Notícias



Memórias e ladaia

Recicladoras lançam livro com histórias da coleta do lixo em Canoas

Obra reúne relatos das profissionais da Cooperativa Renascer, na região metropolitana de Porto Alegre

28/12/2022 - 14h38min

Atualizada em: 28/12/2022 - 14h41min


Tiago Boff
Tiago Boff
Enviar E-mail

Jéssica Fortes, 28 anos, trabalha com reciclagem desde a adolescência. Ela encontrou, em meio às sacolas jogadas no lixo, mais do que material revendido para o sustento de casa.

— Meu marido diz que me reciclou, mas fui eu que reciclei ele — brinca, sobre o casamento que nasceu no trabalho.

O relato integra uma das tantas histórias do livro Memórias da Cooperativa Renascer: Entre Ladaias e Autogestão, lançado na última semana pela Editora Unilasalle — a universidade foi também parceira na editoração. A publicação conta em detalhes as três décadas e meia de atuação da organização do bairro Guajuviras, em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre. A obra foi desenvolvida pelo Tecnosocial e Incubadora de Empreendimentos Econômicos Solidários Unilasalle, em parceria com a Apoena Socioambiental, e contou ainda com o apoio da Fapergs e do CNPq. O livro está disponível de forma gratuita online.

Nas páginas, é descrito o desenvolvimento do trabalho a partir das passagens de vida dos profissionais. Para ser mais exato, o foco parte das "ladaias", como explica a catadora Michele Ferreira dos Santos, 37 anos:

— Ladaia é conflito, intriga, fofoca. Quisemos colocar isso no livro porque a história da cooperativa é construída também em cima de bastante ladaia. E até as ladaias a gente resolve em reuniões, com todo mundo.

As profissionais listam alguns riscos do dia a dia, em especial a falta de cuidados no descarte do vidro. De acordo com elas, não basta que o morador coloque em caixas os cacos, mas também proteger as garrafas inteiras, pois quando embaladas apenas em sacolas, podem quebrar e causar cortes em quem as manuseia.

Mas nem só de tretas vivem as colegas: apesar de toda a ladainha, há união, garante a recicladora.

— A gente não se deixa abater. Uma vez fomos assaltadas bem no dia do pagamento. E mesmo assim a gente foi na viagem que já tava organizada para o Beto Carreiro. Quem não conseguiu arrumar dinheiro, comeu com a outra. Nos divertimos mesmo sem um centavo no bolso — recorda Michele.

Hoje, há separação do lixo seco e orgânico no município, porém, nos anos 1970, o destino dos resíduos era o mesmo, o aterro sanitário. Deste monte de entulhos, saiam os produtos passíveis de serem reaproveitados. Não havia sequer uma cobertura e os catadores ficavam expostos a chuva e sol, relembra a mais experiente de todas, Sônia Maria Soares, 68 anos. Com mais da metade da vida na atividade — 36 anos —, ela criou laços comparáveis aos de sua família.

— Aqui é uma segunda casa pra mim — afirmou, ao programa Gaúcha Hoje, da Rádio Gaúcha, na manhã desta quarta-feira (28).

O total de parentes de dona Sônia, aliás, é superior aos cerca de 30 colegas cooperativados.

— Ih, meu jovem, eu tenho oito filhos e 26 bisnetos. Os netos eu já nem sei, porque os pequenos tomaram conta — justifica a idosa.

Enquanto umas se perdem na contabilidade, outras veem o número de herdeiros crescer: Francielle Paim, 28 anos, está grávida do quarto filho. Ela diz ter orgulho do que conquistou a partir dos descartes, só que não deixa de dar uma alfinetada sobre as discussões acaloradas.

— Gosto muito daqui, mesmo que a gente discuta e se pegue até por comida — admite, ao vivo para toda a audiência da Gaúcha, arrancando gargalhadas dos colegas que acompanhavam a entrevista.

Ouça a entrevista na íntegra:



MAIS SOBRE

Últimas Notícias