila Castelo, no Bairro Restinga.
Sintomas deram o alerta
Tudo vale para auxiliar no atendimento das 198 famílias. Na casa do pedreiro Jorge de Oliveira, 60 anos, os cinco potes de vidro identificados pela agente mudaram a vida do homem que tem hipertensão e diabetes - precisa de 12 comprimidos por dia. Há dois meses, Elisiane percebeu que Jorge sofria enjoos e ansiedade. Foi quando conferiu os remédios.
- Encontrei cartela vencida. E ele me disse que tomava todos juntos, sem ler os nomes. Resolvi que era preciso ajudá-lo - relembrou Elisiane.
Fim dos "piripaques"
Com a ajuda da mulher de Jorge, a agente identificou os vidros com os nomes dos remédios. Ainda cortou todas as embalagens, separando as pílulas.
- Tenho certeza que tomava o mesmo remédio várias vezes por dia. Não lia. Depois que a Elisiane fez isso, não tive mais piripaque ou fiquei nervosinho - diz Jorge.
Já com a dona de casa Elza da Costa Freitas, 59 anos, Elisiane foi mais longe: desenhou nos potes novos e acrescentou adesivos coloridos.
- Comecei a fazer isso com os idosos, até com quem sabe ler. Hoje, faço com quase todas as famílias. Percebi que as imagens ajudam os pacientes a lembrar de tomar os remédios nas horas certas - garante a agente.
Elisiane desenha em rótulos de recipientes
Foto: Mateus Bruxel, Agência RBS

Dicas da agente comunitária
- Fique atento ao idoso. É quem mais tem dificuldade de leitura. Se a pessoa não souber ler, deve ser orientada a ter os medicamentos em potes identificados.
- Potes de vidro (de conserva, por exemplo) e de plástico (tipo os de margarina) podem ser transformados nas vasilhas para os remédios.
- Observe as datas de validade dos medicamentos dos pacientes. Muitos deles não percebem que os remédios têm prazo de uso. Isso pode prejudicar a saúde.
Nutricionista: "Óbvio precisava ser dito"
Em Gravataí, foram as réplicas de alimentos e, até, recortes de jornais que tornaram o trabalho da nutricionista Maria Fátima Silveira, 30 anos, mais compreensível, como ela mesmo costuma dizer.
Uma das profissionais do programa municipal de reeducação alimentar Viva Mais Leve, Maria percebeu que os pacientes tinham dificuldades de compreender as porções diárias necessárias, bem como os diferentes grupos de alimentos.
- Percebi que o óbvio precisava ser dito. Me tornei uma tradutora da técnica para a prática. Dividi um prato em quatro partes e comecei - conta Maria Fátima.
Interpretar e ler são coisas distintas
A nutricionista conta que a mudança na forma de explicar a alimentação saudável atingiu analfabetos e também alfabetizados:
- De uma turma de 24 adultos, mais de 50% sabem ler. Porém, não conseguem interpretar o que está escrito. As imagens deram esta capacidade de compreensão.
Especialista aprova uso de imagens
Para a professora da Unisinos e doutora em Educação Nara Eunice Nörnberg, o uso de imagens para explicar as situações acaba estimulando a mente e dando autonomia aos adultos com dificuldades de entendimento.
- Imagens facilitam a compreensão muito mais do que um texto. A linguagem acessível ajuda o adulto a memorizá-las - esclarece.
"As crianças não têm medo"
Nara sustenta que existe uma diferença entre as crianças e os adultos de hoje e que isso repercute na hora de aprender:
- As crianças não têm medo, diferente dos adultos. Elas estão nascendo em meio à tecnologia, e já são ousadas por natureza. Com três anos já sabem usar um tablet com facilidade. Já os adultos têm aquela preocupação de não errar. Por isso, é válida toda a tática que o faça se sentir livre.