Trabalho
As faces por trás da nova ponte do Guaíba: a história de quatro trabalhadores que ajudam a erguer a travessia
Conheça a trajetória de quem enfrenta o desafio profissional ímpar de tirar do papel uma obra que está transformando a paisagem da Capital
Quem são as pessoas que estão erguendo a nova ponte do Guaíba? Ao apresentar Gil de Souza Menes Neto, 36 anos, José Tenório dos Santos, 63 anos, Luciano Gomes Mendonça, 41 anos, e Rayane Cordeiro, 29 anos,, o Diário Gaúcho conta as histórias por trás das toneladas de concreto, aço e estacas que estão transformando uma das paisagens de Porto Alegre. O desafio pessoal de cada um é permeado pelo orgulho de ajudar a tornar realidade uma obra que deverá desafogar um dos principais acessos à Capital.
Os quatro representam um extrato da história dos 780 funcionários da Queiroz Galvão, empreiteira responsável pela obra, que hoje trabalham na ponte. A construção chegou aos 85% e tem previsão de conclusão, segundo o Dnit, para o primeiro semestre do ano que vem. Até agora, a estrutura já recebeu R$ 668 milhões de investimento, montante que até a entrega deve atingir os R$ 757 milhões.
Na sexta-feira, foi anunciado que a construção perdeu R$ 15 milhões em investimentos do governo federal. A superintendência do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) no Rio Grande do Sul, porém, garante que há dinheiro suficiente para cumprir o que está planejado para este ano.
Tenório: a referência da obra
José Tenório dos Santos, 63 anos, encarregado especial de Custódia (PE)
Quatro das seis décadas vividas pelo pernambucano José Tenório dos Santos se passaram dentro de um canteiro de obra. Aos 63 anos, tem mais de 30 construções no currículo, como a ponte do Morumbi, em São Paulo, a Linha Vermelha e a revitalização da Praça XV, ambas no Rio de Janeiro.
Mas vir trabalhar em Porto Alegre não era o que Tenório queria. Quando estava envolvido na obra do monotrilho em São Paulo, tirou férias na tentativa de escapar da escalação para a nova ponte do Guaíba. Não se animava com a ideia de vir morar no Sul e conviver com a fama de orgulhoso dos gaúchos. Achava que a empresa poderia "esquecê-lo". Tentativa frustrada. Foi chamado para vir e, resignado, desceu para o Sul de carro. Antes de chegar em Porto Alegre, parou em Gramado:
– Quando comecei a passar pela Serra, imediatamente mudei de ideia e pensei: "Isso aqui é o paraíso" – recorda ele, que nasceu em Custódia, a 330 quilômetros de Recife, e hoje tem como hobby subir a Serra aos finais de semana.
Instalado na Capital com a companheira, Tenório participou da fundação da primeira estaca, em 2014, e só vai embora depois da pintura da faixa. Dentro do canteiro, é uma referência. É encarregado especial, uma espécie de mestre de obras que chefia as frentes de serviço que trabalham com aço e concreto. Ele sabe o que está acontecendo em todo trecho e comanda uma equipe de 430 colaboradores. Em 50 minutos de conversa com a reportagem, os dois celulares de Tenório tocaram pelo menos 15 vezes. De todo ponto da obra, operários o procuram.
– Eu gosto muito do serviço, para mim é uma terapia andar no canteiro, me sinto em casa. E entregar a obra é gostoso demais. É um prazer passar por cima de uma obra que a gente construiu.
Ainda que tenha vasta experiência no ramo, Tenório afirma que a nova ponte do Guaíba tem sido um aprendizado:
– O diferencial dessa obra é que ela é sem escoramento, com peças pré-moldadas. Tem peças de pesam 120 toneladas, outras 10, tem guindastes para movimentar essas peças de 350 toneladas, de 280 toneladas. É a montagem de um quebra-cabeça.
Enérgico, Tenório pretende trabalhar por mais sete anos até se aposentar. Formou um filho engenheiro civil, de 35 anos, e outra em odontologia, de 24 anos. Agora sua meta é diplomar o último, com 13 anos.
Ao concluir a ponte, para se despedir do Sul, pretende viajar até a Argentina de carro.
– Não queria vir, agora vai ser difícil ir embora.
Rayane: de olho na segurança de todos
Rayane Cordeiro, 29 anos, técnica em segurança do trabalho e auxiliar de engenharia, de Capão da Canoa (RS)
Técnica em segurança do trabalho e auxiliar de engenharia, Rayane Cordeiro, 29 anos, enfrenta seu maior desafio profissional. Também pudera: a jovem de Capão da Canoa, desde os 18 anos na Queiroz Galvão, é uma espécie de xerife da obra. Em um canteiro que atualmente tem 780 colaboradores, mas já chegou a ter 1,2 mil, ela faz parte da equipe que precisa prever e se adiantar a todos os riscos aos quais os trabalhadores podem estar submetidos.
– Precisamos pensar sempre à frente da produção. Em todas as etapas, tivemos que estudar muito. No Brasil, não há muitas obras em água, então nos exigiu muito como profissional. Antes de a equipe ir a campo, colocamos tudo no papel e avaliamos o que pode acontecer. A ideia é estarmos sempre prevenidos – afirma ela, que está cursando o sexto semestre de Engenharia Civil.
A técnica passou por treinamentos para resgate em água e socorro em altura – nenhum precisou ser utilizado até agora. Desde setembro do ano passado, a obra não registra acidentes de trabalho.
Rayane começou a carreira na duplicação da BR-101, nos túneis de Morro Alto, em Maquiné. Hoje, mora em Canoas em um residência com outras colegas da empresa. Em campo, Rayane é a única mulher da equipe de seis pessoas que compõem o corpo técnico de segurança do trabalho. Na rotina, observa a conduta profissional de um time de profissionais que é majoritariamente masculino – mais de 90% dos profissionais atualmente envolvidos na obra são homens.
Admite que seu jeito "um pouco mandona" ajuda e que sua chegada nas frentes de serviço muitas vezes é anunciada com antecedência:
– Acontece, às vezes, de eu estar chegando e o encarregado avisar o pessoal que lá vem problema – diverte-se.
Das 7h30min até as 18h, a missão de Rayane é evitar que qualquer funcionário se coloque em risco. Então, nada pode escapar ao olhar dela:
– Sou educada, chego com jeitinho, não gosto de reprimir ninguém na frente dos outros nem fazer explanação para todo mundo ver. E todos atendem muito bem. Não reprimo, sei conversar, tento conhecer a pessoa, entender a cultura e o que está se passando. Me comunico com facilidade. O mais enriquecedor são as histórias que cada pessoa traz.
A experiência de Rayane já permite que ela perceba a diferença cultural no momento da abordagem: os trabalhadores que vêm do Norte e do Nordeste são, em sua maioria, mais receptivos aos conselhos e aceitam mais as orientações de conduta, enquanto os gaúchos, mais arredios, costumam ser os mais resistentes:
– O mais importante é o trabalhador respeitar o risco a que ele pode estar exposto.
Luciano: sem espaço para erro
Luciano Gomes Mendonça, 41 anos, encarregado de topografia, de São Luiz Gonzaga (RS)
Luciano Gomes Mendonça, 41 anos, é responsável por implantar no campo o que está no projeto. Formado em técnico em estradas pela Escola Técnica Estadual Parobé, de Porto Alegre, o gaúcho de São Luiz Gonzaga trabalhou na obra da BR-448, a Rodovia do Parque, e hoje é encarregado de topografia da nova ponte do Guaíba. A equipe comandada por ele faz com que a obra fique exatamente no local que deve estar. Coordenam a alocação de cada peça da obra para o ponto exato.
Antes da ponte do Guaíba, Luciano trabalhou nas obras de mobilidade urbana no entorno da Arena das Dunas, em Natal (RN), onde morou por um ano. Segundo ele, o diferencial do trabalho atual é o uso da tecnologia, desde a cravação das estacas até o emprego de guindastes imensos e equipamentos importados.
Topógrafo há 21 anos, Luciano vive com a esposa e a filha de 22 anos na zona sul de Porto Alegre e tem uma relação diferente com a obra dos demais colegas que vêm de outras regiões do País:
– Eu vejo o quanto a obra vai melhorar a vida das pessoas. Vejo, uso e respondo pela obra para os amigos que reclamam quando a freeway para por causa do nosso trabalho – brinca.
O trafego na rodovia precisou ser interrompido em algumas madrugadas dos meses de agosto, setembro e outubro do ano passado e duas vezes em finais de semana de fevereiro deste ano.
Luciano entende que o ponto mais crítico da obra é a extensão do trecho de 600 metros entre a freeway e a Ilha do Pavão, onde a ponte é mais elevada – são 50 metros de altura entre o canal de navegação e a ponte. O encaixe das peças pré-moldadas demanda precisão total da equipe de topografia e controle de fatores externos como o vento:
– É uma obra que tem que ter muito cuidado. Não tem espaço para erro. Essa fase final é a mais desafiadora. Agora temos que redobrar a atenção. No início, pode ter um ou outro equívoco e tem como consertar. No final, não tem mais.
O trabalho de Luciano é perseguir a perfeição no detalhe. Sua equipe precisa controlar, inclusive, o ponto exato em que a balsa para no rio enquanto a movimentação das peças é feita. Outro ponto complexo, lembra Luciano, foi a alocação de vigas imensas sobre a freeway, onde foram necessários usar dois guindastes para movimentar uma única peça. Não é à toa que não disfarça a satisfação em ter a ponte do Guaíba no currículo:
– É um orgulho trabalhar numa obra dessa magnitude, é algo imponente. Quem ajudou a fazer sabe a importância de ter participado de uma obra dessa.
Gil: o conquistador de sonhos
Gil de Souza Menes Neto, 36 anos, eletricista corrente alternada de Brasileira, Piauí
O piauiense Gil de Souza Menes Neto, 36 anos, tem sofrido com o inverno gaúcho. Também sente saudade da família, que vive no interior de Brasileira, cidade que fica a 200 quilômetros de Teresina. Ainda assim, não se abate. Gil trabalha para realizar sonhos e é focado.
Quando ainda estudava e trabalhava com o pai na roça em Brasileira, almejava ir para o sudeste do país atuar na construção civil. Conseguiu. Há 14 anos no ramo, participou de construções como a do Rodoanel Sul, em São Paulo, e da Linha 4 do metrô do Rio de Janeiro.
Parte do salário que recebe com a obra da Ponte do Guaíba vai para a família. Há cinco anos, está erguendo uma casa com churrasqueira e piscina para os pais morarem na zona urbana de Brasileira. A ideia é dar mais conforto a ambos. Ele espera concluir a construção em um ano. Também entrou no consórcio para comprar uma motocicleta, que vai retirar no Piauí:
– Cada obra que eu vou, eu conquisto um sonho – diz ele.
No período que trabalhou na Linha 4 do Rio, Gil conseguiu comprar uma área de 95 hectares em Brasileira para criar gado.
Para o eletricista, acostumado à temperatura de Brasileira, que chega com facilidade aos 37° C, nada demanda mais esforço do que sair da cama, todos os dias, para estar às 7h30min no canteiro:
– Levantar cedo nesse frio é difícil, coloco duas jaquetas, duas calças. Na beira do rio, é pior ainda – conta ele, com semblante de quem não está em vias de se acostumar com o inverno gaúcho.
Como não podia ser diferente, para Gil, o trecho mais difícil de trabalho é em água. Ele ajeita extensão, conserta equipamentos e faz academia para ter disposição física cumprir todas as atividades.
– Dos meus 14 anos de trabalho em obra, essa é a mais difícil da qual fiz parte. E fico muito feliz em vê-la quase pronta. Não vejo a hora de observar os carros passando sobre a ponte. E vou poder dizer que consegui terminar minha casa e comprar uma moto graças a ela.
Depois da temporada entre os cariocas, afáveis e inclusivos, Gil estranhou o modo mais sisudo e desconfiado do gaúcho. O sotaque carregado do piauiense não passa despercebido:
– Aqui entro em qualquer farmácia e me perguntam: "Da onde tu é?". Com todo respeito: sou brasileiro – responde.
Ainda assim, derrete-se ao elogiar nosso churrasco:
– Se espeta a costelona, deixa ela assar e fica só acompanhando. Nunca tinha visto isso!