Em Porto Alegre
Sala terá nome de Elza Soares em nova rede de enfrentamento à violência contra a mulher do Grupo Hospitalar Conceição
Uma das medidas é a criação do espaço reservado no Hospital Cristo Redentor, onde as mulheres vítimas serão encaminhadas para atendimento especializado
No disco Deus é Mulher, Elza Soares cantou “Minha voz uso para dizer o que se cala”. A frase pode ser lida na parede da sala que recebeu o nome da artista no Hospital Cristo Redentor, na zona norte de Porto Alegre. A instituição, que atende pacientes da Capital e Região Metropolitana por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), é a principal porta de entrada do Grupo Hospitalar Conceição (GHC) para as vítimas de violência doméstica e de gênero. Nesta segunda-feira (25), o complexo lança uma rede de humanização do atendimento dessas mulheres.
A Sala Elza Soares é o ponto central dessa virada de chave que o GHC pretende alcançar no combate a esse tipo de violência. O espaço, que fica bem próximo da emergência do Cristo Redentor, mas numa área separada, vai permitir que mulheres que chegam até ali sejam acolhidas de forma mais reservada. Com paredes coloridas e flores, a sala tem um ambiente mais informal do que as outras dependências do hospital.
A frase cantada por Elza está na parede como mais uma forma de encorajamento às mulheres, para que não calem suas dores. Também há folders com informações para serem distribuídos. Tudo foi pensado para que as pacientes se sintam seguras e convidadas a quebrar o silêncio e relatar as violências sofridas. No local, haverá atendimento de assistência social e da área psicológica.
— Na emergência, essa mulher não tem condição de falar sobre a situação no meio de todo mundo, nem se sente à vontade. Quer terminar o atendimento em saúde e ir embora. Aqui na sala a gente vai dar um acolhimento mais humano para ela. Ela vai ser direcionada para cá para fazer uma escuta sensível — explica a assistente social Débora Abel, 52 anos, que coordena o serviço.
Há 18 anos atuando no complexo hospitalar, a profissional viu por incontáveis vezes mulheres de todos os perfis buscando socorro após sofrerem violências. Em muitos casos, são levadas pela Brigada Militar, quando a violência chega ao conhecimento da polícia. Em outras, recorrem à emergência por conta própria, quando há suspeita de uma lesão mais grave, como uma fratura. Não raras vezes, quem acompanha a vítima é o próprio agressor. Durante o atendimento, ao lado de outros pacientes, a mulher nem sempre se encoraja a relatar o que sofreu.
— Elas procuram realmente só quando sentem muita dor e quando é uma coisa bem visível. Quando é uma lesão que aparece, no rosto, ou tem suspeita de fratura, quando bate o tórax ou tentam sufocamento. Mas a gente sabe que a maioria das mulheres que sofre agressão não procura a rede de saúde. Em que momento essa mulher abriu mão de si mesma, da sua autoestima, da sua saúde, da sua segurança em nome desta relação? Isso é uma questão de saúde mental, que a mulher precisa de um atendimento especializado para poder sair disto. Muitas vezes ela nem enxerga. A violência contra a mulher é muito complexa. Então a gente vai trabalhar nesse sentido de ajudá-la a sair dessa situação, na consciência, de ter acesso aos recursos que a gente oferece, e que o Estado oferece — detalha Débora.
Do lado de fora
A intenção com esse fortalecimento interno das ações relacionadas ao tema é também fazer uma ponte entre as mulheres atendidas e a rede externa de proteção à vítimas de violência doméstica (formada por outras instituições). Diretor-presidente do GHC, Gilberto Barichello explica que essa política para ampliar e qualificar a rede de proteção começou a ser desenhada em abril passado.
— A mulher dentro dos hospitais não pode sofrer uma segunda violência. Ela tem que ser bem atendida. Mas também não pode sofrer uma terceira violência, que é não ter uma rede de proteção eficiente no município e no Estado que permita ao nosso trabalhador encaminhar essas mulheres. Por isso, estamos chamando todos os atores da sociedade e aquelas entidades e movimentos que trabalham com esse tema, para despertar a atenção, que é preciso ampliar a rede de proteção tanto nos municípios como no Estado — afirma.
Durante o evento a ser realizado nesta segunda-feira, serão reunidos representantes do Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Polícia Civil, entre outros. Diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher (Dipam) da Polícia Civil, a delegada Cristiane Ramos ressalta que o enfrentamento à esse tipo de violência só é efetivo se ocorrer em rede. Nesse cenário, entende que as ações que visam melhorar o fluxo entre quem integra a rede devem ser fomentadas.
— As mulheres têm muita dificuldade de romper o silêncio, de quebrar o ciclo da violência. E muitas vezes elas vão ingressar em outros serviços, além da segurança pública. Mulheres vítimas de feminicídio em sua maioria nunca registraram uma ocorrência policial. Porém, quando vamos investigar a gente verifica que essas mulheres passaram pelo sistema de saúde em algum momento, com queixas e problemas relacionados à violência doméstica. É importante que esses casos sejam notificados à autoridade policial, que esse fluxo de informações seja célere, seja efetivo, para que a gente consiga atuar de maneira preventiva, evitando novos feminicídios — alerta a delegada.
A rede
Quem faz parte
A rede do Grupo Hospitalar Conceição de enfrentamento à violência contra as mulheres está presente nos hospitais Cristo Redentor, Conceição, Fêmina e da Criança (adolescentes também podem ser vítimas de violência doméstica), na UPA Moacyr Scliar e nos 12 postos de saúde.
Como vai funcionar
A rede tem três linhas de atuação: assistência às mulheres em situação de violência em qualquer espaço do GHC (com orientações e atendimentos psicológicos e de assistência social), o monitoramento das informações sobre os atendimentos realizados em casos de violência doméstica, e a capacitação permanente aos funcionários, para que atendam as vítimas com sensibilidade, acessibilidade e sigilo. A rede, que tem o ponto focal no Cristo Redentor, hospital do GHC que mais recebe situações de violência, é formada atualmente por cerca de 20 profissionais, mas a intenção é ampliar esse número.
Por que Elza?
A Sala no Cristo Redentor se chama Elza Soares, em homenagem à artista, símbolo de luta contra o machismo e racismo. O relacionamento de 16 anos que a cantora manteve com o ídolo do futebol Mané Garrincha foi marcado por episódios de violência doméstica, segundo a cantora, que morreu em janeiro de 2022.
A história é contada no documentário Elza & Mané — Amor em linhas tortas, da Globoplay. As agressões foram retratadas também no disco A mulher do fim do mundo, no qual Elza interpretou a música Maria da Vila Matilde. “Cadê meu celular? Eu vou ligar para o 180. Vou entregar teu nome e explicar meu endereço. (…) ‘Cê’ vai se arrepender de levantar a mão pra mim”, cantou Elza.
Dados da violência contra a mulher
Vítimas
Em 2023, 2.953 mulheres foram vítimas de violência física, tentativas de feminicídio ou violência sexual, em Porto Alegre, de acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública do Estado. A estimativa do GHC é de que cerca de 25% desas mulheres sejam atendidas pelo complexo. No Cristo Redentor, em média, duas mulheres são atendidas por dia em casos de violência.
Violência na Capital em 2023
- 2.601 lesão corporal
- 42 tentativas de feminicídio
- 3 feminicídios
- 310 casos de estupro
Fonte: SSP-RS
Medidas protetivas
No último ano, o Judiciário gaúcho determinou, em média, 479 medidas protetivas por dia. O total foi de 175.053 ordens judiciais na tentativa de proteger mulheres vítimas de violência doméstica. Em comparação com 2022, houve aumento de 28%. Na Capital, a elevação foi maior, de 32% -foram 17.254 medidas protetivas em 2023, enquanto no ano anterior tinham sido 13.052. Os dados são da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Estado.
Como pedir ajuda
Brigada Militar – 190
- Se a violência estiver acontecendo, a vítima ou qualquer outra pessoa deve ligar imediatamente para o 190. O atendimento é 24 horas em todo o Estado.
Polícia Civil
- Se a violência já aconteceu, a vítima deverá ir, preferencialmente à Delegacia da Mulher, onde houver, ou a qualquer Delegacia de Polícia para fazer o boletim de ocorrência e solicitar as medidas protetivas.
- Em Porto Alegre, a Delegacia da Mulher na Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia, no bairro Azenha. Os telefones são (51) 3288-2173 ou 3288-2327 ou 3288-2172 ou 197 (emergências).
- As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias. Há DPs especializadas no Estado. Confira a lista neste link.
Delegacia Online
- É possível registrar o fato pela Delegacia Online, sem ter que ir até a delegacia, o que também facilita a solicitação de medidas protetivas de urgência.
Central de Atendimento à Mulher 24 Horas – Disque 180
- Recebe denúncias ou relatos de violência contra a mulher, reclamações sobre os serviços de rede, orienta sobre direitos e acerca dos locais onde a vítima pode receber atendimento. A denúncia será investigada e a vítima receberá atendimento necessário, inclusive medidas protetivas, se for o caso. A denúncia pode ser anônima. A Central funciona diariamente, 24 horas, e pode ser acionada de qualquer lugar do Brasil.
Defensoria Pública – Disque 0800-644-5556
- Para orientação quanto aos seus direitos e deveres, a vítima poderá procurar a Defensoria Pública, na sua cidade ou, se for o caso, consultar advogado(a).
Centros de Referência de Atendimento à Mulher
- Espaços de acolhimento/atendimento psicológico e social, orientação e encaminhamento jurídico à mulher em situação de violência.