Judiciário
TJ-RS afasta 14 estagiários e investiga servidores suspeitos de vazar operações policiais a criminosos
Segundo apuração, advogados tinham acesso antecipado a mandados de busca, apreensão e prisão, o que permitia fugas e ocultação de provas
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) já afastou 14 estagiários e investiga sete servidores do Judiciário suspeitos de vazar operações policiais para associações criminosas.
Durante dois meses, o Grupo de Investigação (GDI) da RBS coletou depoimentos e teve acesso a documentos sigilosos e trocas de mensagens que apontam para a cobrança de até R$ 3 mil por cada informação que deveria ser restrita aos juízes, servidores das varas e autoridades policiais.
O Núcleo de Inteligência do TJ acompanhou as investigações e, em alguns casos, foi responsável pela identificação dos vazamentos. Ao longo do mês de outubro, o GDI acompanhou, com exclusividade, três operações policiais e do Ministério Público (MP) desencadeadas para cumprir 20 mandados de busca e apreensão e três de prisão, em nove cidades das regiões Central e Metropolitana do Estado. No dia 20, os principais alvos foram as casas de um ex-estagiário e de uma servidora do fórum de Cachoeirinha.
A dupla teria vazado informações sobre operação que ia cumprir 78 ordens judiciais, incluindo 41 de prisão, antes da execução. O valor cobrado em troca da informação seria de R$ 3 mil, quantia que aparece em recibos enviados pela facção ao ex-estagiário. Com prisão decretada, ele utilizava a senha da servidora para realizar as consultas. Trechos dos documentos sigilosos foram encontrados nos celulares dos suspeitos.
— Eles recebiam informações sobre quando seriam cumpridos os mandados, quem seriam os alvos, em quais casas a polícia entraria — explica a delegada Fernanda Amorin.
A mesma facção criminosa beneficiada pelos vazamentos também tinha uma informante na 21ª Câmara Cível do TJ-RS, alvo de mandado de busca em junho. Informalmente, uma estagiária da vara admitiu que vendia cada informação à associação criminosa por R$ 200. O objetivo era frustrar ações policiais no Condomínio Princesa Isabel, conhecido ponto de venda de drogas da Avenida Bento Gonçalves, em Porto Alegre, que funciona 24h a duas quadras do Palácio da Polícia, onde trabalha a cúpula da corporação.
Durante duas tardes, o GDI flagrou o tráfico em plena luz do dia no local. Traficantes agem dentro e fora do condomínio, em um terminal de ônibus que funciona nos fundos. Além de atuarem nas redondezas, a associação criminosa também seria a responsável por fornecer a droga negociada em todo o bairro Cidade Baixa e na Vila Planetário, conforme investigações do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc).
Uma troca de mensagens interceptada pela polícia reforça a suspeita de vazamento. "A mulher do foro diz que tem uma megaoperação sigilosa", aponta o texto em uma delas.
— Com toda a tranquilidade, podemos dizer que as ações foram frustradas totalmente ou em parte devido a essas informações que foram passadas então por agentes externos da investigação a esses marginais — confirma o delegado Alencar Carraro, diretor de investigação do Denarc.
Fuga antes de operação
O GDI teve acesso a um vídeo que mostra supostos líderes do tráfico na região deixando um prédio na véspera de uma operação.
— Eles tentam de todas as maneiras se esconder. Então, retiraram dinheiro e quem sabe drogas e armas, nós jamais saberemos, pois essas informações externas permitiram que eles conseguissem retirar quase a totalidade de certamente material de origem criminosa. O que seria muito importante no decorrer das investigações — acredita Carraro.
A investigação sobre o envolvimento da estagiária na venda de informações a bandidos que agem no condomínio é realizada pela promotoria especializada Criminal de Porto Alegre.
— É muito difícil apurar exatamente a quantidade de operações que foram frustradas em razão desses estagiários, desses servidores, mas num pequeno período de amostragem de meros 30 dias, nós conseguimos apurar 15 operações que acabaram não tendo resultado algum, justamente pelo conhecimento prévio possível dos investigados — explica o promotor Flávio Duarte.
Chegando ao local, deparamos com casas vazias
POLICIAL CIVIL
Sobre operação que teve informações vazadas
Em Santa Maria, o promotor investiga outro vazamento. Desta vez, a consulta a uma operação que buscava prender o gerente da mesma facção beneficiada em Porto Alegre e Cachoeirinha. As ordens judiciais teriam sido consultadas antes do seu cumprimento no escritório de uma advogada do suspeito, com a senha de uma servidora do Fórum de São Gabriel, também no Interior. Ambas foram alvo de buscas na sexta-feira (20). Sem saber do vazamento, a Polícia Civil (PC) cumpriu os mandados em maio de 2022.
— Chegando ao local, deparamos com casas vazias — resume um policial que participou da operação, sem se identificar.
Em um dos endereços, foi apreendido o celular de uma mulher ligada à associação criminosa. Nele, uma mensagem enviada uma semana antes da operação: "Tu viu que a polícia tá pra bater aqui". Os bandidos sabiam até o número de endereços que seriam vistoriados: "Tão pra bater em três casas".
Outro vazamento é apurado pela delegada Luciane Bertoletti, de Canoas. Ela investigava uma associação criminosa responsável pelo desvio de R$ 1,2 milhão da conta bancária de um técnico em informática. Os bandidos conseguiram convencer a vítima a realizar diversas transferências, sob a alegação de que estariam realizando testes de segurança e que essas transferências não seriam reais. Depois de ingressar com 30 pedidos de prisão e outros 53 de busca e apreensão para desarticular o grupo, a delegada ficou surpresa ao perceber que advogados da associação criminosa tiveram acesso aos pedidos antes mesmo do juiz examiná-los.
— Eu tinha ingressado com um pedido de prisão e busca e apreensão e alguns advogados do mais diversos Estados entraram com habeas corpus preventivos, antes mesmo da análise judicial daqueles pedidos feitos por mim — explica a delegada.
Ao rastrear o acesso indevido ao processo, a polícia descobriu que foi usada a senha de uma ex-estagiária do Fórum Central de Porto Alegre. No computador dela, a polícia descobriu nomes de alvos dos pedidos de busca e prisão, vazados para a associação criminosa.
Extorsões
As investigações da Polícia Civil e do Ministério Público apontam ainda que, além de vazar informações de operações sigilosas, o esquema envolvia a prática de extorsões. O GDI conseguiu localizar o alvo de um mandado de busca que seria cumprido em Cachoeira do Sul, por tráfico de drogas. Por aplicativo de mensagem, o homem recebeu capturas de tela do pedido encaminhado ao Judiciário. Um criminoso se fez passar por policial e pediu R$ 4 mil para não "enxertar" drogas durante a operação.
— Mandaram a foto dos pedaços da investigação, entendeu? — disse o investigado, que denunciou à polícia a tentativa de extorsão.
A consulta ao processo teria sido feita por um ex-estagiário do fórum de Novo Hamburgo com a senha de uma servidora.
O Tribunal de Justiça informou que, além dos afastamentos e abertura de apurações internas, trocou todas as senhas de acesso ao sistema. E suspendeu senhas de cerca de 500 estagiários já dispensados, mas que seguiam ativas. Quanto ao outro problema identificado, o compartilhamento de senhas, afirma que a prática é irregular.
— Sim, isso é irregular e o tribunal tem uma campanha muito grande. Há algum tempo é orientado aos servidores e magistrados que não repassem senhas. Senha é uma informação pessoal do indivíduo, então não pode repassar — afirma o 2º vice-presidente do TJ, desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira.