Tragédia metropolitana
Enchente devasta dois terços de Canoas e deixa mais de 15 mil desabrigados
Cheia avançou sobre o lado oeste do município, alagando área equivalente à de 11 mil campos de futebol
Depois de devastar regiões como a Serra e o Vale do Taquari, o borbotão de água lamacenta que espalhou mortes, estraçalhou estradas, pontes e casas no Interior chegou à Região Metropolitana no final de semana com a mesma fúria que demonstrou ao longo do trajeto.
O município de Canoas foi um dos mais castigados no sábado (4) e no domingo (5) pelo tsunami de água doce que fez submergir 60% dos 131 quilômetros quadrados de área da cidade — o equivalente a uma extensão de quase 11 mil campos de futebol engolidos pela enchente.
Ao avançar palmo a palmo sobre esse terreno, a onda de cheia atingiu em algum grau metade da população, provocou desespero e boatos infundados, exigiu resgates heroicos madrugada adentro e resultou em mais de 15 mil desabrigados até a tarde de domingo. Desabrigados são aqueles que estão sob responsabilidade do município em abrigos públicos.
— Em dois terços da cidade, a destruição foi praticamente total. São cerca de 80 mil casas atingidas, além de empresas, fábricas e equipamentos públicos como escolas e unidades de saúde. Será preciso um grande esforço para reconstruir a cidade — lamenta o prefeito Jairo Jorge.
A inundação transformou o oeste canoense em uma extensão dos rios e arroios próximos, como o Jacuí e o Sinos. Duas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e o Pronto Socorro foram alagados. Expulsos pela água, milhares de moradores de bairros como Mathias Velho, Fátima, Rio Branco e Harmonia se puseram em marcha forçada para regiões mais distantes e elevadas, primeiro a pé, depois em embarcações ou, no caso de famílias refugiadas em telhados quando a correnteza já tomava as ruas, até por meio de aeronaves da Força Aérea Brasileira (FAB).
Um dos salvamentos mais dramáticos ocorreu no Rio Branco, onde um helicóptero içou sete pessoas que aguardavam auxílio por meio de uma ação conjunta entre FAB e Corpo de Bombeiros. Um a um, abraçados aos militares, os sobreviventes foram puxados em segurança e conduzidos até o Hospital Universitário. Ao todo, sete aeronaves de diferentes forças de segurança foram deslocadas para auxiliar a cidade.
Cenas como essa se repetiram ao longo de todo o final de semana. Segundo a prefeitura, foram recebidos nada menos do que 63,8 mil pedidos de socorro por telefone ou mensagem de celular. Isso equivale a um apelo dirigido às autoridades a cada grupo de cinco moradores do município, que conta com 348 mil habitantes. O cerco armado pelos rios, impulsionados pela maior cheia já registrada na região, sobrecarregou os serviços oficiais de salvamento e resultou em cenas dramáticas na noite de sábado para domingo.
Na entrada do Mathias Velho, onde vivem cerca de 50 mil pessoas, imagens de um cordão humano formado por voluntários para puxar embarcações com sobreviventes provocaram comoção. Dezenas de pessoas se deram os braços nas proximidades da estação da Trensurb, formando uma linha desde o asfalto até os primeiros metros de inundação.
Sempre que chegava um novo barco com refugiados da cheia, ouviam-se gritos de "puxa, puxa!", e todo o cordão se deslocava na direção oposta à água até arrastar as vítimas para terra firme. A demanda por socorro era tão grande que mobilizou um contingente de mais de mil pessoas, entre profissionais e voluntários como os moradores que enfrentaram a escuridão do Mathias Velho para salvar gente. No domingo à tarde, ainda havia resgates sendo feitos.
O viaduto localizado junto à estação do trem se transformou em um corredor por onde mais barcos eram trazidos por voluntários para navegar nas ruas e avenidas alagadas, e por onde desembarcavam sobreviventes de volta à segurança.
— Estamos com casas com quase seis metros de altura, tudo embaixo d'água — lamentou o morador Juarez Silva, em depoimento à Rádio Gaúcha.
Socorristas ouvidos pela repórter Lisielle Zanchettin informaram a ocorrência de ameaças e assaltos a mão armada nos fundos do Mathias Velho. Em nota, a prefeitura comunicou que "não é verdadeira a informação de que os resgates com barcos na região do bairro Mathias Velho estão sendo suspensos por falta de segurança", e que equipes estariam "deixando de atuar naquela região por que não há mais pessoas necessitadas". A BM confirmou que um homem foi preso na noite de sábado ao tentar roubar um barco na região, além do furto de duas embarcações em outros episódios.
Além dos prejuízos reais, a população enfrentou uma enxurrada de boatos como informações sobre rompimentos de diques e supostos corpos à deriva. Em entrevista ao DG, Jairo Jorge afirmou que, de forma extraoficial, foi informado pela Brigada Militar sobre a localização de duas vítimas. Nenhuma equipe de resgate havia confirmado, até o final da tarde de domingo, possíveis mortes em larga escala.
— Sobrevoei a cidade e também não avistei nada desse tipo — afiança Jairo Jorge.
Relatos de nove mortos na UTI do Pronto Socorro também foram descartados — a prefeitura confirma duas mortes no final de semana em um universo de 13 pacientes graves, sem relação direta com a cheia. Ao todo, 80 doentes foram removidos para locais seguros.
Conforme o prefeito, o trabalho de reconstrução exigirá a elaboração de um plano conjunto com os governos estadual e federal. Será preciso recuperar ou erguer novas casas para a população, além de reestruturar unidades de saúde, escolas e outros serviços públicos:
— Vamos precisar também ter algum apoio para as famílias afetadas, seja na forma de subsídio, crédito, liberação de FGTS, além de outros mecanismos que nos permitam reconstruir Canoas.