Zona leste da Capital
Morro da Cruz além-fronteiras: The Washington Post visita comunidade e realiza reportagem sobre endividamento
Matéria foi feita com moradores do local em dezembro do ano passado, mas publicada neste domingo no site do jornal norte-americano
O Morro da Cruz, localizado na zona leste de Porto Alegre, ganhou as páginas do noticiário internacional mais uma vez. O The Washington Post, um dos principais jornais dos Estados Unidos, publicou reportagem sobre questões relacionadas ao endividamento pessoal após visitar e ouvir moradores da comunidade. A matéria foi ao ar neste domingo (24) e pode ser consultada neste link.
A reportagem foi realizada no dia 16 de dezembro do ano passado, quando a repórter Elizabeth Dwoskin passou parte do dia na Capital. A jornalista, que estava no país desenvolvendo outras matérias, ficou sabendo sobre a existência de um estudo acerca do consumo feito há alguns anos no Morro da Cruz. Foi enviada pelos editores do Rio de Janeiro, onde estava, para escutar algumas histórias na comunidade.
— Começamos a pesquisar o Morro da Cruz em 2009. A primeira coisa sempre foi pesquisar o consumo e por qual motivo os jovens consomem roupas de marca — explica a antropóloga Lucia Scalco, uma das fundadoras e atual presidente da ONG Coletivo Autônomo Morro da Cruz.
Conforme narra, foram desenvolvidas pesquisas sobre outros temas, como o fenômeno dos rolezinhos e até a transformação do lulismo em bolsonarismo na periferia. Esta última teve reportagem publicada em GZH em 2019. Para acessar clique aqui.
— O Morro da Cruz tem sido pesquisado por diversas universidades do Brasil e do mundo, como a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Oxford, por exemplo. Já saiu em diversos jornais do mundo. Isso se deve aos problemas estruturais que qualquer comunidade periférica urbana possui, mas também a sua diversidade e criatividade — atesta a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, que auxiliou nos estudos.
Rosana, que atua como professora da University College Dublin, elogia o papel dos próprios moradores do território.
— É uma comunidade grande, cheia de iniciativas, mas quando se fala em vilas, a população gaúcha talvez associe a questões negativas. Essa visibilidade internacional ajuda a mostrar o trabalho e a força dos moradores da comunidade — diz, destacando ainda a relevância do Coletivo Autônomo neste processo.
Os personagens envolvidos com a realidade do dia a dia da região reconhecem a importância da projeção para o lugar.
É uma comunidade grande, cheia de iniciativas, mas quando se fala em vilas, a população gaúcha talvez associe a questões negativas. Essa visibilidade internacional ajuda a mostrar o trabalho e a força dos moradores da comunidade
ROSANA PINHEIRO-MACHADO
Professora da University College Dublin
— Quando a gente é entrevistado pelo The Washington Post, jornal com uma trajetória de representatividade na América Latina, é muita emoção — afirma o coordenador do Centro de Recondicionamento de Computadores (CRC) do Morro da Cruz, Ubiratan Marquette, que teve bastante contato com a jornalista enquanto ela esteve na comunidade.
Segundo o coordenador, conhecido como Bira, sua fala durante a entrevista para a norte-americana foi sobre a piora no endividamento das pessoas no período pós-pandemia.
— Tem gente que não consegue nem pegar um crédito educativo em razão do acúmulo de dívidas — revela, compartilhando casos de pessoas que precisam trabalhar 36 horas consecutivas para pagar as contas.
Além disso, aborda outros pontos:
— Seremos o porta-voz daqueles que estão no endividamento. As pessoas não têm oportunidades para conseguirem um crédito educativo, ou buscarem uma habitação. O negativado não tem isso. Não consegue ter recursos básicos para a sua subsistência — reflete, acrescentando: — O Morro da Cruz está falando para a América do Norte e também para o mundo. O nosso link é a voz dessas pessoas que não possuem acesso a esses benefícios.
O microempreendedor individual Ademir Cunha dos Santos Junior foi um dos entrevistados pela reportagem do Post.
— Foi bem interessante porque nos tira do nosso cotidiano e, de repente, estamos conversando com uma jornalista dos Estados Unidos — observa.
Ademir contou sobre uma dívida que possui com um banco e, segundo relata, nunca teve oportunidade para chegar a um acerto com a instituição.
Questionado sobre a emoção de participar de uma matéria para um veículo de informação internacional, o microempreendedor define a situação como "uma baita visibilidade".
— Vejo como uma recompensa para os projetos que existem dentro da comunidade. Curti muito — afirma.
Não é a primeira vez que o Morro da Cruz estampa as páginas internacionais. Na Copa do Mundo de 2014, o jornal britânico The Independent publicou duas matérias sobre a realidade da vida dos moradores da região, enquanto o país investia na realização da competição futebolística. Em uma das reportagens, foram explorados os problemas relacionados aos "gatos", ligações clandestinas de eletricidade, e apresentada uma família que teve a casa queimada em função disso.
A vice-presidente da ONG Coletivo Autônomo Morro da Cruz, Nira Martins Pereira, cresceu ali e conhece cada beco da região.
Precisamos de oportunidade de trabalho para sair desse caos. Com certeza, o Morro da Cruz é um vencedor. Levantamos a bandeira da resistência aqui
NIRA MARTINS PEREIRA
Vice-presidente da ONG Coletivo Autônomo Morro da Cruz
— Para nós é muito importante (o local ser retratado no Post) porque o Morro da Cruz tem uma vulnerabilidade grande, mas ele não é só carência, tem potência também. Possui pessoas trabalhadoras que sobreviveram a tudo isso, resistiram e estão aqui. O Morro foi uma resistência muito grande — avalia, estimando que cerca de 90% dos moradores da comunidade estão endividados no momento.
E ela aponta o caminho para dias melhores.
— Precisamos de oportunidade de trabalho para sair desse caos. Com certeza, o Morro da Cruz é um vencedor. Levantamos a bandeira da resistência aqui — orgulha-se.
Saiba mais
O The Washington Post tem uma longa trajetória de contribuições ao jornalismo. A principal delas ocorreu em 1972, quando os jornalistas Carl Bernstein e Bob Woodward investigaram a invasão da sede do Partido Democrata, situada no Hotel Watergate, em Washington. Um informante do FBI (Polícia Federal dos EUA), conhecido como Garganta Profunda, auxiliou os dois repórteres do Post na apuração dos fatos.
A série de reportagens culminou na renúncia do presidente dos EUA, Richard Nixon, dois anos mais tarde. O episódio ficou conhecido como escândalo de Watergate. O filme Todos os Homens do Presidente, lançado em 1976 e com os atores Dustin Hoffman e Robert Redford nos papéis principais, conta a história.