Dificuldade de reconstrução
"Estamos com três camas encontradas na rua. Deixei secando e usamos", relata moradora de Eldorado do Sul semanas após enchente
No bairro Cidade Verde, o mais afetado pela inundação de novembro, há queixas de desamparo e falta de donativos suficientes; prefeitura diz que todos serão atendidos
Cerca de três semanas depois de enfrentar a maior enchente da história de Eldorado do Sul, que atingiu 60% da cidade, moradores do município da Região Metropolitana ainda enfrentam dificuldades para se recuperar das perdas, reconstruir a vida e superar traumas. Apesar de o nível do Rio Jacuí ter baixado, as marcas nas paredes das casas permanecem, lembrando a altura que a água atingiu e o drama vivido no mês passado.
— Eu saí de casa em um sábado de madrugada e fui pra minha mãe. De tarde, a água já estava na metade do meu corpo, e de noite já não dava mais pé aqui dentro. Tive que sair pedindo roupa, pedindo dinheiro na rua. Nunca tive que passar por isso — relata, com os olhos marejados, Caren Damaceno, 35 anos.
Junto da filha de oito anos, ela é uma entre tantos moradores que perderam tudo que tinham dentro de casa no bairro Cidade Verde, considerado o mais afetado pela inundação de novembro. Ao voltar para casa na segunda-feira (11), ela deparou com um cenário de destruição: roupas, armários e eletrodomésticos foram perdidos.
Caren, assim como outros vizinhos, diz não ter recebido donativos suficientes da prefeitura para se reerguer. Alega ter se cadastrado junto ao Executivo municipal, mas, ainda assim, não ter sido contemplada com itens essenciais, como roupas e colchões.
— A única coisa que consegui foi um rancho e uns produtos de limpeza. Mas foi um mini rancho e pouco produto. Disseram que tinha doação de roupa, colchão. Eu me inscrevi no primeiro dia, porque não tinha colchão pra dormir em casa, mas não ganhei — diz ela, que acaou recebendo colchões de terceiros.
A mesma situação é relatada por Ariane Rosa, 31 anos, também do bairro Cidade Verde:
— Somos seis pessoas aqui. Recebi um kit pequeno, que não dura nada, dá para uma semana no máximo. Veio também o kit limpeza, que só durou na primeira lavada e nem tirou o grosso. As paredes não foram lavadas. Estamos esperando um adiantamento (no trabalho do marido) para poder lavar as paredes e tirar o cheiro ruim.
Ao circular pelo bairro na manhã desta terça-feira (12), a reportagem de GZH flagrou muitos pontos com entulhos que ainda não foram recolhidos. A quantidade de lixo ainda é grande, embora funcionários da prefeitura estejam fazendo a limpeza de algumas áreas. O odor forte e as moscas invadem as residências.
Foi em uma das pilhas de entulho que Ariane encontrou solução ao menos para poder dormir:
— Estamos com três camas encontradas na rua. As pessoas estavam botando fora, enquanto eu, meu filho e meu pai de 65 anos estávamos dormindo no chão. Então peguei, deixei secando por um tempo e usamos.
A sensação de desamparo por parte das autoridades dá o tom a muitos relatos de moradores.
— Disseram que viriam aqui para ver a situação da minha casa, mas até agora nada. Só falaram que tem que esperar, esperar, esperar. Falei com eles no final da semana passada, mas dizem que tem que aguardar, porque é muita gente — lamenta Priscila Ferreira, 30 anos, que se abriga na casa do tio, nos fundos do mesmo terreno em que mora, depois de ter ficado apenas com a geladeira dentro de casa.
Sem números oficiais de entregas e contemplados
Procurada, a prefeitura de Eldorado do Sul informou que tem distribuído cestas básicas, kits de higiene e limpeza e donativos de forma regular na cidade. Garante que os mesmos são destinados às famílias de forma completa e que "nenhum kit é preparado de forma diferenciada, são todos iguais".
Questionada sobre a quantidade de doações já entregue e o número de pessoas contempladas, a prefeitura disse que ainda não é possível realizar um levantamento preciso. Entretanto, garante que "mais de 3 mil famílias atingidas pelas cheias já receberam kits de higiene e limpeza, colchões e móveis".
A Defesa Civil do município informou que, para solicitar os kits, basta entrar em contato pelo telefone (51) 98595-1493. No entanto, a reportagem de GZH recebeu, nas últimas semanas, uma série de prints de conversas no Whatsapp em que moradores solicitam doações via contato indicado mas recebem negativas.
Sobre esses episódios, a assessoria da prefeitura justificou que é preciso analisar cada caso, já que “existem muitas pessoas que não foram atingidas pelas cheias e que solicitam a entrega de donativos”. A Defesa Civil ressaltou que “todos os moradores afetados pelas enchentes já receberam, estão recebendo ou vão receber os donativos”.
Em relação ao recolhimento de entulhos, a prefeitura informou que "a Secretaria Municipal de Obras e Viação (SMOV) está mobilizada com todas as suas equipes de limpeza e ressalta que tem realizado a limpeza das ruas e a retirada dos entulhos diariamente, inclusive ao finais de semana. Entretanto, esta enchente foi a maior da história de Eldorado do Sul e muitos moradores ainda estão limpando suas residências e descartando móveis, eletrodomésticos e lixos, gerando assim novos entulhos. Portanto, ainda há bastante trabalho a ser feito e não há uma previsão de conclusão dos serviços".
Enquanto aguarda a chegada de mais ajuda, Caren começa a fazer planos e diz que pretende se mudar:
— Na água não fico mais. Se continuar assim, esse bairro vai deixar de existir. Quem é que quer passar por isso? A cada três meses ter que sair de casa e perder as coisas. Isso não é vida.