Devoção
Histórias de trabalho e fé: conheça quatro pessoas que ajudam a fazer a Festa de Navegantes
Gerson, Elsa, Carmen e João representam uma pequena multidão que doa seu tempo e habilidades em prol da mãe de Jesus
A Festa de Nossa Senhora dos Navegantes exige não apenas fé, mas também trabalho incondicional. Para fazer o mais tradicional evento religioso de Porto Alegre, que espera mais de 100 mil pessoas apenas neste domingo (2), cerca de 200 voluntários doam seu tempo, paciência e talento. Eles não descansam até que a última bênção seja dada no santuário que homenageia a Santa, na zona norte da Capital.
Às vésperas da procissão (confira abaixo o serviço), Diário Gaúcho conta a história de quatro pessoas com trajetória de devoção e de serviço à mãe de Jesus:
Terceira geração de uma homenagem
Um tapete de hortênsias aguardava Nossa Senhora dos Navegantes na saída do santuário. Sobre ele, os remadores ergueram a imagem nos ombros e começaram a procissão da Avenida Sertório até a Igreja do Rosário, no Centro Histórico, no dia 19. É nessa hora que o analista de laboratórios Gerson Vargas Galdino, 49 anos, lembra da avó, da mãe, da madrinha — já falecidas — e de todos que, ao lado dele, curvaram-se alguma vez sobre o asfalto para espalhar flores no chão.
O tapete é uma tradição da família Galdino. Começou há mais de 70 anos com dona Carlota, que passou a responsabilidade ao neto. À época, ela colhia aguapés no Guaíba. A cidade cresceu, a freeway e os trilhos do trem empurraram o Guaíba para longe, e Carlota mudou a matéria-prima para a flor da estação, usada até hoje.
— Batíamos de porta em porta, pedindo hortênsias dos jardins dos vizinhos — recorda Gerson.
Há dez anos, a família busca as flores em um sítio em Santa Maria do Herval. No domingo em que a ocorre a primeira procissão, que dá início à programação da festa, saem às 7h de Porto Alegre para colorir a caçamba de um caminhão de azul e branco. Começam a trançar as flores sobre pavimento com o sol alto: vão acomodando os ramos no chão até finalizar o tapete de dez metros de comprimento e cinco de largura. Quando velhinha — faleceu com 94 anos —, Carlota acompanhava a confecção do tapete sentada em uma cadeira de praia, ao lado deles.
Gerson não se contenta apenas com essa missão: ajuda como pode na festa. Enquanto distribuía fitas azuis com o nome da Santa, no centro de Porto Alegre, tentou explicar à reportagem o tamanho da devoção.
— Devo minha vida a ela. Meus amigos, que sabem que eu tenho essa fé, pedem: "Gersão, reza para mim". Eu digo: "pode deixar, confia nessa mãe". As coisas são difíceis, mas se tu pedir, pedir com fé, consegue alcançar.
Bênção maior vai ser se os filhos Felipe, 6 anos, e Daniel, 2 anos, quiserem seguir seus passos no futuro.
— Isso veio da minha avó, passou para o meu pai e tios, para mim, e eu gostaria que continuasse. Para que quando eu estiver do lado dela — diz Gerson, apontando para a imagem de Nossa Senhora — a tradição continue aqui.
O comandante da procissão
Com uma mão na proa do barco de Nossa Senhora, João Seberino, 59 anos, aponta com a outra a direção pela qual os remadores devem carregá-la. Durante as duas semanas do evento, é do padeiro a responsabilidade de coordenar o deslocamento da Santa — seja na procissão à Igreja do Rosário, no caminho inverso até a Zona Norte, ou, como naquela quarta-feira, na visita que a imagem fez ao Largo Glênio Peres para se aproximar dos fiéis.
Com regata azul, calça branca e, nas procissões oficiais, quepe de marinheiro na cabeça, ele é o comandante do andor há quatro anos. Mas já carrega a Santa há 40, por água ou, nos últimos anos, por terra.
— Eu vou dirigindo os remadores, revezando eles, e, quando precisa, carrego também. Não cansa não: a adrenalina fica alta, tu supera o peso. Não sente dor.
O semblante permanece sério, mas ele admite que, por dentro, é virado em emoção. É devoto dela ao longo dessas quatro décadas que participa da procissão.
— Só peço saúde e paz.
Na procissão de domingo, devem ser 120 pessoas carregando a Santa entra a Rua Vigário José Inácio e a Avenida Sertório. Cerca de 30 mulheres e 90 homens vão se revezando para levar o barco de madeira com a imagem vinda de Portugal. Como muitas pessoas deixam medalhas, orações, objetos pessoais, flores, velas, a estrutura pode pesar até 700 quilos.
No trajeto de cerca de cinco quilômetros, revezam-se pessoas de 20 e poucos anos e gente de 87 — hoje, a maioria já não é mais composta por praticantes do esporte, mas todos seguem sendo chamados de remadores.
Aos 30 anos, o sobrinho de João fez a estréia este ano. Já era uma reivindicação antiga do familiar, mas João queria que estivesse pronto. Acredita que se juntar a esse grupo deve representar um compromisso. É preciso carregá-la sob sol forte, chuva ou temporal, como ele já fez muitas vezes.
— Se a pessoa não tem fé, ela não fica. E isso, eu tenho demais.
A guardiã de Nossa Senhora
Para os organizadores da Festa de Nossa Senhora dos Navegantes, a função da servidora pública Carmen Vera Lopes da Silva, 63 anos, é denominada "coordenadora do andor". Mas, na prática, ela é uma espécie de guardiã da imagem de Nossa Senhora. Está sempre ao lado da escultura de madeira de 1m50cm, zelando para que nada lhe aconteça e servindo também de ponte com os fiéis.
Junto a outras coordenadoras, é a ela que os fiéis entregam objetos para a Santa abençoar — em um evento que reúne dezenas de milhares, não é permitido chegar muito perto ou encostar na imagem. Carmen segura desde chaves, capacetes, crucifixos, fotos de pessoas doentes até artefatos mais curiosos, como mechas de cabelo. Leva o objeto até Nossa Senhora, segura-o perto do manto azul por alguns instantes e faz a oração em nome do dono. Também recebe no colo bebês com apenas semanas de vida. Coloca eles sobre o barco da Santa.
— Eu faço uma oração muito forte, pedindo a Nossa Senhora que transmita àquela pessoa amor, serenidade, paz, humildade, o trabalho que está pedindo, a bênção de saúde que está pedindo. Com certeza, Nossa Senhora escuta, e milagres são feitos.
Desde o dia 10, era também dela a responsabilidade de fazer plantões de oração no Santuário de Nossa Senhora dos Navegantes. Tanto de manhã, quanto à tarde, tinha grupos rezando o terço junto à imagem.
Carmen interrompe a conversa com a repórter para mostrar, na tela do celular Motorola, uma foto que tirou em um dos raros momentos em que ficou longe de Nossa Senhora. Fez o registrou na saída da imagem do santuário da Sertório para a procissão até a Igreja do Rosário. Mostra que, ao redor da Santa, o céu parece mais claro, o que acredita ser a delimitação da aura da mãe de Jesus. Chama atenção também para o fato de as árvores parecerem continuação do barco.
— Mostrei para o padre. Ele disse que fui abençoada — conta, animada.
Uma vida de devoção
Há três meses na cama, com dores horríveis na coluna, Elsa Anna Paz da Silva, 91 anos, teve uma conversa franca com Nossa Senhora dos Navegantes no ano passado:
— Pedi para ela que me desse saúde ou que me levasse.
Dona Elsa tem certeza de que foi ouvida. Fez uma cirurgia, tratamento de fisioterapia e entrou caminhando na missa que deu início à festa da mãe do céu no dia 19, na Avenida Sertório.
A costureira aposentada trabalha há décadas em prol do Santuário de Nossa Senhora dos Navegantes. Nos galetos da igreja, era dela o molho servido sobre o macarrão — receita ensinada por uma italiana. Também já foi responsável pela venda de pastéis.
Em razão da idade, já não participa mais da organização da festa, nem acompanha a procissão. Mas não quer dizer que ficou de braços cruzados: bordou e fez crochês em panos de prato que serão vendidos em prol da igreja junto à banca de artesanatos no domingo.
— Tudo o que eu fiz foi com alegria, com amor — relata a senhora de voz calma e cabelos brancos.
Natural do interior de Taquara, no Vale do Paranhana, morando desde os 14 anos na Capital, Elsa passou a ser devota no seu casamento, realizado no santuário em um sábado de sol de 1948 — conheceu o marido, já falecido, em uma quermesse, quando tinha 18 anos. Fez bodas de prata e de ouro nessa mesma igreja. Foi convidada pelo padre a trabalhar pela paróquia quando a filha, que hoje tem 67 anos, nasceu.
Dona Elsa vai à missa toda semana e reza o terço todo dia — ela o leva na bolsa. É um objeto azul que, calcula, tem mais de 50 anos.
— Ela tem uma fé... que a tirou da cama. Tá aí, firme e forte — diz a filha Sonia Eliane Paz da Silva, 67 anos, ressaltando a lucidez da mãe na casa dos 90 anos.
O segredo de Elsa bem parece inspirado na santinha.
— Tem que querer bem as pessoas e rezar.
Serviço
A 145ª procissão de Nossa Senhora dos Navegantes ocorre neste domingo (2). Reconhecida como o mais tradicional evento religioso da Capital, é também uma das maiores procissões da América Latina. Milhares de pessoas são esperadas para acompanhar o traslado da imagem após a Missa de Despedida na Igreja Nossa Senhora do Rosário, na Rua Vigário José Inácio, Centro Histórico, onde a Santa está desde o 19 de janeiro.
A celebração terá início às 7h e será presidida pelo pároco do Santuário do Rosário, padre Gelson Luiz Fraga Ferreira. Como em outras edições, a procissão deve partir às 8h em direção ao Santuário de Nossa Senhora dos Navegantes, na Avenida Sertório, bairro Navegantes.
Dez bancas de alimentação estarão à disposição, assim como uma loja de artigos religiosos voltados à fé e oração, como terços, santinhos, imagens, escapulários, medalhas, velas, entre outros.
Às 20h, ocorre a entronização da Imagem para o Altar da Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes, onde ficará por mais um ano abençoando a comunidade da Capital.
Ajuda financeira
Sem recursos públicos ou patrocínio para a festa, a Irmandade de Navegantes criou um crowdfunding. Esse recurso também será reservado para o restauro do Santuário de Nossa Senhora dos Navegantes, que precisa de reformas na estrutura de telhado, paredes e pisos. A obra orçada e licitada soma R$ 500 mil. As contribuições são feitas pelo site www.doa.la/navegantes2020.