Desafios da vacinação
Da falta de dinheiro para ônibus ao negacionismo: os motivos dos porto-alegrenses para atrasar ou não tomar a vacina contra covid-19
Acompanhando ações em comunidades das zonas Norte e Sul, a reportagem de GZH encontrou idosos buscando a primeira dose
Adriana Gonçalves Lopes é mãe de três filhos. Além do trio, vive com o genro e dois netos em uma casa no Núcleo Esperança, comunidade do bairro Restinga Velha, extremo-sul de Porto Alegre. Aos 60 anos, já poderia estar à espera da terceira dose da vacina contra a covid-19 — de acordo com a mais recente recomendação do Ministério da Saúde —, mas não havia tomado nenhuma aplicação até a última quarta-feira (29).
— Minha mãe morreu no sábado, e eu fiquei com medo e vim me vacinar — justifica.
A primeira dose do imunizante para pessoas com 60 anos foi disponibilizada há cinco meses, em 23 de abril, nas 30 unidades de saúde da Capital. Em toda o bairro Restinga, foram identificados mais de 5 mil adultos aptos a se vacinar mas que não foram aos locais de imunização desde o início da campanha.
Os residentes do bairro representavam 9% dos 57 mil porto-alegrenses sem qualquer dose de proteção, conforme levantamento divulgado em 15 de setembro pela prefeitura. O estudo elenca ainda outras nove regiões no "top 10" de não-vacinados: Lomba do Pinheiro (6,2%), Santana (5,2%), Sarandi (5%), Santa Tereza (4,6%), Santa Rosa de Lima (4,1%), Mário Quintana (3,4%), Bom Jesus (3,3%), Partenon (2,8%) e Morro Santana (2,8%).
Além do medo de deixar os filhos órfãos, Adriana conta que deixou para tomar a injeção agora porque, pela primeira vez, a unidade de saúde Núcleo Esperança ofereceu o serviço. Somente assim, afirma, pôde ir sozinha ao ponto de vacinação.
— Eu não consigo ir sozinha até o Centro, e o posto da Restinga (unidade Álvaro Difini) é longe pra mim. Com a vacina aqui, eu vim a pé — afirmou logo depois de receber a CoronaVac, desenvolvida pelo Instituto Butantan.
A partir do mapeamento dos dados do Executivo, a reportagem de GZH acompanhou ações realizadas pelos técnicos da saúde com objetivo de encontrar essa população. Desde a última segunda-feira (27), as equipes foram até unidades que nunca haviam aplicado os imunizantes contra a covid-19. Em muitos casos, foi necessário bater de porta em porta atrás dos moradores.
— Não me vacinei e nem pretendo — gritou um pedestre, ao ser interpelado pelo agente comunitário Higor Cadigune, também lotado no Núcleo Esperança.
O profissional atua há seis anos no Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família (Imesf) — apesar de o órgão ter sido extinto, parte dos trabalhadores segue atuando. No período, Cadigune passou a conhecer a vizinhança: chama cada um pelo nome, questiona sobre antigos problemas físicos e renova o pedido para que busquem o posto.
— Cada um tem sua história, e eu preciso respeitar isso — respondeu, sobre o homem que se mostrou irredutível à vacina.
Negacionismo ainda é desafio
No "centro" do bairro, ou Restinga Nova, como é chamada a região que concentra agências bancárias e boa parte do comércio, o negacionismo em relação à pandemia ainda é visto. Frases como "Se nem o presidente se vacinou, por que eu irei?", "Nasci sem ser marcado e vou seguir assim" e "Não é obrigatório" são seguidas de negativas aos servidores.
Apesar disso, a caminhada dos enfermeiros em busca dos não-vacinados gera frutos: no camelódromo instalado junto ao ponto de ônibus da Avenida Economista Nilo Wulff, Inês Souza, 59 anos, se disse convencida a tomar a primeira dose:
— A gente ouve falar de tanta coisa e fica com medo. Mas, agora que ela me explicou, eu decidi que vou tomar. Mais tarde eu vou lá, tá? — afirmou, se dirigindo à gerente distrital de saúde da Restinga e do Extremo-Sul, Rosana Meyer Neibert.
Rosana organizou a passeata desde o Centro da Juventude até a Unidade de Saúde Álvaro Difini, quatro quarteirões à frente. No caminho, máscaras foram entregues, mas muitas rejeitadas — como argumento, o pedestre apontava para o bolso ou algum compartimento onde o acessório estava guardado.
— Então tem que usar no rosto, coloca por favor — pedia educadamente a gerente.
Além das causas já elencadas, Rosana afirma que, na região, muitos trabalhadores pegam o ônibus na largada do dia, em direção à área central, retornando do serviço apenas à noite. O longo deslocamento e o cansaço acumulado desmotivam a busca pela vacina, conta.
"R$ 1 pra gente, hoje, já é dinheiro"
A distância afeta também quem vive no limite de Porto Alegre com Alvorada, na ponta oposta da cidade. Moradores dos bairros Rubem Berta e Mário Quintana têm procurado o Centro Social Marista (Cesmar) para receber a vacina. Na instituição, há cursos permanentes de preparo para o mercado de trabalho, bolsas para alunos do Ensino Médio, atividades com as famílias carentes e, em duas ocasiões, houve aplicação de doses contra a covid-19 — a mais recente na última segunda (27).
A oferta do imunizante em um local tão próximo de casa atendeu ao anseio de Lovaine Gonçalves, 51 anos, moradora da Vila Timbaúva. Na segunda, ela começou a trabalhar em um galpão de reciclagem às 7h30min. Interrompeu a separação dos descartes, encontrou o filho, Jeferson Gonçalves Ataíde, e foi até o Cesmar. De mãos dadas com o jovem de 23 anos, entrou na fila da primeira dose.
— R$ 1 pra gente, hoje, já é dinheiro. Gastar com passagem e ainda levar ele é uma dificuldade. Não tem como — disse, como justificativa para ter postergado a vacina.
Das 1,8 mil injeções aplicadas no Cesmar, 1,1 mil foram de primeira dose. Valdecir Zanolla, 52 anos, esteve no complexo nas duas ocasiões — a primeira delas no final de agosto.
— Tomei a primeira aqui e estou com pressa para tomar a segunda. Ainda tenho que ir para uma obra em Gravataí — falou o construtor.
O medo de faltar ao trabalho, por vezes informal, esteve entre os motivos mais citados por quem levou tanto tempo para se imunizar.
— Eu não trabalho com carteira assinada. Sou autônomo. Hoje deu uma acalmada no serviço, e como a obra aqui é perto, pude me vacinar — contou o pedreiro Pablo da Silva Holland, 21 anos, em busca da primeira dose.
Prefeitura comemora sucesso das ações
Nas regiões tabuladas pela Secretaria Municipal da Saúde (SMS) em 15 de setembro, já é notada uma redução significativa do percentual de não-imunizados. Segundo a diretora da Atenção Primária da pasta, Caroline Schirmer, a soma do estoque utilizado nos chamados "rolês 2.0", que são ações realizadas na periferia, chega a 20 mil doses, o que representa 35% dos que não tinham nenhuma proteção.
— Nosso objetivo é chegar a 50% até o Dia Nacional de Vacinação, em 16 de outubro — estima.
A soma de doses aplicadas inclui a montagem de tendas na Orla Moacyr Scliar, ao lado do Mercado Público, nos rolês noturnos e nas escolas de samba.
Os casos ilustrados na reportagem vão ao encontro do que já era suspeita da prefeitura: a pobreza extrema manteve uma parcela da população afastada da vacina. Do banco de dados do Cadastro Único, para pessoas que recebem benefícios como o Bolsa Família, foram identificados 66% dos 57 mil munícipes não atendidos na campanha.
— Não é só negacionismo. Os motivos financeiros são muito maiores do que as questões políticas — complementa a diretora.