Memórias e ladaia
Recicladoras lançam livro com histórias da coleta do lixo em Canoas
Obra reúne relatos das profissionais da Cooperativa Renascer, na região metropolitana de Porto Alegre
Jéssica Fortes, 28 anos, trabalha com reciclagem desde a adolescência. Ela encontrou, em meio às sacolas jogadas no lixo, mais do que material revendido para o sustento de casa.
— Meu marido diz que me reciclou, mas fui eu que reciclei ele — brinca, sobre o casamento que nasceu no trabalho.
O relato integra uma das tantas histórias do livro Memórias da Cooperativa Renascer: Entre Ladaias e Autogestão, lançado na última semana pela Editora Unilasalle — a universidade foi também parceira na editoração. A publicação conta em detalhes as três décadas e meia de atuação da organização do bairro Guajuviras, em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre. A obra foi desenvolvida pelo Tecnosocial e Incubadora de Empreendimentos Econômicos Solidários Unilasalle, em parceria com a Apoena Socioambiental, e contou ainda com o apoio da Fapergs e do CNPq. O livro está disponível de forma gratuita online.
Nas páginas, é descrito o desenvolvimento do trabalho a partir das passagens de vida dos profissionais. Para ser mais exato, o foco parte das "ladaias", como explica a catadora Michele Ferreira dos Santos, 37 anos:
— Ladaia é conflito, intriga, fofoca. Quisemos colocar isso no livro porque a história da cooperativa é construída também em cima de bastante ladaia. E até as ladaias a gente resolve em reuniões, com todo mundo.
As profissionais listam alguns riscos do dia a dia, em especial a falta de cuidados no descarte do vidro. De acordo com elas, não basta que o morador coloque em caixas os cacos, mas também proteger as garrafas inteiras, pois quando embaladas apenas em sacolas, podem quebrar e causar cortes em quem as manuseia.
Mas nem só de tretas vivem as colegas: apesar de toda a ladainha, há união, garante a recicladora.
— A gente não se deixa abater. Uma vez fomos assaltadas bem no dia do pagamento. E mesmo assim a gente foi na viagem que já tava organizada para o Beto Carreiro. Quem não conseguiu arrumar dinheiro, comeu com a outra. Nos divertimos mesmo sem um centavo no bolso — recorda Michele.
Hoje, há separação do lixo seco e orgânico no município, porém, nos anos 1970, o destino dos resíduos era o mesmo, o aterro sanitário. Deste monte de entulhos, saiam os produtos passíveis de serem reaproveitados. Não havia sequer uma cobertura e os catadores ficavam expostos a chuva e sol, relembra a mais experiente de todas, Sônia Maria Soares, 68 anos. Com mais da metade da vida na atividade — 36 anos —, ela criou laços comparáveis aos de sua família.
— Aqui é uma segunda casa pra mim — afirmou, ao programa Gaúcha Hoje, da Rádio Gaúcha, na manhã desta quarta-feira (28).
O total de parentes de dona Sônia, aliás, é superior aos cerca de 30 colegas cooperativados.
— Ih, meu jovem, eu tenho oito filhos e 26 bisnetos. Os netos eu já nem sei, porque os pequenos tomaram conta — justifica a idosa.
Enquanto umas se perdem na contabilidade, outras veem o número de herdeiros crescer: Francielle Paim, 28 anos, está grávida do quarto filho. Ela diz ter orgulho do que conquistou a partir dos descartes, só que não deixa de dar uma alfinetada sobre as discussões acaloradas.
— Gosto muito daqui, mesmo que a gente discuta e se pegue até por comida — admite, ao vivo para toda a audiência da Gaúcha, arrancando gargalhadas dos colegas que acompanhavam a entrevista.