Papo Reto
Manoel Soares e uma promessa chilena
Colunista escreve para o Diário Gaúcho aos sábados
Me lembro de como era esticar a linha de um poste ao outro pra passar o cerol. Tínhamos esmigalhado um monte de lâmpada, colocamos cola, ovo e farinha de trigo pra dar liga. Tudo que tínhamos pego escondido da cozinha da minha mãe. O projeto era, na desbicada, mandar buscar os meninos da rua de cima e torar geral. Tudo era lindo, às vezes perdíamos, às vezes éramos os heróis da rua. Seu Hélio, do bar, até dava umas balas quando chegávamos carregando as pipas dos adversários do céu. No dia seguinte, na escola, o cortado era alvo do gritos de guerra e tinha que engolir a seco, porque se partisse para a porrada ia cair na velha máxima: apelou, perdeu.
Estávamos em um ciclo de vitórias digno de estarmos no topo da lista de pipas temidas. Os meninos da rua de cima não aguentavam mais perder e resolveram juntar uma grana e aderir ao que era o sonho da minha geração: linha chilena. Era lâmina no carretel, o nosso fim era certo com essa decisão. A notícia de que tinham juntado o dinheiro bateu como uma sentença em nosso beco. Até a produção de cerol ficou menos divertida. Minha mãe não deixava nem soltar pipa com cerol, linha chilena, então, seria motivo para sermos excomungados.
Nossos oponentes usaram e, escondidos das mães, usamos também, na guerra das pipas valia tudo. Nos dias de “relo”, as batalhas eram épicas, até que o irmão de um dos nossos poleiros mais habilidosos foi quase degolado por uma linha chilena ao passar de moto. Ver a dor da mãe que passava dias abraçada na jaqueta do filho, enquanto os médicos pediam que tivéssemos fé, nos destruiu. Prometemos que, se ele saísse do coma, jamais usaríamos linha chilena, e assim foi. Há mais de 25 anos que eu e meus amigos mantemos promessa chilena. Aos amigos leitores, peço que entrem nessa promessa com a gente.