Papo reto
Manoel Soares: "Fiquei hipnotizado por uma moça negra com a bolsa atravessada no ombro"
A ironia é que me ensinaram que mulheres como ela vieram da costela de homens como eu. A vida me ensinou que homens como eu vieram da barriga de mulheres como ela
Fiquei hipnotizado por uma moça negra com a bolsa atravessada no ombro. Com uma mão, tenta se equilibrar no metrô lotado, com a outra, segura um livro de Medicina que sacode como se estivesse em um vendaval de perspectivas. Ela segue lendo como quem entra em um estado de plenitude e ignora o caos à sua volta. Não lê por amor ao livro, mas ao seu passado, quando a mãe fazia faxina, e ao futuro, em que seus netos salvarão vidas numa dinastia de melhores médicos do país.
Ela vive a saga narrada por Martinho da Vila em Pequeno Burguês, mas é mais forte porque não se define como pobre nem coitada. Ela é linda sem maquiagem. O dia de trabalho pode ter descabelado seu black power, mas não tirou o achocolatado de sua pele que faz a alma que clama por amor salivar querendo dedilhar seus crespos como Hendrix fazia com as cordas da guitarra.
Na página que ela lê, de longe, vejo que é sobre costelas e demais estruturas ósseas. A ironia é que me ensinaram que mulheres como ela vieram da costela de homens como eu. A vida me ensinou que homens como eu vieram da barriga de mulheres como ela.
Hoje, fiquei feliz porque vi essa moça que não sei o nome mas que parece com alguém que veio à sua cabeça ao ler esse texto.