Reflexos do aumento
Com botijão de gás a R$ 100, famílias de Porto Alegre apelam para lenha e fogões improvisados
Moradores da Vila Cruzeiro usam madeira que acham na rua para não gastar todo o gás de cozinha
Os sucessivos aumentos do preço do gás de cozinha geram dificuldades tanto para a vida das famílias quanto para empreendedores que dependem desse combustível para manter a lucratividade. Só em 2021, já foram cinco altas no preço do gás, todas acima de 5%. A última foi repassada na segunda-feira (14) para o consumidor, de 5,9%. Pesquisa de GZH na terça-feira mostrou que o preço com a taxa de entrega, pela primeira vez, passou de R$ 100.
Os reflexos das altas em sequência são mais duros para quem já tem pouco dinheiro no dia a dia, e viram um drama num contexto de aumento de preços da comida e redução na renda das famílias . Na Vila Cruzeiro, na zona sul, moradores acabam apelando para pedaços de madeira que encontram na rua, que transformam em lenha para tentar diminuir o consumo de gás.
Aos 55 anos, Alfredo Nogueira, que trabalha na limpeza de parques para a prefeitura de Porto Alegre, usa lenha para tentar fazer com que o botijão dure ao menos um mês. Se fosse cozinhar tudo no gás, diz ele, não daria conta de comprar com os preços atuais. O salário dele, junto com os bicos que faz aos sábados e domingos, sustenta outras sete pessoas que moram na mesma casa.
Na garagem, um fogão de rabo serve para cozinhar as refeições mais pesadas, como o feijão e o aipim, que ficam mais tempo no fogo. O gás de cozinha só é usado para refeições rápidas.
— A gente economiza bastante usando a lenha. O gás não dura o mês todo, e as dificuldades que a gente está passando aumentam ainda mais, com o preço das outras coisas. Quando precisamos fazer algo mais pesado, rachamos uma lenha — explica.
O jardineiro lembra que fica ainda mais difícil comprar o gás com a alta de preços do frango, carne, ovo, gasolina e luz.
— A alta do gás está fazendo com que toda a comunidade sinta no bolso. Deveria melhorar um pouco, mas está piorando cada vez mais. O gás sobe quase todo o mês, e a refeição do dia a dia também está ficando cada vez mais difícil — lamenta o trabalhador.
Alfredo ainda acaba compartilhando a lenha que consegue com vizinhos, já que, segundo ele, não é raro outros moradores pedirem madeira para cozinhar porque estão sem gás. Ele não nega ajuda — devido ao seu trabalho, tem uma serra elétrica e, por isso, é mais fácil de conseguir cortar. Costuma também esquentar água na chaleira para outras pessoas tomarem um banho quente quando estão sem dinheiro para pagar a luz.
Vizinha de Alfredo, Elisangela Bueno Domingos, 42, também raciona o gás. Ela trabalha em uma padaria durante o dia e à noite, para complementar a renda, faz comida para fora, sendo o entrevero seu campeão de vendas. Na cozinha que fica num galpão no pátio da casa, costumava ter quatro botijões — dois em uso e dois de reserva. Desde que o preço começou a aumentar quase todo o mês, só mantém um, trocando da fritadeira para a chapa toda a vez que vai usar outro equipamento.
Ao lado da fritadeira, mantém um velho fogão à lenha que vem salvando a família. É onde a irmã, que trabalha com material reciclável, cozinha a comida das crianças.
— Está difícil. A gente está utilizando o fogão a lenha em vez do gás. Meu irmão trabalha num supermercado e traz madeira dos pallets para queimar, porque também não dá para comprar lenha, é muito caro. Se achamos alguma madeira na rua, também trazemos para casa — revela Elisangela.
Ao todo, são 13 bocas para alimentar na cozinha, já que Elisangela tem dois filhos, a irmã tem outros cinco e ainda há o irmão e o pai dela que moram no pátio. Com tanta gente, o botijão só duraria 15 dias.
Moradores da Cruzeiro, Luis Cláudio Amaro da Silva, 50 anos, que trabalha com reciclagem, e Maria de Lourdes da Silva Oliveira, 51 anos, desempregada, lembram que a última vez que compraram gás foi no mês de abril, e ele já está no fim. Quando precisam fazer alguma comida que demore mais tempo para ficar pronta, como o feijão que fizeram neste domingo (20), fazem fogo no chão, com lenha, gravetos, madeira — o que encontrarem. O botijão só será abastecido quando entrar dinheiro do auxílio emergencial, "isso se sobrar".
— Os vizinhos já reclamaram da fumaça algumas vezes, mas não temos o que fazer. Sem gás, acabamos cozinhando do jeito que conseguimos — disse Luis, que por vezes, à noite, segura a fome um pouco para esperar que os vizinhos se acomodem e durmam, aí faz fogo no pequeno pátio para preparar uma comida rápida.
— Não posso com a fumaça, ataca a bronquite. Mas fazer o quê? Temos que comer — completa Maria.
O coordenador da Central Única das Favelas (Cufa) no Rio Grande do Sul, Paulo Daniel Santos, recorda que muitas das famílias que hoje estão passando dificuldade para comprar um botijão de gás antes da pandemia tinham estrutura básica, mas viram sua renda diminuir junto com a menor oferta de emprego.
Pesquisa do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social) aponta que a desigualdade de renda proveniente do mercado de trabalho subiu a um recorde histórico no primeiro trimestre de 2021, e que a renda média da família brasileira está abaixo dos R$ 1 mil.
— A gente está falando de gente que tinha uma vida estruturada. Porteiros, vigias, pessoas que faziam serviços gerais, faxina, que por conta da pandemia perderam tudo isso. Eles se viram em uma situação de vulnerabilidade que jamais haviam visto antes — lamenta o coordenador da Cufa.
Segundo Paulo Daniel, os pedidos de ajuda de doação de botijão aumentam junto com o preço do gás:
— Quanto a gente tem o botijão de gás a mais de R$ 100, a alternativa de fazer uma fogueira no seu pátio com o material que dê combustão é uma ideia plausível perante a triste falta de alternativa.
No ano passado, a Cufa, em parceria com a Supergasbrás, doou mais de 2 mil botijões a famílias de Porto Alegre, Viamão, Canoas, Sapucaia do Sul, Passo Fundo, Esteio, Frederico Westphalen e Montenegro. Mas em 2021 ainda não há nada previsto, e as doações em geral para entidades que ajudam necessitados têm diminuído.
Pesquisa de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrava que mais de um sexto da população da Região Metropolitana de Porto Alegre usava exclusivamente lenha ou carvão para cozinhar. Em Porto Alegre, o índice era um pouco menor, de 12,1%. Em junho de 2019, o gás era vendido por R$ 75 em Porto Alegre, 25% a menos. Devido à pandemia, não houve nova Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD), que só deve ser novamente divulgada em 2022.
Sabendo da alta do preço, em São Paulo, o governo do Estado criou nesta semana o Vale Gás, com três parcelas de R$ 100 para auxiliar famílias de baixa renda a comprar o gás. Não há previsão de iniciativa semelhante no Rio Grande do Sul.
Os cuidados com a lenha
Apesar de a lenha ser comumente usada, o Corpo de Bombeiros alerta para a necessidade de cuidados redobrados em residências.
— A utilização de lenha, assim como qualquer tipo de queima, consome oxigênio. Então, temos que ter um ambiente com ventilação adequada para que qualquer tipo de resíduo dessa combustão seja dispersado. E a lenha sempre tem a fumaça, a fuligem, além de ser tóxica, o acúmulo pode causar ignição de chamas — declara o comandante do 1º Batalhão de Bombeiro Militar, tenente-coronel Eduardo Estevam Rodrigues.
O oficial também lembra a necessidade de cuidado com o uso do álcool - outro combustível comumente usado:
— O primeiro cuidado é que, conforme o tipo de etanol, ele não tem a chama visível. Então, as pessoas podem estar movimentando próximo ao fogão e virem a se queimar.
Segundo ele, os acidentes mais comuns com o álcool ocorrem com a recarga do combustível no espaço onde há o fogo.
Restaurantes também sentem peso
O Sindicato da Hospedagem e Alimentação de Porto Alegre e Região Metropolitana (Sindha) lembra que o aumento no preço do gás de cozinha chega em um momento em que os estabelecimentos que trabalham com alimentação já lutam contra a alta de outros itens essenciais no dia a dia, como carnes, e também no aluguel e conta de luz.
— Os aumentos são sucessivos em todas as áreas. Nós tivemos aumentos abusivos no aluguel, na energia elétrica e agora a bola da vez é o gás. Ou seja, a nossa margem, que já está reduzida há bastante tempo, porque não temos como repassar ao consumidor, mesmo antes da pandemia, vem a agravar nosso fluxo de caixa de forma bem importante — declarou Henry Chmelnitsky, presidente do sindicato.
Proprietário há 25 anos do restaurante Kilograma, na Cidade Baixa, Renato Bortoncello diz que a conta de gás encanado já aumentou, nos últimos meses, "quase R$ 500", enquanto o movimento ainda é instável.
— Nosso movimento tá um dia bom, outro dia ruim — lamenta.
Dono da Mule Bule, rede corporativa voltada a alimentos e bebidas em eventos e feiras, Nelson Ramalho afirma que os donos de restaurantes não conseguem aumentar o preço de venda devido a procura abaixo do esperado, enquanto gastam para produzir alimentos. Ele acredita que os últimos aumentos possam resultar em 5% a 10% de acréscimo na conta.
* Colaborou André Ávila