Papo reto
Manoel Soares e um encontro inusitado na fila do mercado
Já fui várias vezes confundido comigo mesmo para, em seguida, chegarem à conclusão de que eu não seria chinelo como eu sou
Na fila do mercadinho, aqui da minha quebrada, vejo uma mãe dizer para a filha:
– Ele é o da tevê!
A filha, ainda incrédula que o rapaz com uma bandeja de ovo e um pacote de coxinhas de asa seja aquele que ela vê ao meio-dia, dá uma volta, como quem quer pegar um salgadinho na prateleira da frente, e olha no meu rosto. Quando tem certeza, o disfarce cai por terra, e um sorriso afetuoso se abre como se tivesse vendo um personagem em quadrinhos. Eu dou oi e pergunto se ela me viu hoje, ela acena que sim.
Nessa hora, fiquei pensando... Por mais que, às vezes, dê vontade de vender coco em uma praia do nordeste, será que tenho direito de fugir da luta e tirar daquela menina a experiência de ver que, na mesma favela que ela mora, um repórter de tevê também pode morar?
Confesso que, quando desligo a câmera, não saio com a roupa de semideus que quer dar e ganhar autógrafos. Pelo contrário, já fui várias vezes confundido comigo mesmo para, em seguida, chegarem à conclusão de que eu não seria chinelo como eu sou, de que, se eu fosse eu mesmo, seria mais chique. Mas mal sabem que, se fosse chique, não seria eu.
Confuso? Eu sei... também acho, às vezes. Quando terminei o papo com a menina de sete anos, vi que todos assistiam à conversa com um sorriso no rosto, talvez, porque vissem o que demorei pra ver: que eu não sou eu, sou o que ela vê. Eu não posso ser eu, pois não atendo os anseios dela, preciso me superar para alcançar a projeção do meu eu que ela vê. Não por mim, mas porque, a partir desse "eu" dela, ela se constrói em um novo nível de paradigma de oportunidades e acesso que, talvez, nem eu acredite, mas ela acredita, e a crença dela será mais forte do que minha verdade.
Então, chega a minha vez no caixa. Dou tchau pra ela e vou pra casa.