Final feliz
"Não senti medo porque estava com meu cão, meu amigo", diz caseiro resgatado após 10 horas na mata em Porto Alegre
Sérgio Sebastião Pires, 67 anos, perdeu-se em área alagada da Zona Sul e foi encontrado por um cachorro dos bombeiros
Há seis décadas, quando brincava com os cinco irmãos em uma propriedade rural na Lomba do Pinheiro, Sérgio Sebastião Pires acreditava conhecer a mata. Passava o dia entre as árvores, contrariando os alertas da mãe sobre os perigos de se perder - fosse sozinho, fosse com as namoradas da adolescência. Na madrugada desta terça-feira (16), ele precisou ser resgatado pelos bombeiros após 10 horas em meio ao breu, dentro de uma área alagada por uma sanga, no matagal próximo ao sítio em que trabalha, no bairro Aberta dos Morros, zona sul de Porto Alegre.
– Eu via luzes dos carros bem longe, gritava, mas ninguém me ouvia. “Vou morrer”, eu dizia. E aí me dei conta que o celular estava no casaco, eu que nunca saio com o telefone - relembra o idoso de 67 anos.
O telefonema para o número de emergência 190 foi dado à meia-noite, quando percebeu que não sairia daquela situação sozinho.
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Entre as 18h da tarde passada e as 4h desta terça, o inseparável pitbull Thor manteve a calma do companheiro, sem abandoná-lo em nenhum momento. De volta à casa mista de telhado de barro - da qual é responsável pela manutenção, em uma espécie de sede campestre de uma construtora -, primeiro Pires preparou um leite morno para o amigo. Só depois tomou o seu café com biscoitos.
– Estava com muito frio no corpo, principalmente nos pés, mas não senti medo porque estava com ele. É meu amigo, meu filho, um cão especial - elogia Pires.
Thor ignorou a presença da reportagem de GaúchaZH, incômoda a outros dois animais, a Nega e o Soneca, que latiam presos na garagem.
Calçando apenas chinelos de dedo, nos 12ºC desta manhã, Pires contou como se manteve durante as tentativas de sair do local pantanoso. Enquanto o dono relembra a aventura, Thor deitou ao seu lado e, em seguida, pulou sobre o colo do tutor. Como se ainda fosse um filhote, distribuiu lambidas.
Nas mãos ainda sujas de terra, a jaqueta de couro “nem tão velha”, como explicou, terá que ser descartada, pois fora destruída pelos espinhos-de-maricá, arbustos que o idoso teve de enfrentar.
Mecânico na vida adulta, o caseiro vive atualmente sozinho no sítio. Os seis filhos e vinte netos, espalhados pelos mais distintos bairros da Capital, o visitam com pouca frequência. A calma da vida no campo o motivou a deixar os motores de lado, na oficina em que atuava.
A região e a idade do homem procurado foram fatores de preocupação para o soldado Tiago da Rosa Ferreira, 39 anos, integrante da Companhia Especial de Busca e Salvamento dos Bombeiros. Acionado por volta de 0h30min, o militar e os colegas - humanos e caninos - foram à zona sul na tentativa de auxiliar as outras equipes de resgate. Enquanto parte dos socorristas conversava com o caseiro ao telefone em busca de referência para sua localização, o labrador da corporação rumou para outra área, com exatidão.
– A área estava muito alagada, seu Sérgio não conseguiria sair sozinho, ainda mais com o frio, que o estava debilitando muito - relembrou o soldado.
Ao ouvir o bombeiro gritar “Thor”, seu Sérgio ficou confuso.
– Como ele sabe o nome do meu cachorro? Aí me dei conta, o cão deles também se chama Thor - conta o idoso, com sorriso ainda incrédulo pela coincidência.
O “Thor Militar” é um dos tantos cães treinados desde o primeiro mês para esse tipo de socorro, segundo o soldado Ferreira. O animal tem na família outro herói, o filho Barão, integrante das equipes gaúchas que auxiliaram nas buscas da tragédia de Brumadinho, em Minas Gerais.
Saudando insistentemente os bombeiros, os quais definiu como “anjos”, o caseiro foi atendido pelo Samu - junto ao cão da guarda, deitado na maca da ambulância.
– Salvaram a minha vida, buscando um velho no mato. Não tenho palavras. Eles arriscam a vida pelo bem da sociedade - complementou.
As dificuldades enfrentadas pelos bombeiros durante o resgate foram ignoradas nas horas de busca.
– Só senti cansaço quando cheguei ao quartel, às 5h. Eu só posso agradecer esse carinho de seu Sérgio conosco. Ajudar os outros é o que me gratifica - agradece o soldado.
Mesmo com o susto vivido, o caseiro afirma que não vai deixar de circular entre as árvores e rios dos caminhos rurais de Porto Alegre. Com um porém:
– Na próxima eu levo um facão e uma lanterna. E se possível vou ainda de dia - brinca, observado pelo pitbull, que não parece concordar com a ideia.