Levantamento
RS tem quase 15 mil pessoas em situação de rua; vagas em albergues atendem menos de 15% delas, aponta MP
Das 381 prefeituras que responderam à pesquisa do Ministério Público do Estado, 75% disseram não ter população nesta condição. Estudo, feito antes da enchente de 2024, também revelou insuficiência na oferta de alimentação para quem não tem moradia
O Rio Grande do Sul tem ao menos 14.829 pessoas em situação de rua, porém, só dispõe de 2.185 vagas de acolhimento nos chamados serviços de alta complexidade da assistência social, como albergues. Portanto, esse tipo de estrutura só seria capaz de atender 15% da demanda, caso toda essa população buscasse, na mesma noite, um lugar seguro para dormir.
Os dados estão em levantamento realizado pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS). Um formulário foi enviado aos 497 municípios gaúchos, dos quais 381 responderam. Destes, 286 (75%) disseram não ter pessoas em situação de rua.
— Com os dados, vimos que tem cerca de 15 mil pessoas em situação de rua mapeadas pelos gestores de todos os municípios do Estado. Nem 15% delas teriam uma vaga correspondente no serviço de abrigamento dentro das estruturas do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Então, 85% das pessoas, se quiserem uma vaga para dormir de noite, não terão — compartilha o promotor de Justiça Leonardo Menin, que coordena o Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos e da Proteção aos Vulneráveis (CAODHPV) do MPRS.
O levantamento foi desenvolvido entre 2023 e 2024 — antes da enchente de maio. O objetivo foi verificar a implementação das políticas públicas para as pessoas em situação de rua, em cumprimento a uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que determinou, em 2023, que os municípios quantificassem a população sem moradia, o número de abrigos e a oferta de alimentação (saiba mais abaixo).
— A maior parte dos equipamentos que nós temos nos municípios são os albergues. Como são, em regra, só para pernoite, eles não são os equipamentos tipificados pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). Deveria ser um abrigo que tem uma proteção mais completa, não tem horário específico e está disponível para a população de uma forma mais ampla — detalha o coordenador.
De acordo com o estudo, das quase 15 mil pessoas em situação de rua no RS, cerca de 5 mil mantêm-se fixas, ocupando sempre os mesmos locais, e um outro grupo, quase do mesmo tamanho, é formado por itinerantes. O restante desta população não foi categorizada em nenhum destes recortes pelas prefeituras.
Entre as pessoas em situação de rua no Estado, estão 131 famílias (adultos acompanhados de crianças ou adolescentes). O total de indivíduos mapeados pelo estudo com menos de 18 anos de idade é de 365.
Pelotas tem maior número apontado na pesquisa
O relatório mostra Pelotas, no sul do Estado, com 3.937 pessoas em situação de rua, dado superior aos números da Capital (que tem 2.371 pessoas).
O MPRS não tem um diagnóstico sobre a razão para Pelotas liderar esse ranking, mas levanta a hipótese de que a cidade funcione como um ponto de passagem para essa população, já que a maior parte das pessoas nesta condição no município foi classificada como itinerante (apenas 187 foram identificadas como fixas).
Procurada pela reportagem de Zero Hora, a prefeitura de Pelotas afirmou, por meio de nota enviada pela Secretaria Municipal de Assistência Social, que os dados divulgados pelo MP "não conferem". De acordo com a manifestação, em julho de 2024, "a base de dados do Cadastro Único do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) do município, a principal, soma 743 pessoas cadastradas" como em situação de rua. O MPRS não descarta algum erro no preenchimento do formulário.
A nota acrescenta ainda que o Centro Pop da cidade atende, em média, a cada mês, 370 pessoas nesta condição. A Casa de Passagem, que oferece estadia noturna, recebe uma média diária de 70 acolhidos (leia a íntegra da manifestação abaixo).
Rotas de circulação
No grupo de cidades com mais de 50 pessoas em situação de rua, identificou-se maior concentração em Porto Alegre e na Região Metropolitana, porém com interiorização nos municípios tidos como polos regionais, na Serra, Litoral, Sul, Centro, Norte e nas zonas de fronteira com Uruguai e Argentina.
— Nosso relatório nos deu a ideia de que existem rotas de itinerância desta população, inclusive saindo da Fronteira, dirigindo-se para o sul do Estado, para a Região Metropolitana, para o Litoral e saindo do RS — detalha o promotor de Justiça Leonardo Menin.
Fome
Os dados obtidos em relação à segurança alimentar das pessoas em situação de rua são preocupantes.
Em relação à oferta de alimentação para essa população, 49,85% das prefeituras diseram considerar insuficiente a disponibilidade de refeições.
Tem gente, obviamente, passando fome. Isso é uma coisa que ficou evidente no nosso levantamento
LEONARDO MENIN
Promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos e da Proteção aos Vulneráveis (CAODHPV)
O levantamento também questionou por meio de quais serviços as pessoas em situação de rua acessam alimentação. A principal resposta foi o trabalho de ONGs — em 49,38% dos municípios que informaram ter população em situação de rua, elas oferecem comida sistematicamente; em 34,56%, esporadicamente.
Também houve registro de oferta de comida para pessoas nesta condição em:
- Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) — 40,74% das cidades
- Centros de Referência Especializados em Assistência Social (CREAS) — 29,63%
- restaurantes populares — 19,75%
- cozinhas comunitárias — 16,04%
- centros Pop — 11,11%
A soma dos percentuais supera 100% porque alguns municípios dispõem de mais de um destes serviços.
Promotores terão acesso à realidade em suas regiões
O levantamento possibilita que os promotores de Justiça de cada comarca possam ter acesso aos números e conhecer a realidade no seu território.
O material será encaminhado para todos os promotores do Estado com uma certidão específica do seu município. Também será enviada cópia ao governo estadual.
O diagnóstico do levantamento do MPRS é resultado do compilado de dados obtidos por meio de um formulário eletrônico distribuído pelo Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos e da Proteção aos Vulneráveis (CAODHPV), com o apoio do governo estadual, da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs) e de movimentos sociais.
O MPRS, por meio do CAODHPV, criou um grupo de trabalho para a elaboração de questionário e envio, por meio da Famurs, a todos os 497 municípios gaúchos.
Responderam às perguntas 381 cidades (76,65%), enquanto outras 116 (23,34%) não retornaram. Das que não responderam, três são de médio porte (Esteio, Parobé e Tramandaí) e uma de grande porte (Viamão).
Entenda o que determinou a decisão do STF
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) diz respeito à Política Nacional para a População em Situação de Rua. O ministro Alexandre de Moraes determinou (inicialmente por meio de liminar, depois referendada pelo plenário) que Estados, Distrito Federal e municípios deviam pôr em prática a Política Nacional para a População em Situação de Rua, estabelecida no país em 2009.
A ação movida em 2022 pelos partidos políticos Rede Sustentabilidade e PSOL e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) alegava descumprimento da Constituição pela falta de ações do poder público para esta população, que, segundo os autores, vive em condições desumanas no país.
O STF determinou em 2023 que o governo federal elaborasse em 120 dias um plano de ação e de monitoramento para a efetiva implementação da política nacional para a população em situação de rua. O plano foi entregue à Corte pelo Executivo federal em novembro de 2023.
Aos municípios, o Supremo exigiu que, no mesmo prazo, quantificassem as pessoas em situação de rua em seu território, além do número de vagas em abrigos e a capacidade de oferta de alimentação para essas pessoas.
Conforme o STF, os Estados e os municípios devem garantir a segurança pessoal e dos bens das pessoas desse grupo dentro dos abrigos institucionais, inclusive com apoio para seus animais de estimação.
Também cabe aos municípios proibir o recolhimento, à força, de bens e pertences das pessoas em situação de rua, impedir a remoção e o transporte compulsório delas, assim como evitar hostilidades em relação a essa população.
O que disse a prefeitura de Pelotas
"A Secretaria Municipal de Assistência Social de Pelotas informa que o dado não corresponde. Atualmente, a base de dados do Cadastro Único do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) do município, a principal, soma 743 pessoas cadastradas (referência julho de 2024).
O Departamento de Proteção Social Especial (PSE) de Média Complexidade da Secretaria informa que o Centro Pop atende diariamente 110 pessoas e, mensalmente, uma média de 370 pessoas em situação de rua, com a oferta de alimentação, higiene pessoal e atendimento técnico (base de dados junho de 2024). A Casa de Passagem oferece acolhimento noturno com uma média diária de 70 acolhidos. (Fonte: Registro Mensal de Atendimentos – RMA).
Com relação ao Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS), vinculado à Média Complexidade, foram abordados no primeiro semestre de 2024 uma média de 160 pessoas nas ruas (Fonte: Registro Mensal de Atendimentos – RMA).
O município ainda conta com uma rede de atendimento à população em situação de rua que inclui consultório na rua, unidades básicas de saúde e os serviços socioassistenciais, como Centro Pop, Abordagem social e Casa de Passagem, e ainda cabe salientar a criação do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua – CIAMP/RUA – Decreto nº 6.783 de setembro de 2023."