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Dia da Consciência Negra  

"Fala baixo na rua", "Pega nota fiscal", "Nunca corre": preocupações de quem cria filhos em uma sociedade racista

Reportagem de GZH ouviu relatos de quatro famílias negras de diferentes bairros da Capital 

18/11/2021 - 11h38min


Tiago Boff
Tiago Boff
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Lauro Alves / Agencia RBS
Nathália Brum tem 27 anos e é estudante universitária

O escritor e colunista de GZH Jeferson Tenório foi consultor desta e de outras reportagens relacionadas à Semana da Consciência Negra. 

Sair do caixa antecede um pedido da universitária Nathália Brum, 27 anos: sacola com emblema da loja e nota fiscal do produto adquirido. Não por comodidade, mas para justificar a compra, caso seja abordada na saída. Nathália é negra, e essa é uma das formas que ela aprendeu para se defender em uma sociedade racista.  

– Já na entrada é desafiador, muitas vezes o segurança ou um vendedor te olha de um jeito estranho. E o que foi passado pelos meus avós, desde pequena, é pedir os comprovantes pra mostrar que comprei aquilo, não deixar nenhuma dúvida – reitera a jovem. 

Moradora do bairro Partenon, zona leste de Porto Alegre, a estudante de Design de Moda  carrega consigo uma espécie de “manual de sobrevivência”, um guia informal de conselhos para evitar suspeitas em locais frequentados pelo público. Estratégias pensadas e repassadas entre gerações de famílias negras. Todas as pessoas ouvidas nesta reportagem dividem experiências semelhantes. Foram entrevistadas na semana em que marca os 50 anos da criação do Dia da Consciência Negra, data nascida no Rio Grande do Sul, celebrada em 20 de novembro. 

Além do que foi aprendido com os avós, Nathália criou por conta própria outra estratégia, a fim de fugir de constrangimentos na escola privada em que cursou os anos primários. Única negra em sua turma, segundo diz, vestia roupas coloridas que se destacavam quando comparadas às dos colegas. Assim, os demais não olhariam para sua fisionomia nem reparariam no sobrepeso que afirma ter. 

– Tinha na minha cabeça que usar roupas diferentes ia chamar atenção, e as pessoas não iam me discriminar por ser gorda, ou pelo meu tom de pele – relembra. 

Os ensinamentos de família ficaram incrustados no seu âmago a tal ponto que ela garante: transmitirá as mesmas atitudes aos seus filhos, quando se tornar mãe.  

– Tenho esperança de que um dia vai mudar, mas pelo contexto atual, que parece que tudo está regredindo, vai demorar. Não serão os meus filhos a vivenciar esse mundo justo, sem racismo – lamenta. 

PARA NUNCA ESQUECER
Em 12 de junho de 2021, o instrutor de surfe Matheus Ribeiro, 22 anos, foi acusado por um casal de ter roubado uma bicicleta elétrica. Ele aguardava pela namorada na porta de um shopping center, no bairro Leblon, zona sul do Rio de Janeiro. A bicicleta que estava em sua posse era dele. Ao portal UOL, disse pensar em carregar a nota fiscal. 

Algemado e solto após mostrar carteira profissional 

Anselmo Cunha / Agencia RBS
Cláudio, a esposa Tayná e a filha Maria Paula

Cláudio Omar Pereira da Silva, 40 anos, jamais achou necessário portar a carteira profissional de contador no dia a dia. A esposa, Tayná, insistia, até que o marido seguiu sua orientação. Ele não imaginava que o pedido da mulher lhe salvaria de ser preso. 

– Eu fui parado e algemado. Me chamaram de suspeito. O policial perguntou minha profissão, e eu disse que era contador. Ele riu. Quando o colega dele achou minha carteira, fez sinal com a cabeça, ele parou de rir e me liberou – detalha o contador, registrado no CRC-RS sob o número 82.486/O-4. 

Desde a adolescência, o morador do bairro Jardim Itu Sabará, zona norte de Porto Alegre, convive com abordagens truculentas. Acredita que os agentes de segurança são mais adeptos do diálogo atualmente, se comparado há duas décadas, início de sua vida adulta. Porém, Cláudio não ignora casos de racismo mundialmente conhecidos, como de George Floyd, morto por um policial branco nos Estados Unidos

Como forma de protesto a situações veladas de preconceito, travestidas de desconfiança, Cláudio utilizou um expediente pouco usual. Escreveu um bilhete com seu nome, um breve resumo de sua história e o nome da instituição em que cursava Ciências Contábeis. O papel foi pendurado no para-brisa de um automóvel, próximo de seu apartamento - isso porque o motorista havia dado seguidas voltas no quarteirão, visivelmente incomodado pela presença dele na calçada. O veículo acabou estacionado em outra quadra. 

A busca pela graduação foi acompanhada de um outro ensinamento, nesse infeliz, mas necessário manual de sobrevivência de um homem negro em uma sociedade que mantém uma parcela de pessoas racistas: da mãe, ouviu que seria necessário dedicar o dobro de esforços para alcançar seus objetivos. 

– Batalhar o dobro, por ser negro, foi a frase repetida à exaustão. 

Anselmo Cunha / Agencia RBS
Maria Paula tem dois anos

Cláudio e Tayná tiveram uma filha, Maria Paula, de dois anos de idade. Para a menina, eles esperam não repassar as mesmas instruções. 

– Eu gostaria de não precisar dizer que ela tem de ser duas vezes melhor, pra superar o racismo, como minha mãe ensinou. A gente diz que ela é uma pretinha linda, que o cabelo é lindo, para ela ter empoderamento. Criá-la ao natural, sem ver diferença entre o amigo branquinho, ruivinho, pretinho. E dizer que o racismo não é problema nosso, mas de quem é racista - finaliza. 

PARA NUNCA ESQUECER
Em 25 de maio de 2020, o norte-americano George Perry Floyd Jr. deixava uma loja de conveniência em Minneapolis, quando foi abordado por policiais. Acusado de usar uma nota falsa no estabelecimento, foi imobilizado, deitado no chão e sufocado até a morte. A frase dita por ele, “I can’t breathe” (não consigo respirar), virou símbolo de protestos contra o racismo. 

“O que ela roubou?”  

Mãe de uma jovem de 20 anos, a artesã Joici Nascentes é direta durante as conversas sobre racismo: “não chama atenção, filha”. A frase é acompanhada por uma série de recomendações, no intuito de que sejam bem-vistas nas ruas da Restinga, extremo-sul da Capital, onde elas vivem. 

– Anda sempre limpa, maquiada e de unhas feitas. Sem boné, sem risos altos, fala baixo na rua - complementa a artista, de 49 anos. 

Joici admite se sentir constrangida por ter de dar esses conselhos, motivada pela diferença no tratamento das pessoas negras em comparação aos demais. As experiências de vida, no entanto, calejaram a família, e ela não enxerga outra maneira para lidar com os olhares da sociedade. 

– Tem gente que diz que não existe racismo. Ele existe, muito, e a gente sofre demais. Somos seguidos em mercados, farmácias, em todo o comércio. Mas eu não me calo, pergunto para o segurança por que ele está atrás de mim – diz. 

Um termo utilizado por Joici representa a forma de agir: não apenas ser honesto, mas parecer honesto. Ela relembra de uma falsa acusação sofrida quando trabalhava no setor de recursos humanos de uma empresa de vigilância. No saguão de um shopping center, foi cercada de carinho pelos colegas que ali prestavam serviço. Os “guris”, como chama os seguranças, a presentearam com um chapéu. Logo, o supervisor da equipe, que não a conhecia, se aproximou da aglomeração. De forma ríspida, fez um julgamento da situação. 

– O que ela roubou? - perguntou o chefe da equipe, relembra a tecnóloga. 

“Chama de senhor” 

Tiago Boff / Agencia RBS
Marisete de Fátima chora ao lembrar da infância vivida em uma fazendo de brancos

Nos trabalhos manuais com cuias, enfeites de Natal e outros tecidos, Joici tem a companhia de Marisete de Fátima Rodrigues Gonçalves, 64 anos. Natural de um distrito rural do Vale do Rio Pardo, ela cresceu trabalhando na roça, com os 11 irmãos. Foi educada de forma a tratar os donos da fazenda por um pronome de conotação superior. 

– Meu pai dizia “chama ele de senhor”. O filho dele também. Na época eu era criança, mas hoje entendo, é porque eles eram brancos – deduz, com convicção. 

Na última segunda-feira (15), Marisete relembrou essa fase da vida com tristeza evidente no olhar. No momento em que citou o trabalho na lavoura, chorou, e foi amparada pela amiga artesã. 

– A gente precisa se impor, não na voz, mas na postura, por causa do preconceito. Lá fora, a gente precisava chamar de “seu”, de “senhor”, pela diferença, mas hoje não dá pra aceitar mais – finaliza. 

PARA NUNCA ESQUECER:
Em 19 de novembro de 2020, o autônomo João Alberto Freitas foi morto dentro do hipermercado Carrefour do bairro Passo D’Areia, zona norte de Porto Alegre. Ele estava com a esposa, finalizando suas compras, quando foi conduzido até o estacionamento. Os seguranças o espancaram até a morte. O crime ocorreu na véspera do Dia da Consciência Negra. 

“Não corre na rua, ou podem achar que está fugindo” 

O apartamento da nutricionista Kyzzy Barcelos Barbosa Rodrigues, 38 anos, e do técnico judiciário Vladimir Rodrigues, 50, é cuidadosamente decorado com itens de matrizes africanas desde o corredor de entrada. Quadros carregados de simbologia, máscaras trazidas da África, pinturas e instrumentos espalhados pela casa dão ideia da preocupação do casal na educação dos filhos. 

Lauro Alves / Agencia RBS
Família Barbosa Rodrigues

– Conversamos muito sobre nossas questões de ancestralidade. Para eles entenderem que o processo de violência, de tudo que as pessoas negras sofrem, não é de agora, vem desde que nós chegamos aqui – explica a nutricionista. 

Os garotos têm nomes oriundos dos dialetos africanos Mandinga e Yorubá: Toumani Barbosa Rodrigues, 14 anos, e Oluyemi Barbosa Rodrigues, 11.  

O diálogo com ambos passa por questões históricas, valoriza a luta dos antepassados, mas os mantêm alerta sobre riscos do dia a dia. Nas ruas do bairro Menino Deus, a liberdade de brincar pode ser confundida, segundo Kyzzy. 

– Dissemos para evitar correr, pois se estiverem os dois sozinhos, pode acontecer alguma abordagem. E estarem correndo é um risco. Se vão no mercado, dizemos para não abrir a mochila, pois pode parecer que vão esconder algo dentro - complementa. 

Em um passeio recente, Toumani e Oluyemi saíram para passear com a cachorrinha da família. Deixaram os documentos em casa, o que automaticamente reascendeu o temor de seus pais, caso tivessem de responder a alguma autoridade. 

Vladimir compara a luta, contra a parcela racista da sociedade atual, com o que foi enfrentado nos séculos passados. Aposta nos valores repassados aos filhos como um cuidado extra e utiliza o diálogo para não ofuscar o discernimento deles frente aos demais: primeiro conhecer para depois julgar uma pessoa que não seja negra. 

– Procuramos não os deixar paranoicos. Achar que todo branco é racista, não. Tem que conhecer a pessoa, saber o comportamento para julgar. Não é porque é branco que será contra nós, nos enganar ou passar a perna - educa o técnico judiciário. 

PARA NUNCA ESQUECER
Em 14 de setembro de 2021, a delegada Ana Paula Barroso foi barrada na entrada de uma unidade da Zara, em um shopping de Fortaleza, capital do Ceará. A partir do caso, a Polícia Civil instaurou uma investigação e descobriu que a marca utiliza um código para alertar sobre clientes "fora do estereótipo”, levando em conta a cor da pele e as roupas vestidas. 

Estratégias são "desgastantes”, lamenta especialista 

Maria Luísa Pereira de Oliveira, 57 anos, é psicóloga e ex-integrante do programa SOS Racismo, da Ong Maria Mulher. A doutoranda se especializou nos mecanismos de enfrentamento e de resistência da população negra no Mestrado, quando elevou o tema a objeto de estudo de sua dissertação. 

– Tudo que foi dito pelas pessoas (nos relatos para a reportagem) envolve uma energia psíquica muito desgastante pra gente. Para um adolescente branco, pegar a bicicleta e pedalar no parque é muito simples. Não envolve maior risco ou dificuldade. Para um menino negro, pode representar exposição dele a uma situação de violência – avalia. 

A especialista incluiu na análise suas vivências - Maria Luísa também é negra. Relembra da época em que auxiliava a população a buscar na Justiça um ressarcimento por injúrias pelas quais passaram. Lista uma série de ofensas, como a não aceitação de negros na mesma hierarquia profissional, ou a necessidade que um pai ou mãe que acabaram de perder um filho, sentem ao reafirmar que a vítima era incapaz de cometer qualquer crime. 

– A menina Ágatha, morta no Rio de Janeiro por uma bala perdida. O avô dizia que a netinha estudava, fazia balé, inglês. Parecia que ele queria afirmar que a criança tinha tanto direito quanto as outras. Que ela era uma menina do bem, para afastar a imagem que sempre é imputada para a nossa população – compara. 

As conquistas profissionais de algumas famílias negras não retiram dos pais a preocupação que os filhos venham a ser alvo de um sofrimento incapaz de ser mensurado, finaliza a psicóloga: 

– Uma minoria de nós consegue ascender econômica e socialmente. Nada material tem o poder de isentar do racismo. Do contrário, pode acirrar, para o racista, que o negro não deveria estar naquele lugar. 

PARA NUNCA ESQUECER
Em 20 de setembro de 2019, a menina Ágatha Félix foi morta por uma bala perdida no Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro. A criança tinha apenas oito anos de idade e retornava para casa com a mãe. Naquele momento, ocorria uma troca de tiros entre a polícia e criminosos da favela. 



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