No caminho da pandemia
Com pouco ou nenhum trabalho, moradores da periferia ficam ainda mais expostos ao coronavírus
Reportagem encontrou pessoas sem dinheiro para comprar alimentos para os filhos nem informação para se proteger do vírus que já matou mais de 1,5 mil brasileiros
Diarista que atualmente anda "sem nada de faxina", Luciane Nunes do Nascimento, 51 anos, hesitou em responder à pergunta sobre os itens alimentícios disponíveis em sua despensa no momento.
— Hoje, não tem quase nada — revelou a mãe de Gabrielle, 13 anos, e Luci, 12 anos.
Diante da insistência da reportagem para que especificasse o que restava, a moradora da Restinga, na zona sul de Porto Alegre, desviou o olhar antes de informar.
— Açúcar — disse Luciane. — Assim, de quilo, açúcar — esclareceu.
Os R$ 172 do Bolsa Família compõem a base da renda familiar das três. Sem chamados para limpezas domésticas, Luciane arrumou outro bico: cuida do filho de uma vizinha, funcionária de um supermercado, por R$ 150 mensais. De resto, pede ajuda a parentes e vizinhos. No último final de semana, pensando nos preços que não param de subir no supermercado, acreditou ter tido uma boa ideia para conseguir mais alguns trocados: comprar e revender ovos.
Na segunda-feira (13), equipes de GaúchaZH circularam por quatro bairros da periferia de Porto Alegre para verificar se as determinações para distanciamento social e funcionamento de serviços estão sendo cumpridas e para saber como os moradores estão enfrentando a crise decorrente da pandemia de coronavírus. O cenário que se apresentou foi de filas de centenas de pessoas em frente a lotéricas e agências da Caixa Econômica Federal (CEF) – sem que elas guardassem a distância segura mínima entre si –, grupos de jovens em praças, vizinhos conversando, baixíssima incidência de uso de máscaras e intenso fluxo de carros e pedestres. Um veículo da Guarda Municipal foi avistado em circulação uma vez, na Lomba do Pinheiro, na Zona Leste, divulgando, em alto-falantes, o apelo para que a população fique em casa. Enquanto para muitos o período de restrição de movimentação social é de teletrabalho, aulas online, lazer e até de certo tédio, para a parcela mais pobre, a calamidade sanitária impõe a brutalidade das urgências.
O perigo extra da desinformação
A diarista Luciane sofre com a sobrecarga de prover mais comida, uma vez que as filhas não estão frequentando a escola, onde contavam com a merenda. Enquanto aguardava em frente a uma agência da CEF para receber o auxílio emergencial do governo, Luciane contou que elas vêm conseguindo tomar café da manhã e almoçar – e a frase terminou em reticências, sem listar outras refeições no dia. Às 10h de segunda-feira (13), a diarista ainda não sabia o que ofereceria às meninas dali a pouco:
— Para o almoço, vou ter que dar uma esquematizada.
Os pontos mais carentes da cidade sofrem também com outra chaga: a desinformação. Na mesma fila em que Luciane aguardava a abertura do banco, mais de uma centena de pessoas se perfilava – não chegava a 10 o número de máscaras de proteção nos rostos. Crianças, sem ter com quem ficar, acompanhavam os pais. Um menino de dois anos, entediado com a demora, recostava-se em um corrimão – por vezes, botava a boca na estrutura metálica. O contato com superfícies potencialmente infectadas, em especial aquelas que são tocadas por muita gente, é um dos maiores riscos para o contágio pelo coronavírus.
Atendente de um precário bar na Lomba do Pinheiro, na Zona Leste, Pedro Neu, 56 anos, vende cerveja e refrigerantes. A maior parte dos clientes compra bebidas para levar. Quando alguém paga e já quer sair tomando, Neu oferece um copo plástico ou "passa uma aguinha" na lata. Apesar da boa vontade do comerciante, sem um descontaminante como sabão ou álcool, a medida é inócua.
A remuneração do fucionário informal, que pernoita em um sofá-cama dentro do armazém, varia entre R$ 100 e R$ 200 semanais, de acordo com o faturamento do patrão – nas últimas semanas, as vendas despencaram, e há dias em que o caixa só recebe os R$ 10 ou R$ 12 de um litrão.
— Isso aí foram os poderosos que fizeram, e quem paga somos nós — comentou Neu, sobre a pandemia. — Com medo todo mundo fica, mas se tiver que ter doença... Tô por Deus. Paciência.
Desempregado e com um filho a caminho
No Rubem Berta e no Sarandi, na Zona Norte, bairros mais populosos de Porto Alegre, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), também são evidentes as dificuldades para manter o distanciamento e os desafios na busca pelo sustento diário. Morador de um dos prédios do antigo Conjunto Habitacional Rubem Berta, Erinc Oliveira, 25 anos, era motorista de uma empresa de colchões em Canoas, na Região Metropolitana. Com a redução da demanda, Erinc não foi mais chamado para realizar entregas. Enquanto conversava com a reportagem, sua situação piorou: descobriu que a empresa o dispensou para não ter mais de pagar as duas passagens que ele utilizava para chegar ao trabalho.
Desde o início da pandemia, Erinc sobrevive com o salário da esposa, assistente administrativa que está grávida do primeiro filho do casal. O dinheiro também sustenta os dois irmãos menores dela, todos vivendo em um apartamento de dois quartos. Gastos considerados supérfluos foram cortados, e a alimentação passou a ter os pratos mais baratos possíveis.
— A preocupação está gigante. Nosso bebê está chegando, as contas estão batendo na porta. O que compramos de comida antes está se indo — lamentou o desempregado.
Erinc é mais um brasileiro que tenta conseguir o auxílio emergencial de R$ 600. Até segunda-feira, o pedido dele ainda estava sob análise da CEF. Enquanto isso, parentes, além do pouco dinheiro que sobrou, têm ajudado a família a seguir em frente. O pagamento do aluguel e de outras contas tentará ser negociado. O jovem vem evitando sair para não aumentar o risco de infecção, mas pretende percorrer postos de gasolina para distribuir currículos e tentar uma vaga como frentista, função que já desempenhou:
— O que aparecer, vou agarrar.
Não há nem lixo para recolher
Em uma das áreas mais pobres da Capital, a Vila Dique, no Sarandi, o reciclador de lixo Valdenir Macedo da Silva, 56 anos, viu sua arrecadação cair para menos da metade desde o início da crise. Antes, ele passava o dia nas proximidades de indústrias coletando caixas de papelão, ferro e garrafas para vender. Com as empresas fechadas, ele não tem mais o que recolher.
— Eu já quebrei. Fiquei a zero. Minha caminhonete estragou e não tenho dinheiro para arrumar. Estou reciclando só o que os outros me trazem — contou.
Em tempos bons, Valdenir conseguia quase R$ 3 mil mensais. Agora, não obtém nem R$ 800, valor insuficiente para as despesas com os sete filhos, a residência humilde e o pagamento de pensão a duas ex-mulheres. Enquanto almoçava arroz requentado da véspera e um ovo frito, o reciclador contou que ainda tinha um saco daquele cereal e outro de feijão, mas não sabia por quanto tempo teria comida, mesmo racionando as porções:
— Se continuar assim, já não sei se vou conseguir comprar o que comer na semana que vem ou na outra.
Contatada por GaúchaZH, a prefeitura da Capital informou que a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) tem entregado cestas básicas nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e nos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) nas regiões de menor Índice Desenvolvimento Humano (IDH), as mais pobres. "As pessoas que estão passando por dificuldades podem buscar o Cras da sua região. Podem entrar em contato por telefone, sem necessidade de deslocamento. Importante que o contato seja feito via telefone para evitar aglomerações", orientou, por meio de nota. De acordo com a administração municipal, os Serviços de Atendimento à Família (SAF), em parceria com a prefeitura por meio de organizações da sociedade civil, também estão realizando atendimentos emergenciais.
Para contatar os serviços da prefeitura:
- Cras Restinga - ampliado: 3250-6700
- Creas Norte/Noroeste: 3364-6671
- Cras Timbaúva: 3366-1011
- Prefeitura: 156