Lá em Casa
Cris Silva: "Com vocês, a Mirian"
Colunista escreve sobre maternidade e família todas as sextas-feiras
Faz tempo que eu quero trazer aqui para a coluna temas ligados à inclusão social, seja a inclusão que for. Me vejo no dever de falar sobre isso aqui, mas confesso não me sentir autoridade no assunto. Então, a partir de hoje, vocês vão conhecer histórias de pessoas que vivem, que passam perrengue e tentam – muitas vezes, sozinhas – driblar os obstáculos da exclusão social.
Hoje, a coluna é escrita por uma das mulheres que virou uma inspiração para mim. Eu tenho o prazer de apresentar para vocês, a Mirian Victorio, mãe do Miguel.
Quem sou
Eu sou a Mírian e vou falar um pouco do meu “maternar atípico”. Moramos em Pelotas, zona sul do Estado, mas vim do interior de São Paulo há seis anos e meio. Sou casada com Sandro Kruger. Minha gravidez foi desejada. Tirando a pressão alta, ocorreu tudo bem.
Foi uma gravidez um tanto solitária, meu esposo trabalhava fora. Ele é um marido e pai prestativo, mas, por conta do serviço, tem pouco tempo em casa. Não tive mãe, sogra ou amiga que me ajudasse, talvez fosse o destino me preparando para os imprevistos. Hoje, sei que instinto materno existe. Trocar fraldas? Identificar choro, será cólica ou fome? Tudo eu descobri sozinha.
Os primeiros meses do Miguel foram dentro do esperado. Sentou com quatro meses e meio, ficou de pé segurando nos móveis aos sete meses, com um ano e um mês deu os primeiros passinhos. Ele estava com um ano e meio quando começamos a notar algo diferente: Miguel não falava, enquanto as crianças da idade dele já soltavam muitas palavrinhas. Escutava duas vozes na minha cabeça: uma dizia que aquilo não era comum, e a outra, que era o tempo dele. Além de não falar, Miguel não nos olhava, não atendia o próprio nome e não interagia com outras crianças.
O diagnóstico
Todos à nossa volta diziam ser normal. A frase que mais ouvi foi: “Cada criança tem seu tempo”. Realmente, é isso, mas existe algo que se chama “Marcos do Desenvolvimento”, ou seja, não precisa ser seguido à risca nem se assustar quando algo não acontecer no tempo, mas, se houver atrasos, é sempre bom observar. Se for o caso, procurar o pediatra – ele saberá o que fazer.
Aos dois anos, Miguel ainda não falava, olhava. interagia ou apontava. Nesse momento, o “cada criança tem seu tempo” não colava mais, o “ele tem gênio forte” soava estranho. Então, pedi ajuda ao pediatra, que o encaminhou ao neurologista para avaliar.
Encaminhado à Apae. Miguel passou por vários profissionais. Cinco meses de avaliação.
Até que, numa tarde ensolarada, nos chamaram, só eu e Miguel. Coque no cabelo, legging preta, tênis no pé e Miguel, como sempre, sorridente e alheio a tudo. Assim, sem cerimônias, ouvi:
– Mãezinha, seu filho é autista.
Pouco tempo de atendimento
Na minha cabeça, as palavras passavam em câmera lenta. Não disse nada, só sei que meu olhar ficou perdido. Até que Miguel tocou em minhas mãos, eu o olhei e, depressa, ele me olhou de volta, como se soubesse. Não sei explicar, naquele momento só tinha nós dois naquela sala. Pensei: “Por que estou me martirizando?”. Meu esposo e eu não encaramos o laudo como o fim, mas sim como um recomeço. Era a resposta para as nossas perguntas.
A partir dali, nós sabíamos por que ele não falava ou interagia, sabíamos por que ele era diferente. O laudo foi um norte e o início da nossa jornada. Eram tantos atrasos e poucos recursos e atendimento – quase nada, pra ser sincera. Miguel começou as terapias aos dois anos e cinco meses.
Eram 30 minutos semanais, e deveriam ser, no mínimo, oito horas. Sem contar que muitos atendimentos nem vaga tinham, como fonoaudióloga. Miguel não falava absolutamente nada, nem sílaba. Eu precisava ajudá-lo. Eu era (sou) desempregada, estudei até a oitava série do fundamental, tudo torcia contra, mas eu precisava ajudá-lo, como?
As marcas e logotipos
Foi com escorredor de massa e espaguetes crus que fiz a primeira atividade em casa, e os meses foram passando. No gira-gira da pracinha da rodoviária, ensinava a ele as cores. Os três anos chegaram e, com eles, as primeiras sílabas. Miguel já começava a interagir.
Depois de um ano da inscrição, foi chamado pelo Centro de Atendimento ao Autista de Pelotas. Miguel foi acolhido, eu fui acolhida, ensinada, as professoras foram (são) muito parceiras, mas o tempo ainda era pouco: 45 minutos, duas vezes por semana.
Miguel já frequentava a escola municipal de educação infantil, mas não acompanhava os colegas. Tinha (tem) um hiperfoco – interesse intenso em determinado assunto, tema ou pessoa. O dele é por logotipos. Então, comecei a adaptar as atividades, e a escola seguia o mesmo ritmo. Um dia, a queridíssima professora Tatiane colou um adesivo de uma marca de tênis na mesa. Foi a primeira vez em que ele sentou com os amiguinhos, aos quatro anos.
Descobri que a reciclagem transforma. Eu criava (crio ainda) material pedagógico e brinquedos com papelão para o Miguel, e deu certo. Transformei o mundo dele, e ele transformou o meu.
Miguel, hoje
Ele tem cinco anos e quatro meses. Já lê, fala, brinca. Me olha, me chama de mãe, atende quando o chamo. As terapias seguem escassas. Com a pandemia, desde março ele está sem e regrediu em muitas coisas. O autista precisa ser estimulado, então, comecei a juntar mais papelão para criar atividades.
Pra finalizar, digo: se a vida lhe der limões, faça uma torta bem deliciosa. Falo pra mães e pais: diagnóstico não é o fim, é o recomeço. Recomeços não são fáceis, mas você decide parar ou seguir. Eu continuei e continuarei.
Para saber mais sobre a rotina da família
No @vivendo_tea lá no Instagram, confira mais sobre Mirian e Miguel.
Pérola
– Mamãe, ainda me lembro da época da minha infância.
Helena, seis anos