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Tapa no visual

Como uma maneira de ensinar seus alunos, barbeiro convida pessoas em situação de rua para serem modelos

Iniciativa Fernando Santos, proprietário de barbearia na zona norte da Capital, já atendeu mais de 50 homens

07/11/2023 - 05h00min


Caroline Tidra
Caroline Tidra
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É nas segundas-feiras que o atendimento em uma barbearia no bairro Vila Ipiranga, em Porto Alegre, em frente à Praça Alfredo Sehbe (Praça do Oito), une aprendizado e empatia. Isso porque o barbeiro Fernando Santos, 44 anos, usa o primeiro dia útil da semana para ensinar alunos que querem se especializar nos cuidados com barba e cabelo. Para praticar os movimentos com tesouras e lâminas, ele precisa de modelos dispostos a repaginar o visual

Foi na mudança de endereço do estabelecimento que Fernando percebeu que o momento de ensinar poderia ser uma oportunidade de ajudar pessoas em situação de rua, oferecendo-os cortes gratuitos. 

— Quando mudamos para cá, eu não sabia que existia essa movimentação (das pessoas em situação de rua) na praça. Ouvi algumas pessoas reclamando por eles estarem aí, mas também alguns tentam ajudar, doam comida. Quando peguei o Matheus como aluno, vi a oportunidade de ter modelos reais para ensinar e dar uma mão para quem está na rua — explica Fernando, dono da Barbearia FTB, que trabalha na área de estética masculina há oito anos.

Em pouco tempo, a ação na barbearia começou a atrair pessoas que passam e permanecem nas redondezas. O estabelecimento de Fernando fica na região do Albergue Acolher I e, por isso, há uma movimentação de pessoas em situação de vulnerabilidade social ou que estão por um tempo em Porto Alegre. 

O DG acompanhou uma tarde de atendimento. Enquanto Matheus Chaves, 29 anos, o aluno de Fernando, finalizava um corte, outros interessados paravam próximo da porta para manifestar o desejo pelo serviço. Como o espaço do salão é pequeno, eles esperam no outro lado da rua, sentados em bancos da praça ou da parada. 

— Eu quero um corte militar, zero nas laterais e 1 em cima — explica um dos homens que esperava sua vez. 

Matheus, o aluno, é designer gráfico e, atualmente, busca conhecimento para apostar em uma nova profissão

— Estou aprendendo por querer trocar de profissão. Como sou cliente do Fernando há seis anos, já tinha uma vivência. Para muitas pessoas, o barbeiro é um momento de conversar e colocar para fora alguns problemas — explica Matheus, que apoiou a iniciativa de Fernando. 

Hoje, além daqueles que precisam do corte por causa do cabelo longo ou barba por fazer, chegam os que querem melhorar a aparência para buscar trabalho. Conforme Fernando, eles podem escolher o formato que preferirem para o cabelo e barba. É por causa dos pedidos que ele consegue passar técnicas para o aluno.

— É uma forma de entender, pois a gente sempre julga, vê um cara saudável na rua. Mas, conversando com eles, na cadeira, ouvimos que todos têm uma história e que a maioria está assim por um problema maior. Os motivos que levam a essa situação nos fazem ficar até constrangidos ao escutar. Ficamos mais tranquilos em estar fazendo isso — diz o barbeiro. 

Mas uma regra Fernando impôs para o acesso ao serviço: 

— Tem que vir "liso", sem estar chapado. E isso eles já espalharam, bêbado ou alterado não é atendido. Respeitam isso. 

Menos julgamento, mais empatia

Um dos primeiros a participar desse dia de modelo foi Romero Francisco de Souza Furtado, 67 anos, pintor. Ele nasceu em Rio Grande do Norte, foi registrado no Rio de Janeiro e vive no Rio Grande do Sul há mais de 50 anos. Na lembrança de algumas experiências, Romero compartilha histórias com bom-humor e também aquelas mais difíceis. Segundo ele, sua peregrinação por albergues ocorre desde a década de 1980. Hoje, sua renda vem de bicos de pintura. 

— Sou aprendiz até hoje, estou sempre aprendendo. Agora, como pintor — diz ele, que se preparava para fazer um orçamento no bairro. 

No dia em que a reportagem esteve no local, Romero passou pelo retoque do primeiro atendimento, que tinha ocorrido dias antes. A barba ainda não estava tão longa. Romero foi um dos clientes modelos que falou que não merecia um atendimento assim. 

— Se eu falar perante eles, vão dizer que sou puxa-saco. Comigo foram excelentes. Não era de se apavorar como eu estava antes? Quando eu passei pelo espelho, me assustei comigo mesmo. Não mereço tanto — diz, contendo a emoção. 

Enquanto ouvem histórias, quem aprende junto as técnicas de corte é Lincoln Fagundes dos Santos, 19 anos, filho de Fernando. Mas o aprendizado vai além da parte profissional:

— Aprendo muita coisa, principalmente, a questão do julgamento. Como meu pai falou, começamos a entender e compreender mais os motivos que levam a essa situação e a se colocar no lugar de outros. Já refleti sobre isso e sou grato por ter uma casa, comida, família.

As aulas de Matheus, o único aluno de Fernando atualmente, seguem por mais algumas segundas. Eles já atenderam mais de 50 pessoas em situação de rua

— Tem um preconceito grande por eles estarem nessa situação e até mesmo por causa da aparência: cabeludo, barbudo. Vamos continuar fazendo isso, pelo menos enquanto tivermos alunos. O mais legal é que não esperávamos que seria assim, da forma como está sendo — afirma Fernando. 







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